sexta-feira, 28 de agosto de 2009

As culpas do costume ou o costume das culpas


De cada vez que há alguma tragédia, fica tudo à procura de culpados. Cai uma ponte, arde uma floresta, desaba uma falésia e, com uma insistência próxima do desespero, ecoa essa pergunta angustiada: de quem foi a culpa? Como se para tudo o que acontece fosse obrigatório haver culpados. Mas não é - mesmo neste país impune, em que ninguém tem culpa de nada e ninguém paga por nada.
O facto é que, por um lado, encontrar culpados isenta-nos a nós de culpas. Por outro, sossega-nos, ao convencer-nos de que há uma certa lógica, sentido ou mesmo moral neste mundo, e de que, se as coisas acontecem, é porque alguém fez com que, ou deixou que, acontecessem. Cada vez mais a natureza aleatória das coisas, a imprevisibilidade da vida – e sobretudo da morte – nos é intolerável. Achamos que podemos controlar tudo, e que se o fizermos seremos eventualmente imortais. Dizem-nos para deixarmos de fumar, para comermos menos gorduras, para fazermos exercício senão sofreremos coisas tenebrosas. Acabamos por nos sentir culpados de ficar doentes, como se fosse certo que o poderíamos ter evitado, como se a vida não fosse já de si uma doença - sexualmente transmitida, e de prognóstico fatal.
Queremos garantias contra tudo – contra a chuva e o bom tempo, contra a gripe e os tremores de terra. Não suportamos o acaso ou a má-sorte: queremos estar confortados na ideia de que tudo se pode prever e evitar, e que se algo de mau acontece, é por culpa de alguém.
Mas tenho uma novidade: não é assim. Por mais que façamos, envelhecemos, adoecemos, morremos. A morte é certa, gente. Não é uma escolha nossa: é uma inevitabilidade. Se tivermos juizinho, o melhor que nos pode acontecer é morrermos saudáveis (e, com alguma probabilidade, estúpidos). Shit happens. As merdas acontecem, por mais que controlemos o colesterol ou que olhemos para todo o lado antes de atravessar a rua. E podemos apanhar com uma falésia em cima se formos para debaixo dela.
As falésias caem – é por isso que são falésias. Não caem todos os dias, nem todos os anos. Mas caem, e quando caem acertam no que estiver cá em baixo. Não é possível garantir a 100 por cento que uma delas não vai cair amanhã. Mas também não é possível, nem desejável, interditar todas as praias de falésias do Algarve, ou escorá-las com lindas paredes de betão. É possível, no entanto, avisar as pessoas dos perigos – e, ao que parece, isso foi feito na praia Maria Luísa. Havia tabuletas, em várias línguas, dizendo que a falésia era perigosa. Ninguém foi obrigado a ir para junto dela. Ninguém podia dizer que não foi avisado.
Eu fui ao Algarve este ano, e fui a praias com falésias. Mesmo sem ler os avisos (que nem sempre existiam) pensei: “E se esta porcaria cai? E se rola uma pedra lá de cima e me acerta?” É uma simples questão de bom senso. Nem sempre me afastei, como a hipótese de um acidente não me impede de andar de avião. Mas nunca me passou pela cabeça que, se acontecesse o que eu temia, a responsabilidade não fosse exclusivamente minha.
Mas isto de responsabilidade individual é uma coisa pesada. Queremos a mínima possível. Queremos que o Governo tome conta de nós, desde que saímos de casa até que voltamos – e se também cuidar de nós quando lá estamos dentro, melhor. Queremos que nos trate, nos alimente, nos mantenha e nos indemnize por todo o mal que a vida nos faz, de toda a injustiça, de todo o caos. Queremos dormir descansados sabendo que há culpados de tudo e que serão castigados. Queremos banir das nossas vidas o incerto, o incontrolável, o inatribuível, o injustificável, o incomensurável, o inexpiável, o imprevisível e o improvável.
Dizia Agostinho da Silva que “precisamos de fazer da nossa vida uma ficção, para conseguirmos torná-la suportável.” No fundo, queremos um guião com final feliz – em que os Bem triunfe e o Mal seja castigado. Mas não é assim. Não há guiões, e pode muito bem ser que não haja culpados. Pode muito bem ser que a verdade, dura, chata e politicamente incorrecta, seja que muitas vezes se morre por pura desatenção ou descuido, ou por um enorme, trágico, e insuportável acaso.

1 comentário:

  1. quem é o escritor do texto: As culpas do costume ou o costume das culpas.
    Aguardo resposta:
    avggarcia@uol.com.br

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