quarta-feira, 23 de dezembro de 2009

Inverno


A (re)ler, uns 20 e tal anos depois, "O Nome da Rosa." Para o que me havia de dar? Mas a chuva lá fora, e o frio, obrigam a isso. Naquela história também fazia frio, e nevava, e eu sempre senti um arrepio de prazer invernal ao imaginar como se estaria bem dentro da abadia, com lareiras acesas. Isto não tem nada a ver com o tema do livro? Claro que tem. As histórias que lemos, e das quais gostamos, aconchegam-nos. Temos todo o direito de escolher as sensações que elas nos provocam. A mim, neste caso, são sensações de conforto invernal – e gosto de achar que o Eco iria perceber isso, mesmo que mais ninguém perceba. No fundo, ele também quis escrever uma história de luz e calor no meio do frio e da escuridão das intempéries.


Nota:

O Jorge pronunciou-se. Nunca o vi, não o conheço a não ser do que escreve - e isto é imenso. Não sei o que a boa regra bloguística manda fazer nestas situações, e também não vou começar aqui a trocar galhardetes, embora tivesse muitos para lhe dar. Mas tenho todo o tempo do mundo para o fazer.

Obrigado, Jorge.

quinta-feira, 17 de dezembro de 2009

sexta-feira, 11 de dezembro de 2009

Puxar pelos galões

Quando vi este produto num supermercado alentejano, comprei alegremente uma embalagem. Acho que alguém que pega em algo tão trivial como o café com leite, que toda a gente faz em casa, e o põe à venda como se fosse uma especialidade típica, demonstra um descaramento que merece ser reconhecido e apoiado.
Eu juro que não sabia que havia uma coisa chamada “galão alentejano.” Julgava que o vulgar galão era apenas isso: uma coisa vulgar, que há em todo o lado. Não o sabia típico do Alentejo, nem vejo como o possa ser: café com leite é café com leite, seja aqui, seja na Mongólia. Suspeito fortemente que se trata de uma engenhosa construção eco-cultural, semelhante à que fez do queijo flamengo uma coisa típica de Ponte de Lima, provavelmente já lá produzida quando os barões de Entre Douro e Minho ainda nem tinham inventado um país, quanto mais a sandes mista.
Seja como for, isto alegra e dá esperança. É um sinal de espírito empreendedor e de imaginação.
O futuro do Alentejo está no turismo, e fala-se de fazer dele uma espécie de “no
va Toscânia” – um local de calma beleza natural e clima ameno, onde a História se misture com as tradições e a gastronomia, atraindo gente de todo o lado para um turismo em que a fruição cultural se junte ao deleite dos sentidos.
Para isso, o Alentejo tem quase tudo o que a Toscânia tem: o clima, paisagens, gastronomia. Só perde na tradição histórica e cultural, mas nesse aspecto qualquer outra região europeia perde. É verdade que tem cidades-museu, conventos e castelos, uma monumentalidade rica – mas comparar isso com Florença, Siena, Lucca, Pisa e tutti quanti, no que elas são hoje e no que foram, não é justo. A Toscânia conhece o turismo há séculos – foi um dos locais em que ele se inventou, quando a educação de qualquer jovem das elites norte-europeias incluía obrigatoriamente o
Grand Tour pelas terras da Antiguidade clássica e do Renascimento.
O que fazer então? É simples: se há história conta-se, se não há, inventa-se. Sejamos realistas: grande parte do que hoje temos por tradições seculares são construções recentes, e algumas delas até deliberadas. A Escócia só conheceu o
kilt no século XVIII, o que não impediu Mel Gibson de os vestir aos indomáveis combatentes medievais de Braveheart – um anacronismo de vários séculos em que ninguém repara, porque o kilt está consagrado hoje como eterno atavio dos escoceses.
A História não pode ser inventada. Mas pode ser encenada – que é o que acontece a muita da que o
touriste de ontem e o turista de hoje percebe em lugares como a Toscânia. Esta tem um passado prodigioso, que fascina tanto como as paisagens. Pelo Alentejo não passou nem metade da História que por lá passou – mas a que existe pode ser reencenada e valorizada. O Alentejo tem o rasto de dramas e tragédias, tem cenários de paixões, tem campos de batalha, tem locais místicos, tem memórias de sangue, de luta e de trabalho. Tem tradições.
E o resto do país também. O que e preciso é saber “vendê-las.” Em Helsínquia, levaram-me um dia numa volta turística cuja metade era passada numa igreja escavada na rocha: era a única coisa interessante que havia na cidade, e os abnegados finlandeses fizeram tudo para eu a achar realmente interessante.
É aqui que entra, humilde e determinado, o galão alentejano. Se o seu caminho for firme e bem conduzido, acredito que dentro de anos o café com leite bem quentinho seja tão alentejano como italiana é a
pizza - palavra que há menos de dois séculos pouca gente em Itália conhecia, e que mesmo assim começou por designar um doce.
Não se trata de fazer batota, mas de reinventar. Se é possível fazer de uma coisa tão simples e vulgar um produto típico da região, até onde se poderá ir com a açorda, o campo místico de Ourique, os cantares de mineiros, cardadores e ceifeiras, a campina a perder de vista, os torreões da raia virados a Castela, as migas, os amores pungentes de Mariana Alcoforado freirinha de Beja, os conventos, os seus mistérios e os seus doces?
Foi por tudo isto que comprei aquela embalagem. Mas não compro mais. Tudo tem um limite. Ainda sou capaz de juntar leite ao café cá em casa.

Aqui como lá em cima: Arredores de Florença ou Siena? Não, senhores. De Aljustrel

Mudanças

Mudei o fundo do belogue de negro para branco - ou se vai de uma ponta à outra, ou nem vale a pena partir.
As letras ficam melhores, as fotos, quanto a mim, piores. Agora cabe-me a mim, e só a mim, decidir por quais delas quero ser lembrado. Dispenso sugestões, eu cá me arranjo.

quarta-feira, 9 de dezembro de 2009

Outono no Alentejo


Entre Viana do Alentejo e Portel
A mulher da minh’alma, que é de lá, disse que me ia mostrar o Outono no Douro e no Marão, e eu andei meses a sonhar com isso. Mas não calhou até hoje, porque a vida atirou-nos este ano mais para o Alentejo, onde temos sido muito felizes.
É terra de folha perene, que reverdece às primeiras águas. Mas lá onde moram as caducas, a vista é tão preciosa como o ouro e o sangue que elas trazem, poisados sobre o verde triunfante do campo alentejano.

terça-feira, 8 de dezembro de 2009

Ser português é chato

Estive há dias a ver um programa de TV chamado “Ídolos,” que consiste na audição de jovens pretendentes a artistas da rádio, TV, disco, video e MP3, por um júri que os aprova ou elimina (esta descrição é para memória futura, pois pode ser que este texto fique na História, e o programa não).

Não contei os concorrentes, mas seriam na ordem dos vinte. Contei sim, porque era fácil, os que cantaram em português. Foram dois. Os cerca de 18 restantes cantaram em inglês, imitando os meneios e trejeitos linguísticos de quem fosse nado e criado em Brooklyn ou na Califórnia. Mas eram Carinas,Tatianas, Fábios e Cátias vindos da Trofa, do Montijo, da Maia ou da Cruz de Pau.

O espectáculo foi deprimente, mas previsível. Afinal, estamos no país de David Fonseca, um cantor português muito apreciado que nunca cantou uma palavra em português, e de Jorge Palma, que só canta em português, sim, mas com esforço: ainda há tempos confessava em entrevista que durante muito tempo foi incapaz de escrever um verso que fosse na sua língua.

Não estamos bem na nossa pele, nem na nossa língua. Não estamos à vontade com o português. Temos vergonha dele. Nunca vi uma coisa assim, a não ser talvez, num processo algo semelhante, nos intelectuais expatriados romenos como Émil Cioran ou Mircea Eliade, filhos, como nós, de uma língua e de um país culturalmente periféricos, e que se refugiaram no francês – Cioran falava do “cheiro a sol e a bosta” da sua língua-mãe.

É como se quiséssemos fugir desta fatalidade original que nos coube – a de termos nascido aqui, amarrados a uma terra e a uma língua que nos impede de sermos como os outros. Ser português é uma limitação tremenda, apenas contornável macaqueando quem o não é. Por isso fazemos questão de pronunciar tão bem as línguas estrangeiras, e nos rimos dos toscos espanhóis que falam inglês com sotaque de Albacete. Por isso nos misturamos na paisagem quando vivemos algures. Somo o povo mais camaleónico da Terra. Ninguém diria que há um milhão de portugueses em Paris.

Mesmo no uso do português somos tímidos.Temos medo das palavras, usamo-las como se nos queimassem a boca ou não tivéssemos direito a dizê-las. Quando empregamos uma expressão menos usual, e nem é preciso que seja muito, rodeamo-la de desculpas que lhe amorteçam o impacto: “Passe a expressão,” “Por assim dizer,” “Como se costuma dizer.” Povoamos a escrita de “comas,” «aspas» e
itálicos. Dizemos I love you para não termos que dizer amo-te, exclamamos merde e fuck porque parece mal dizer merda e foda-se. “Na língua inglesa soa sempre melhor,” cantam os Clã pela voz de Manuela Azevedo.

Ao ouvir os jovens dos “Idolos” fiquei como eles, a achar que lá fora é que se faz bem, que no estrangeiro é que é bom. Seria quase impensável ver alguém em Espanha, em França, no Brasil ou em Itália vir para um programa destes cantar em inglês ou noutra língua que não fosse espanhol, francês, português ou italiano. Até podia haver alguém que o fizesse, mas seria sempre uma excepção, e uma atitude corajosa. Em Portugal, a excepção – e a coragem – é cantar em português. Quase diria que é ser português.

quarta-feira, 2 de dezembro de 2009

A noite dos tubarões

Manágua, 1990
Esta semana, uma Cimeira Iberoamericana completamente desinteressante recordou-me tempos interessantes.

"Tu sabes quem é aquele que ali está?", perguntou-me o Luis. "Toda a gente sabe. É o tipo da Contra aqui em Manágua." O fulano emborcava copos de rum, fumava charuto e passava regularmente a mão pela pele de uma criatura que a devia ter suave como o cetim ao toque.

O Luis era vagamente sindicalista. Pelo menos apresentava-se como tal. Tinha a cara picada das bexigas, bigode e cabelo negros, o sangue índio por todos os lados. Falava aos berros, inclinado por cima da mesa, para se fazer ouvir acima da inevitável orquestra. A cantora implorava: "Devorame otra vez, devorame otra vez." O Luis ia-me traçando o retrato daquela esplanada do hotel Intercontinental, caída a noite sobre a cidade: "Olha, ali é o tipo da CIA. Aquele mais além é coronel do exército sandinista." Estavam lá todos, amigos e inimigos.
Ele próprio, Luis, andava metido com organizações estranhas que conspiravam encarniçadamente contra o Governo. Já tinha levado em tempos uns sopapos dos esbirros de Tomas Borge, o homem do Interior, um dos nove comandantes sandinistas que geriam a Nicarágua desde a revolução de 1979, há mais de dez anos. Esbirros esses que também por ali andavam. Luis apontava-os: "Aquele ali é o chefe da polícia de Manágua."
"Quer dizer então que a guerra acaba às seis da tarde," pensei eu. Durante o dia matam-se uns aos outros. Mas quando cai a noite, começa a cheirar a rum e a mulatas. Então tudo converge para onde há de um e de outras, e juntos embebedam-se de música, sexo e álcool. No dia seguinte acordam de manhã cedo, prontos para se matarem de novo. Neste país tórrido, as ressacas são geralmente benignas. Tudo se esvai com o suor. Ou com o sangue.
A esplanada junto à piscina do hotel Intercontinental de Manágua é o microcosmo surreal que espelha tudo. Depois de dez anos de revolução sandinista, de afrontamento aos gringos, de proclamações solenes, de guerra civil, a Nicarágua de 1990 é um país à beira de um ataque de nervos. Tudo pode acontecer. Luis sabe-o: já viu muito. Espera tudo, e não acredita em nada. Nem na Doña Violeta.

Expliquemos: Doña Violeta Barrios de Chamorro é a candidata da oposição ao regime sandinista nas eleições que se aproximam - a Unión Nacional Opositora, uma coligação efémera que vai dos sociais-democratas de esquerda aos grunhos da direita mais caceteira. Há pouco mais de uma década, não pensava em política: era apenas a mulher de Pedro Joaquín Chamorro, jornalista, director do diário La Prensa, que vituperava a ditadura de Anastacio Somoza Debayle - o homem que garantia os bons negócios norte-americanos no país e que um dia explicou candidamente à CBS: "Sou rico porque o povo gosta que eu seja rico." E era. Possuía nove das dez maiores empresas da Nicarágua. Quando em 1972 um medonho terremoto destruíu Manágua, Somoza abotoou-se com a ajuda internacional e não reconstruíu uma parede que fosse. 18 anos depois, a cidade era ainda um bairro de lata pontuado de ruínas. Do pai dele, que o precedera, dizia Franklin D. Roosevelt, ciente da raison d'état: "É um filho da puta. Mas é o nosso filho da puta."
Ora Pedro Joaquín, cavaleiro andante da minguada burguesia liberal nicaraguense, tanto chateou que um dia apareceu morto. Se foi Somoza que o mandou matar, mais lhe valia ter ficado quieto. O povo, ao fim de 60 anos de dinastia somozista, estava no limite da paciência. A revolta popular varreu as ruas de Manágua, afrontou a Guarda Nacional, e abriu caminho ao avanço da Frente Sandinista de Libertação Nacional, até então um puro movimento de guerrilha rural de inspiração guevarista, que tinha por padroeiro o herói mártir Augusto César Sandino, morto à traição por Somoza pai. Em Julho de 1979 as colunas da FSLN entram em Manágua, e Somoza foge para o Paraguai, onde uns anos depois é morto à bomba. Chamam a isto justiça poética.
Como uma nova Cuba no istmo centro-americano, como um farol de esperança para uns ou um sinal do demónio para outros, a aventura sandinista inflama as imaginações, convoca paixões e ódios, sonhos e pesadelos em todo o mundo. É a utopia em marcha. Doña Violeta Chamorro, que largara as lides domésticas para pegar no testemunho do marido assassinado, apoia o novo poder. Mas cedo se desilude. E o La Prensa, pela sua mão, passa a zurzir o directório dos nove comandantes sandinistas como zurzira os somozistas. O desgoverno dos chiquititos é agravado pela guerra sem quartel que lhes é movida de Washington, alarmada com mais aquela revolução no seu quintal das traseiras. Ronald Reagan agarra em descontentes, em antigos somozistas, em visionários sinceros e em puros bandoleiros, e forma aquela que, a par dos mudjahidin afegãos, é a primeira guerrilha pós-moderna, de sinal contrário aos campeões marxistas da libertação dos povos. La Contra, apesar de confinada às selvas, mantém em cheque o exército sandinista. A economia nica beira o caos: a inflação é de milhões ao ano, o córdoba não vale um feijão podre.
Quando o comandante Daniel Ortega e compañeros cedem às pressões internacionais para fazerem eleições em 1990, a Revolução - coisa nunca vista - vai às urnas. Doña Violeta, a dona de casa viúva, é a candidata da oposição unida. Vestida de branco, percorre o país num violetamobile parecido com o carro anti-bala do Papa, acenando em silêncio, como uma aparição diáfana de enorme sombrero contra o sol impiedoso. Os seus apoiantes cantam e dançam: "Se va Daniel, se va Daniel / y ocho se van con el." Há quem caia de joelhos à passagem do cortejo. Está ali a Nuestra Señora que vai meter na ordem os padres-guerrilheiros de boina à Che, como Ernesto Cardenal, seguidores da Teologia da Libertação, que se deitaram a fazer leituras marxistas dos Evangelhos: salvar as almas no outro mundo, sim, mas primeiro fazer justiça aos corpos, neste.
Quanto a Daniel e aos restantes comandantes, multiplicam-se em comícios onde ferve a retórica revolucionária e anti-ianque, perante multidões que muitas vezes são transportadas de terra em terra a bordo de autocarros e camionetas - são los mítines portatiles, os comícios portáteis. De vez em quando encontram-se os de um e outro lado e a coisa descamba em cenas de grossa pancadaria. Eu mesmo fui apanhado no meio de uma, onde voavam paus e pedras. A Revolução ou a Reacção? Naquele início dos anos 90, tornada num laboratório político internacional, dilacerada e miserável, a Nicarágua mergulha no psicodrama.
É nesta conformidade que eu lá aterro. E, na noite do dia eleitoral, vou para a esplanada barulhenta junto à piscina do Intercontinental, um dos poucos edifícios intactos de Manágua. Na véspera estivera até às 4 da manhã a ouvir as histórias do Mário de Carvalho, enquanto à nossa volta uma polaca perdida de bêbeda filmava lenta e obsessivamente as pilhas de cadeiras de plástico arrumadas a um canto.
Agora a orquestra regressou. Lá fora, a terra é percorrida de surdas ameaças. No lago Nicarágua, grande como um mar, nadam tubarões-touro, a única espécie que sobrevive em água doce, conhecidos pelo carácter imprevisível e agressivo, e por serem os seres vivos com maior índice de testosterona do planeta - até as fêmeas a têm em abundância. Estão bem para aquele país, estariam bem a nadar naquela piscina, naquela noite espessa de calor, corpos e música. A cantora repete devorame otra vez.
Aquela esplanada é o lugar que neutraliza tudo. Aquele hotel vagamente em forma de pirâmide parece uma nave espacial, blindada contra os demónios exteriores, onde toda a gente procura refúgio. Ao fim da tarde houvera um qualquer sarrabulho ali próximo. Então, toda a gente - jornalistas, observadores, hóspedes em geral - correu para os televisores, em vez de ir à janela. A realidade não é o que se passa na rua, mas o que dá na CNN.
Luis, ao meu lado emborca cubalibres. Para ele, o país está perdido. "Todo es una mierda," e Doña Violeta não vai solucionar nada. Eu conhecera-a dias antes. E ao conhecê-la, na sua finca dos arredores com tonalidades extremenhas, percebi muita coisa da América Latina. Estendeu-me a mão fina, a pele branca da aristocracia colonial hispânica, com pouco ou nada a ver com a massa mestiça da sociedade que pulula nas ruas e campos da Nicarágua. Em fundo havia Mozart, e não salsa latina. Parecia outro mundo.
Mas aquela mulher de olhos negros é tão nicaraguense como qualquer outra que eu ali vejo. Tem neles a mesma tragédia que vai nos olhos negros das pietás crioulas que choram os filhos mortos de fome ou na interminável guerra civil. Há mais de dez anos que vai, todos os dias, até um cemitério de Manágua deixar flores frescas na campa do homem que amou, morto pelos mesmos demónios latino-americanos. Pertence à raça dos senhores, sim, mas de sangue que já muito se juntou a todos os que se derramaram nesta terra abrasada. Pagou o seu quinhão, e bem caro.
Os chiquititos, como ela trata os sandinistas, fizeram tudo para a impedir de ganhar as eleições. Durante o dia, a televisão estatal passa Batman, o blockbuster do momento em todo o mundo, na esperança de que o povo fique em casa. Aqui e ali irrompem "turbas divinas", grupos que nascem não se sabe de onde para perturbar a oposição onde quer que ela se reuna. Depois a noite vai caindo, e com ela regressam os demónios. Deixo Luis em vias de coma alcoólico, saio da esplanada, do reduto do Intercontinental, e mergulho na cidade caótica, onde desde o terremoto não há nomes de ruas nem números de casas - as moradas indicam-se por "calle frente a los Correos, tercera puerta a la derecha." Passam grupos no terreiro poeirento diante do Palacio Nacional, a que García Márquez chamava "Parténon bananeiro" (foto grande). Em Agosto de 1978, foi aqui que irrompeu um comando sandinista de 19 valentes liderados pelo lendário Eden Pastora, o "Comandante Zero." Dando tiros para o ar, sequestrou a Câmara dos Deputados somozista, berrando: "Quién son los hijos de puta enemigos del pueblo?" Era o sinal da Revolução que não tardava.


12 anos depois ela, a revolução, resiste brava, mas ingloriamente. Na noite sufocante contam-se votos. A UNO de Violeta vai claramente à frente. Então, longe dos olhos de todos, desenrola-se um drama de poder e morte. Daniel Ortega não aceita que dez anos de processo libertador se finem pelo voto. Nada terá valido a pena? Quer sair para a rua em armas. Os batalhões sandinistas estão a postos, só esperam uma ordem. As hostes da UNO não o estão menos. É a noite dos tubarões. Acorre Jimmy Carter, já consagrado nas lides de negociador, que chefia uma delegação de observadores. Agarra Ortega por um braço, fecha-se com ele numa sala, e explica-lhe que a vida é assim, que tem de aceitar a derrota, foi lindo mas acabou-se. Durante horas, o futuro joga-se na conversa entre os dois homens. O velho ex-presidente idealista é a voz da razão, o jovem comandante com dez anos de poder é a utopia teimosa. Shakespeare daria tudo para ser mosca nesta noite tropical, da qual faria uma obra-prima.
Ás seis da manhã, os demónios estão exorcizados. Ninguém dormiu. Toda a gente converge para a grande sala do Centro de Conferências Olof Palme, oferecido pela Suécia, que está a abarrotar de jornalistas e fiéis devotos da Revolução: "verdes" e esquerdistas europeus loiros, barbudos e de sandálias, freaks e libertários de todas as partes - los sandalistas, como resmungam os nicaraguenses mais cépticos. Há lágrimas em muitas faces. Ortega vem com outros comandantes - Tomas Borge, Bayardo Arce, Jaime Wheelock - o semblante carregado, olheiras de quem chegou ao limite das forças. Fala com voz cansada, num discurso belo de arrepiar: já não há ilusões, tudo acabou. Mas ao menos o Mundo sabe que houve um pequeno povo que durante dez anos, contra tudo e contra todos, se bateu por um pouco de dignidade.
Junto a mim, um jovem casal de sandalistas alemães está abraçado, imóvel, a cara escondida no ombro um do outro, chorando o fim do sonho. A manhã quieta, sem uma brisa, clareia sobre Manágua. Caminho de volta ao hotel, sabendo que vivi horas irrepetíveis. Um estranho silêncio cobre a cidade. No horizonte recortam-se vulcões mudos. O Luis deve estar caído algures. A orquestra calou-se, os bêbedos adormeceram nos braços das mulatas, não tarda vêm os empregados ainda sonolentos varrer a esplanada silenciosa do Intercontinental, onde se empilham cadeiras e chaises-longues. Já não há utopias, morreram todas esta noite.

terça-feira, 1 de dezembro de 2009

Dezembro

S. Pedro do Estoril

segunda-feira, 30 de novembro de 2009

Comment peut-on être suisse?

Eu sempre embirrei um bocado com os suíços. Orson Welles já não os respeitava muito, ao dizer, por interposta personagem ("O Terceiro Homem") que enquanto a Itália, em séculos de convulsão e violência, produzira Miguel Ângelo, Leonardo e tudo isso, a Suíça, em séculos de serena democracia, nada mais produzira do que o relógio de cuco. Acrescentarei os chocolates, mas isso também a Itália fez.
Passei a embirrar ainda mais quando uma noite em Genebra, com dois graus negativos e nenhum carro num raio de vários quilómetros em redor, vi um suíço esperar ordeira e estupidamente que o sinal mudasse para atravessar a rua.
Há mais de quatro séculos, no Império Otomano, Solimão o Magnífico recusava-se a entrar em igrejas cristãs, porque se o fizesse torná-las-ia parte integrante do Dar al-Islam, a terra do Islão, e deixariam de ser igrejas. Os cristãos podiam construí-las. Só não podiam é fazer as torres das ditas maiores que os minaretes das mesquitas, o que não deixava de ser justo. Ontem, em referendo, os suíços proibiram os muçulmanos de construírem minaretes na Suíça - um país que só deu o direito de voto às mullheres muitos anos depois da Turquia.
Agora venham falar-me de retrocessos civilizacionais. Afinal onde está a barbárie?
Nas Cartas Persas do barão de Montesquieu perguntava-se: "Como se pode ser persa?" Eu cá pergunto é como se pode ser suíço.

sábado, 28 de novembro de 2009

O dono da rua


Aljustrel

segunda-feira, 23 de novembro de 2009

A quem andar no IP2 entre Beja e Castro Verde por volta da hora do almoço:

Pela sua alminha, não seja parvo. Quando vir uma tabuleta a indicar Entradas (sim, é o nome da terra), entre mesmo. Então procure as tabuletas que indicam o restaurante A Cavalariça. Depois... Bom, depois é lá consigo, que eu nem sei bem o que lhe hei-de dizer. Só sei que há dias lá comi um cozido de grão que até me fez chorar de ternura, o estapor do granito. E migas daquelas que trazem a alma do Alentejo agarrada ao pão e aos coentros. E...
Ninguém me encomendou o sermão, não tenho comissão ou percentagem, nem conheço os donos. Isto é puro serviço público, vindo do fundo do coração. Ou do estômago, sei lá.

domingo, 15 de novembro de 2009

Generation gap



S. Domingos de Rana, Carcavelos

sábado, 14 de novembro de 2009

Via dei Portoghesi











































Roma
Frente ao Albergo dei Portoghesi, a dois passos da igreja de Sant'Antonio dei Portoghesi

quarta-feira, 11 de novembro de 2009

O Diabo à solta nas margens do Nango


Porque é que naquele momento eu desisti de fazer uma coisa e fiz outra? O que comanda as nossas vidas? O que é que nos faz tomar uma decisão súbita num determinado segundo? O destino? O simples acaso?
O que me fez, naquele dia tórrido de 1973, decidir repentinamente não subir para a pesada Berliet atascada nas margens do rio Nango? A verdade é que cheguei a colocar a espingarda sobre a caixa e a pôr um pé na roda para subir. Lá em cima, o Gil, impante como de costume ao sol do meio-dia, mãos nas ancas, chamava-me: "Anda para aqui, daqui é que se vê bem."
Não sei o que ele queria ver, a não ser a largueza da mata em redor, as clareiras de capim ressequido. Mas ele era assim: o cabelo loiro quase rapado, os olhos azuis que cintilavam, a boca fina num ricto de desafio e basófia. Ele adorava aquilo, adorava a jactância, o combate, a dureza e a glória da guerra. Era homem de poucas palavras e riso escarninho, que imprimia aos seus soldados um ritmo infernal e uma mística arrogante que apelava à mais masculina das auto-estimas, quase ascético de hábitos, despojado nas exigências diárias, admirador dos grandes feitos. Judeu beirão, idolatrava o general Moshe Dayan e a sua condução fulgurante da guerra dos Seis Dias: costumava encher o peito de ar, arrotar a cerveja e gargalhar tapando um olho com a mão espalmada: "O zarolho! O zarolho é que os topava a todos!"
Porque não ir também para cima da camioneta, juntar-me ao espectáculo? A tensão, o cansaço e o tédio das longas jornadas militares pedem por vezes gestos simbólicos que dêm algum sentido e alento ao que fazemos, nem que sejam de pura encenação. Não há nada de heróico em desatascar uma camioneta presa na lama, mas um pouco de basófia não faz mal a ninguém. Oferecer o peito às balas de algum atirador que andasse por ali era coisa que o Gil adorava fazer.
Mas de repente, resolvi não subir. Estava calor, e a água aquece nos cantis. Decidi que era mais interessante ir mergulhar o meu na corrente do Nango, de água leitosa mas fresca – uma espécie de frappé de campanha. E foi assim que retirei a G3 da caixa da Berliet e me fui agachar na orla do rio, dez metros ao lado.
Tínhamos saído de manhã de Nambude, dois pelotões sob o comando do Gil, como de costume ao raiar da aurora. A coluna mensal de reabastecimento vinha de Mocímboa da Praia, ofegando penosamente pela picada, a passo de homem, seguindo a vanguarda apeada de "picadores" em busca de minas. Como de costume, limparíamos a picada de eventuais engenhos, encontrá-la-íamos a meio do caminho e regressariamos com ela a Nambude, já montados nos carros. Era a forma de se abreviar uma jornada de apenas 40 quilómetros mas que, naquele caminho aberto na mata, por vezes nada mais que rodados lamacentos, chegava a durar um dia inteiro.
O probema era que no ponto de encontro – a passagem do Nango – a placa de cimento que fazia de ponte havia sido destruída dias antes pela guerrilha. Dela restavam apenas pedaços de cimento e ferros retorcidos espalhados na margem. A única forma de atravessar a corrente era a vau. E a primeira Berliet – a mais pesada, equipada como "rebenta-minas" – não conseguiu balanço suficiente e ficou presa à saída do rio. Quando encontrámos a coluna, o focinho da Berliet emergia, desconsoladoramente apontado para cima. Era necessário juntarem-se quantos homens fossem precisos para a empurrar dali para fora e permitir a passagem do resto dos carros – provavelmente, à custa de manobras semelhantes. Tínhamos ali para umas boas horas.
Não me lembro em que pensava enquanto, acocorado junto ao rio, segurava maquinalmente a correia do cantil mergulhado na corrente. Mas lembro-me daqueles segundos, gravados em imagens fortes como de um filme visto ontem: o rugido do motor da Berliet sobrepondo-se aos gritos de comando e incitamento, e ao raspar da roda que gira no esforço de se libertar. E, subitamente, o estrondo seco, cavo, atordoante, e a escuridão de onde chovem pedras no ar turvo de poeira. Ponho-me de pé num salto. Atrás de mim está um corpo caído. Não vejo nada, há um ou dois segundos de silêncio logo cortado por gritos e gemidos, rezas, berros lancinantes de dor, pragas de raiva e espanto.
Depois, o filme esfuma-se. Tenho apenas a vaga lembrança de errar por um cenário medonho de corpos da cor da terra, caídos um pouco por todo o lado em posições grotescas, onde o sangue põe manchas avermelhadas, espalhados em torno da Berliet ainda mais adornada e com a roda traseira destruída. Há outras figuras que erram por ali como espectros, tentado perceber o que se passa e lidar com um mundo que subitamente explodiu à nossa volta naquele modorrento início de tarde africana. A mina estava lá, colocada fundo, possivelmente tapada com um pedaço de cimento, e ninguém a detectara.
E então tudo o mais se mistura, e das horas seguintes colho momentos desgarrados: o Silva, olhando-me com ar grave e olhos esbugalhados: "Também você, alferes?" Pela cara eu sentia escorrer o sangue quente que me empapava todo – um qualquer estilhaço ou pedra levara-me uma tira de couro cabeludo. E ele a dizer-me: "O Diabo caçou-nos. Leve a malta daqui para fora, que ele anda por aí à solta." E também o Caetano, caído na picada, agarrando-me num braço: "Ai meu alferes, caminhei tanto para vir morrer neste cu do mundo." Eu dizia-lhe: "Não morres nada", olhando-lhe a cara transformada numa massa em carne viva. Não morreu mas ficou cego de um olho. Tinha vinte anos.
Tínhamos todos vinte anos… Como o Gil. Encontrámos o que restava dele a uns vinte metros dali, no meio do capim, desfeito pelo sopro da mina que o apanhou em cheio no alto da caixa da Berliet.
Lembro-me também da chegada dos helicópteros, precedida de uma ou duas passagens de caças Fiat metralhando as redondezas para desencorajar quaisquer aproveitamentos da nossa fragilidade. Foram precisos quatro "helis" para levar os treze feridos graves. E de como me vieram dizer que o piloto estava relutante em levar os mortos para Mueda, deixando-nos com quatro cadáveres durante o resto do dia, e o mais que durasse a jornada naquele Fevereiro africano. Não sei se era verdade ou não e na altura pouco me interessou saber. E quando me pendurei na cabine do Alouette, com a cabeça entrapada, o camuflado e a cara cobertos do sangue e da merda de todas as guerras, eu não estava a brincar quando berrei que ele ou levava os mortos ou comia uma bazucada no helicóptero que já não saía mais dali. Apesar do meu aspecto, não acredito que me tivesse levado a sério. Mas claro que levou os mortos, mais os feridos, e até nos levaria a nós e às camionetas se pudesse. O português tem bom feitio, quando lhe falam ao coração.
Morto o Gil, era eu quem ficava a comandar a força de Nambude. E então eu vi sessenta homens que me olhavam, alucinados pela tragédia, pela morte que a maioria de nós cheirava pela primeira vez, assim de chofre, num caos de pó, sangue e tripas, e percebi que tinha de os levar de volta para casa, custasse o que custasse. Era eu quem tinha que os tirar dali – eu, que só pedia em silêncio que alguém dali me tirasse.
Então passámos a noite ali mesmo, sob um céu de estarrecer, ouvindo os ruídos da mata, o restolhar dos répteis, o piar dos pássaros nocturnos, o longínquo gargalhar de hienas e o bater do coração no peito. Ninguém deve ter pregado olho. E no dia seguinte, eu puxei-os pela picada fora como a um cortejo de danados. Não o teria feito se eles não me tivessem empurrado a mim, se não me dessem a mim mais força do que a que eu lhes poderia ter dado. Todos nós éramos sobreviventes e todos nós cavalgámos a coluna de volta a Nambude como um cortejo fúnebre, mas também como uma marcha para a vida. Se não fosse eu seria outro, e eles empurraram-me, a mim, que avançava de tronco nu junto aos detectores de minas, a espingarda ao ombro, bebendo goles de cerveja quente e pisando os trilhos suspeitos com louco desdém. Mas, nesse dia, eu sabia que era imortal.
O que me levara, naquele segundo, a retirar a G3 do alto da caixa da Berliet e a desistir de subir para a morte? Naquelas horas, o que terá colocado cada um de nós no lugar onde estava, dando a cada um sortes diferentes? O destino? O acaso? Não sei. Não sei o que existe por aí a comandar estas coisas. Talvez o Silva tivesse razão, e o Diabo andasse por ali à solta.E se hoje recordo os vivos que nessas e noutras horas me ensinaram a coragem e a dignidade de viver, recordo sobretudo os que tanto caminharam para irem morrer na margem de um riacho leitoso naquele recanto perdido, ressequido e tórrido do norte moçambicano, longe de tudo, numa quente tarde africana igual a tantas outras. Nunca os esquecerei.

Polvo que lavas no rio

Castro Verde, Outubro

domingo, 8 de novembro de 2009

Para assinalar a data

Eu não estava lá na noite em que o Muro caíu, há vinte anos. Aliás, nem me lembro bem dessa noite. Na altura, não havia CNN em muitas casas, a começar pela minha, que tinha dois canais e viva o velho. Mas tenho ideia de alguém me telefonar a dizer: "Está tudo doido em Berlim. Estão a dançar em cima do Muro."
Apesar de tudo, foi uma surpresa. Naqueles dias de 1989, em que os acontecimentos aceleravam , ainda estávamos muito viciados na imutabilidade das coisas. Há 40 anos que as fronteiras não mudavam, que nada de essencial mudava. Tinha havido o Solidariedade polaco, o Papa igualmente, as Malvinas entre dois países com McDonald's, haveria a Checoslováquia de veludo, eu sei lá. Estava tudo a desabar. Mas apesar de sabermos isso, não queríamos acreditar que o Mundo tal como o conhecíamos ia acabar, e que afinal aquele muro temeroso era tão fininho.
Ninguém acreditava e, vai-se a ver agora, ninguém queria. Nem a Inglaterra, nem a França. Toda a gente tinha medo de uma Alemanha reunificada, de "um colosso de 80 milhões de habitantes," como se repetia na altura em voz trémula - ainda por cima, 80 milhões de
alemães, santo Deus... Era a memória histórica do monstro.
Extraordinariamente, onde parecia haver menos medo dele era nas paragens que mais tinham sofrido com a besta, nessa Rússia onde Gorbachev assistia impávido ao desmoronar do dominó leste-europeu, ao dissolver do cordão sanitário erguido do Báltico ao Adriático para conter de uma vez por todas a agressão capitalista. Não se sabia bem na altura, mas era por não ter escolha.
A URSS era um gigante com pés de barro, estava falida e não podia sustentar mais aqueles regimes. Nem a ela própria, e à sua suposta super-potência. Era um
bluff. Por essa altura lembro-me de falar com Victor Cunha Rego depois de ele ter feito parte da comitiva de Mário Soares numa visita à URSS. Vinha a cacarejar no seu riso inigualável: "Ó pá, andámos nós com medo daqueles gajos durante estes anos todos...Aquilo está tudo atado por arames. Se nos tivessem invadido, os tanques deles paravam ao fim de dez quilómetros."
Seja como for, nesses dias andávamos angustiados, percebendo que a História se estava a fazer e com medo de não saber acompanhá-la. Nesse dia, há vinte anos, percebemos que ela tivera um momento decisivo. Só houve um dia parecido doze anos depois, a 11 de Setembro de 2001. Num mundo já muito diferente do que era em 1989.

terça-feira, 3 de novembro de 2009

Mais memórias de um Muro

Ilha ocidental num mar comunista, rodeada de muro por todos os lados, privada de hinterland, Berlim Ocidental era uma cidade artificial, artificialmente mantida para figurar como farol, ou como montra do way of life ocidental. Era como um doente todo embonecado e ligado a uma máquina, recebendo os alimentos através de um tubo - ou de vários, para ser mais preciso.
E para evacuar era também um problema. Entre outras manigâncias arranjadas ao longo dos tempos, vigorava um acordo Leste-Oeste mediante o qual Berlim Ocidental depositava o seu lixo em território da RDA, mediante um pagamento. Como ao fim de um certo tempo se verificou que a quantidade máxima de lixo autorizada pelo acordo não era atingida, chegou a pedir-se à população que produzisse mais. Era inconcebível que os comunistas não levassem com todo o lixo que eram pagos para receber.
Os estrangeiros tinham mais facilidade em visitar o lado oriental do que os alemães. Faziam-nos recomendações como se fôssemos entrar num jardim zoológico: “Ajam normalmente. Não fiquem a olhar demasiado para as pessoas, elas não gostam de se sentir assim observadas.” Pouco faltava para nos dizerem que não lhes déssemos de comer.
Podia passar-se a pé, no Checkpoint Charlie, ou fazendo uma estranha viagem de metropolitano. Apanhava-se o S-Bahn (rede operada pela RDA) em Friedrichtrasse, por exemplo, e saía-se na estação seguinte, já do lado de lá. Havia, em vez de bilheteiras, um posto fronteiriço. Obtinha-se um visto de 24 horas e trocava-se obrigatoriamente uma determinada quantia de marcos ocidentais por igual montante de marcos da RDA (um câmbio de 1 para 1 absolutamente artificial, já que a moeda oriental de nada valia do lado de cá).
Em poucos minutos e poucos metros, era uma viagem entre dois mundos, separados por um muro. E uma viagem no tempo, também. Saía-se de um frenesi urbano cheio de luzes, lojas, Mercedes e vida, e desembarcava-se no que parecia ser uma cidade parada em qualquer tempo passado. Não era só o cinzentismo das ruas, a ausência de néons e de publicidade em geral, as escassas lojas género capelista de bairro, os carros raros, antiquados e mal-cheirosos, as roupas de modelos que faziam lembrar os anos 40. Era algo mais fundo e entranhado nas pessoas, no seu ritmo de vida, nas suas relações. Comparada com o lado ocidental, Berlim-Leste era uma cidade provinciana, onde as pessoas não sorriam nem paravam na rua a conversar (estávamos na Alemanha, afinal de contas), mas onde as empregadas do café Linden Corso, na Unter den Linden, ou no restaurante giratório na grande bola da torre de telecomunicações em Alexanderplatz, vestidas de batas com rendinhas e sapatos antiquados, ainda eram capazes de nos desejar
guten appetit. E os guardanapos eram de pano.
Praticamente, não havia onde gastar os marcos orientais. Regressar ao lado de cá proporcionava uma sensação de alívio, um pouco estranha. Eu pensava que nem tudo poderia ser mau do lado de lá - afinal de contas eram milhões de alemães que assim viviam, sem Mercedes, néons, ou pizzas. A liberdade? A liberdade é mais premente para quem a conhece, e a RDA, na altura, já levava uma geração de vida.
Mas o problema era que os alemães de Leste, e sobretudo os berlinenses, viviam paredes-meias com o "mundo livre". Se não o viam directamente, ouviam-no, recebiam os seus canais de TV, as suas imagens, os seus ecos. Ideologicamente, o capitalismo podia ter má fama no mundo do "socialismo real", mas o seu brilho e
glamour não podiam deixar de causar efeito.
Uns anos mais tarde, percebi melhor como a generalidade das pessoas se está basicamente nas tintas para os grandes princípios, e quer é viver melhor seja onde for. Há vinte anos, os alemães do lado de lá saltaram o mundo em busca de bananas, que a maioria nunca tinha visto. Talvez a liberdade seja apenas isso. Mas lembro-me também de ler numa revista, naqueles dias de brasa de 1989, o desabafo de uma alemã-oriental: "Um dia acordei e pensei: tenho 40 anos, sou arquitecta, e nunca vi Veneza." Nem só de bananas vive o homem.

quarta-feira, 28 de outubro de 2009

Para o JJ Amarante

O pouco que sei desta foto é que foi tirada no metro de Paris, em 1982. De resto, tenho ideia de que a rapariga era bonita e cantava bem - não me lembro é o quê.
Quanto ao aspecto flou e embaciado da imagem, é porque se incluía numa série de slides que mandei digitalizar, mas quem tratou disso fez uma porcaria de um trabalho. Achei graça, no entanto, a esta ter ficado assim, como que saída das brumas da memória.
Para mim, as fotos são uma espécie de "aide mémoire." Um pretexto, muitas vezes, para relembrar e recriar as circunstâncias que as rodearam. Porque cada foto tem a sua circunstância, e às vezes essa é muito mais interessante que a própria imagem que dela ficou.
O destino da generalidade das fotos que se tiram é o fundo de uma gaveta, um álbum que nunca mais se vê, ou os meandros de um disco rígido. Como toda a gente, tenho imensas nessas condições. À medida que avanço na vida, apetece-me cada vez mais desencantá-las nessa espécie de arqueologia da memória. Não se trata de "recordar." Trata-se de fazer valer esses momentos, de os actualizar através de um novo olhar. Concluí que um blogue é uma boa forma de fazer isso, até porque tem a vantagem de dar a ver tudo isso a quem o quiser fazer.
E, no fundo, se eu me dei ao trabalho de tirar essas fotos, é para que elas sejam vistas um dia, por mim e por quem calhar. Senão todas, pelo menos as que eu for escolhendo. Quanto mais não seja, porque as tirei.

Às vezes a gente anda por aí e vê coisas que poderia ter escrito

Trás-os-Montes, região de Moncorvo

Memórias

O post anterior, e outros que já aqui coloquei, nada tem a ver com o presente, com a actualidade. As minhas janelas não estão abertas apenas para o mundo que vou vendo e sentindo, mas também para o que já vi e senti. Delas vejo mais do que a paisagem que me rodeia: vejo-me a mim como fui, onde fui, e o que fui. Nós não somos apenas o tempo que passa, somos tudo o que vivemos.

Estas histórias de mim e de coisas que vi e senti não estão escritas como as escreveria na altura. Sobre parte delas eu escrevi à época, com intuitos, ângulos e finalidades diferentes de hoje. O que sobreviveu de tudo isso serve-me hoje como se de meros apontamentos se tratasse. O que eu quero é recriar a minha memória desses lugares, gentes e sentimentos que tive, relendo o passado, olhando-o de uma distância às vezes já grande. Muitas das coisas de que falo já nem sequer existem, ou, se existem, são já muito diferentes. Não importa: elas existem na memória. No fundo, é onde tudo existe para nós.

terça-feira, 27 de outubro de 2009

Vaya con Diós

Panamá, vista da cidade velha. Em baixo: onde era o bairro El Chorrillo

El Chino, “taxista e guia turístico,” guiava o vetusto Chevrolet pelas ruas da Cidade do Panamá pendurado no volante, como se o abraçasse. Tinha cara de poucos ou nenhuns amigos, e a forma como resmungava só ajudava à ideia.
Era um acossado, o velho Chino: pelo trânsito, pelas pessoas, pela vida. Olhava em volta como se indagasse quem lá vinha, farejando ameaças. Tinha um revólver no porta-luvas e apontava o dedo ossudo para os chavales e demais malandragem que borboleteava nos passeios do bairro de San Miguelito. Não fazia a coisa por menos: “Todos ladrones. Habria que matarlos a todos.” Não poupava ninguém, e quando eu li alto a placa na parede do quartel das Forças de Defesa do Panamá, que exorta quem lá entra a morrer pela Pátria, ele rosnou: “Morian por Panamá un carajo. Se fueran todos, huyendo.
Isto de fugirem todos fora alguns meses antes, quando em Dezembro de 1989 os Estados Unidos resolveram ir ao Panamá buscar Manuel Noriega. O “Cara de Ananás” estava a tornar-se incómodo ali naquele rincão do quintal das traseiras da América, nesse Panamá por eles talhado à medida de um canal entre dois oceanos. Então, Bush pai mandou as suas tropas, e entre elas gente que só o nome põe respeito – 82ª Divisão Aerotransportada, 6º Regimento de “Marines”, lendas talhadas de Bastogne a Khe Sahn. Mas naqueles dias de História suspensa, ainda nos efeitos da Guerra Fria, eles ainda vinham de um defeso grande, galuchos imberbes cuja primeira vaga de assalto Mário de Carvalho, operador de câmara da CBS para tudo quanto é guerra, acompanha divertido.
“Cada puto daqueles tinha quase tanto poder de fogo como todo o meu pelotão de Comandos na Guiné,” havia de me contar ele numa esplanada de Manágua, noite dentro. “Mas não faziam a mínima ideia de para onde iam nem do que iam fazer. Eu ia-lhes contando coisas da guerra e dando conselhos, e eles olhavam-me de olhos arregalados.”
Os pesados C-130 dos ianquis vieram razando sobre a costa de Panamá by the dawn’s early light . Mas tanto a maré estava baixa quanto o salto dos airborne foi um pouco adiantado, e boa parte da primeira vaga ficou espetada no tarrafo lodoso, como velas num bolo de aniversário. Pois o Chino bem podia arrepelar-se com o pouco fervor patriótico dos seus conterrâneos: tiveram que ser alguns dos próprios habitantes da cidade, acordados por todo aquele escarcéu, a ir puxar os magalas invasores para fora do lodo, onde alguns ficaram horas, tolhidos pelo peso do equipamento e de M-16 erguida nos braços, para não estragar. “Uma cena que só visto.” Mário cofia o bigode lusitano.
Acordado estava Jair, músico de Curitiba que um dia rumara ao Panamá de pandeiro e violão “por causa dos dólares.” A essa hora ainda ele estava a dar cantada a uma muchacha renitente, quando se ouviram tiros e rajadas para o lado do mar, e depois rebentamentos que parecia vir tudo abaixo. “Puts! Os gringo vem aí!” Foi remédio santo. “Fomos a correr para casa da muchacha, mermão. Fiquei lá três dia.” Há males que vêm por bem.
Os gringos haviam de chegar um dia. Chegam sempre, nesta América Central que nasceu tão longe de Deus e tão perto dos Estados Unidos. Chegaram, e quase escaqueiraram uma cidade inteira para levarem preso o Caradepiña para uma esquadra de Miami, onde ficou até hoje a penar por narcotráfico e por ter passado a fazer fora do penico quando antes era tão amigo da CIA e da DEA.
Depois puseram lá outro presidente, Guillermo Endara, e prometeram-lhe que pagavam ao Panamá os estragos, que não foram poucos: só o bairro de El Chorrillo, que era de casas de madeira, levou em cheio com uma bomba daquelas enormes, e desapareceu, feito em aparas e tições. Mas não pagaram.
Então o presidente resolveu inverter o fadário. Afastou-se dos gringos e aproximou-se de Deus. Foi fazer greve de fome para a catedral de Panamá, um imponente templo espanhol na cidade velha. Isto foi quando eu lá estive. Fui vê-lo: numa das laterais da igreja, em mangas de camisa, a uma mesa simples, Endara despachava o expediente que lhe passavam ministros e secretários, enquanto em volta circulavam turistas, fiéis e curiosos, tudo envolvido no murmúrio das rezas.
Eu olhava para aquilo alucinado, era tudo tão latino-americano que arrepiava. Tinha nos ouvidos os resmungos e invectivas do Chino contra a vadiagem e cobardia dos seus irmãos, as gargalhadas brasucas do Jair, esfregando a barriga com volúpia, e o irónico olhar veterano do Mário, contando como filmara a invasão com um olho na câmara e outro nos invasores.
De todos, o único que não tinha lá estado na altura da invasão era eu. Mas ouvi-lhes as histórias. Quem sabe se o Jair voltou a Curitiba cheio de dólares, ou abalou para outras muchachas. O Mário fez mais umas tantas guerras de câmara às costas, e tanto quanto sei descansa agora numa abençoada reforma. Quanto ao Chino, não sei obviamente nada. Ou perdeu a cabeça e varreu a tiro a malandragem de San Miguelito, ou reformou-se também calmamente. Era um castiço. Já lá vão 20 anos, mas ainda tenho na cabeça a imagem dele a atirar-me a bagagem para o passeio diante do aeroporto de Panamá, e a rosnar-me: “Vaya com Diós.”