terça-feira, 8 de dezembro de 2009

Ser português é chato

Estive há dias a ver um programa de TV chamado “Ídolos,” que consiste na audição de jovens pretendentes a artistas da rádio, TV, disco, video e MP3, por um júri que os aprova ou elimina (esta descrição é para memória futura, pois pode ser que este texto fique na História, e o programa não).

Não contei os concorrentes, mas seriam na ordem dos vinte. Contei sim, porque era fácil, os que cantaram em português. Foram dois. Os cerca de 18 restantes cantaram em inglês, imitando os meneios e trejeitos linguísticos de quem fosse nado e criado em Brooklyn ou na Califórnia. Mas eram Carinas,Tatianas, Fábios e Cátias vindos da Trofa, do Montijo, da Maia ou da Cruz de Pau.

O espectáculo foi deprimente, mas previsível. Afinal, estamos no país de David Fonseca, um cantor português muito apreciado que nunca cantou uma palavra em português, e de Jorge Palma, que só canta em português, sim, mas com esforço: ainda há tempos confessava em entrevista que durante muito tempo foi incapaz de escrever um verso que fosse na sua língua.

Não estamos bem na nossa pele, nem na nossa língua. Não estamos à vontade com o português. Temos vergonha dele. Nunca vi uma coisa assim, a não ser talvez, num processo algo semelhante, nos intelectuais expatriados romenos como Émil Cioran ou Mircea Eliade, filhos, como nós, de uma língua e de um país culturalmente periféricos, e que se refugiaram no francês – Cioran falava do “cheiro a sol e a bosta” da sua língua-mãe.

É como se quiséssemos fugir desta fatalidade original que nos coube – a de termos nascido aqui, amarrados a uma terra e a uma língua que nos impede de sermos como os outros. Ser português é uma limitação tremenda, apenas contornável macaqueando quem o não é. Por isso fazemos questão de pronunciar tão bem as línguas estrangeiras, e nos rimos dos toscos espanhóis que falam inglês com sotaque de Albacete. Por isso nos misturamos na paisagem quando vivemos algures. Somo o povo mais camaleónico da Terra. Ninguém diria que há um milhão de portugueses em Paris.

Mesmo no uso do português somos tímidos.Temos medo das palavras, usamo-las como se nos queimassem a boca ou não tivéssemos direito a dizê-las. Quando empregamos uma expressão menos usual, e nem é preciso que seja muito, rodeamo-la de desculpas que lhe amorteçam o impacto: “Passe a expressão,” “Por assim dizer,” “Como se costuma dizer.” Povoamos a escrita de “comas,” «aspas» e
itálicos. Dizemos I love you para não termos que dizer amo-te, exclamamos merde e fuck porque parece mal dizer merda e foda-se. “Na língua inglesa soa sempre melhor,” cantam os Clã pela voz de Manuela Azevedo.

Ao ouvir os jovens dos “Idolos” fiquei como eles, a achar que lá fora é que se faz bem, que no estrangeiro é que é bom. Seria quase impensável ver alguém em Espanha, em França, no Brasil ou em Itália vir para um programa destes cantar em inglês ou noutra língua que não fosse espanhol, francês, português ou italiano. Até podia haver alguém que o fizesse, mas seria sempre uma excepção, e uma atitude corajosa. Em Portugal, a excepção – e a coragem – é cantar em português. Quase diria que é ser português.

8 comentários:

  1. vamos por partes.
    "esta descrição é para memória futura, pois pode ser que este texto fique na História, e o programa não". cedo piastes.
    o david fonseca não só já cantou muitas vezes em português como o fez muito bem, tanto na canção da rita do sérgio godinho para o disco "irmão do meio", como com os humanos, banda que recriaram temas inéditos do antónio variações. o david é um excelente exemplo. é um artista que cresceu sob a influência da cultura anglo-saxónica. provavelmente tem dificuldade em escrever na sua língua porque na altura em que formava a sua personalidade era injectado pela cultura popular americana. não se pensa nisso quando se tem 14 anos. faz-se e pronto, sai naturalmente. o sérgio godinho confessava numa entrevista que no início cantava em francês porque sempre que abria a goela na língua de bocage soava-lhe tudo a zeca. é natural.
    talvez tenhas razão - acredito verdadeiramente que estás certo - que o factor periférico da nossa cultura seja uma justificação, mas não pode ser um motivo de descredibilização da escolha cultural de uma criança de 14 anos que mais tarde só se sentirá à vontade num registo que não o da natureza cultural do seu país.
    por último, eu amo-te, caralho, mas se te apanho a ver os ídolos outra vez vamos ter uma conversa muito séria.

    (já agora, reparei no outro dia que o novo single do david fonseca é uma cópia do "por una cabeza" do carlos gardel. o azar dele é que eu tornei-me fanático de gardel aos 8 anos depois de ver "o pátio das cantigas")

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  2. ah, tenho mais uma reclamação: o facto do blog ser preto com letras brancas cansa-me os olhos.

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  3. Confesso que não percebi essa do 'David Fonseca cresceu sob a influência anglo-saxónica'.
    Onde é que o sujeito cresceu? Bristol? Edinburgh?
    Ou foi em Leiria e mais tarde em Lisboa?!
    Porque será que essa influência só existiu em Portugal? (se é que existiu ...).
    Vivi vários anos na Noruega e na Finlândia e não vi lá 'essas' influências.
    São mais burros, seguramente.

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  4. alopes,
    se quiser traço-lhe um mapa de bandas europeias que sofreram uma enorme influência da cultura pop anglo-saxónica. em portugal, por exemplo, antes disso sofreu-se uma enorme influência da cultura francesa. sofrer essa influência tem que ver com o que os media fazem chegar ao público, com o mediatismo e a facilidade da comunicação, tanto de quem a faz como de quem a recebe.

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  5. Ó Jorge:
    Como diria o açougueiro: vamos por partes.

    Aquilo de ficar para a História era piada. Mas agora já acho que, com ajuda, pode ser verdade.

    Dizes tu que“o david fonseca não só já cantou muitas vezes em português como o fez muito bem, tanto na canção da rita do sérgio godinho para o disco "irmão do meio", como com os humanos, banda que recriaram temas inéditos do antónio variações”
    Digo eu: Isso não são “muitas vezes”, são duas. E são duas gracinhas episódicas, em colaboração com outros. Duas habilidades laterais. A carreira do David Fonseca foi, e é, feita a cantar em inglês.

    Dizes tu, para justificar não sei o quê (e acabando por desvalorizar o teu próprio argumento acima) que o David cresceu sob influência da cultura anglo-saxónica, a ponto de, provavelmente, ter dificuldade em escrever na sua própria língua.
    Digo eu: E então? Achas isto bem? Em que raio de país vives tu, que achas natural um adolescente crescer sob influência de uma cultura a ponto de ter dificuldades em se exprimir na sua, e mais tarde “só se sentir á vontade num registo que não o da natureza cultural do seu país”?
    Achas que isso acontece também em Espanha, em França, no Brasil, em Itália? Porque é que aos nossos adolescentes acontece isso, e aos deles não? A cultura anglo-saxónica não chega lá? Claro que chega. Então porque é que eles resistem e nós não? Não é afinal esse o cerne da questão? Não foi disso que eu falei? Afinal, o que disse eu de errado?

    Não estou a descredibilizar a escolha cultural de uma criança de 14 anos, mas de um matulão de trinta e tal, que já teve mais que tempo de afinar as suas escolhas culturais. Estou, sobretudo, a descredibilizar as escolhas culturais de um país inteiro, no qual um cantor como o David Fonseca não é um mero epifenómeno para consumo no mercado internacional – como há em todos os países e também naqueles. Vendo bem, eu não critico o David Fonseca, que faz o que gosta de fazer, e o faz até muito bem; critico, sim, o país que o coloca, culturalmente, num lugar em que ele não devia estar.

    Finalmente: Já tinha pensado nisso da cor e das letras. Mas pensarei nisso mais a sério quando te deixares dessa paneleirice de escrever só com minúsculas. É que também faz muita confusão à minha pobre cabeça.

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  6. aquilo da piada era uma piada. eheheh.

    a cultura pop entra com mais facilidade em sociedades com pouca resistência cultural. dou-te toda a razão. aliás, dei-te. mas essa permeabilidade não é responsabilidade do david, do francisco ou do manel. era isso que eu queria dizer. pode também ter sido só uma fase. hoje há cada vez mais artistas a exprimirem-se na língua portuguesa. por outro lado, a cultura mtv é cada vez mais forte e, infelizmente, também já tomou conta desses países mais impermeáveis como frança ou espanha.

    quanto às minúsculas foi uma experiência para o blog, para uniformizar os textos. uma espécie de exercício estético. sou espectacular, não sou?

    o tom barman tem um filme engraçado sobre essas particularidades culturais de uma cidade muito parecida com lisboa: a antuérpia. chama-se "anyway de wind blows".

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  7. A propósito da influência francesa que houve em Portugal em tempos, no que respeita á música, e que referiste:
    Em França, houve uma grande onda rock - e até folk - nos inícios de sessenta. Curiosamente, não produzia músicas originais, era quase tudo importado de Inglaterra e dos EUA, mas traduzido e cantado em francês. Essa onda bateu forte cá em Portugal. O chavalito que eu era, antes de conhecer o "Blowing In the Wind", conheceu o "J'écoute dans le Vent." Mais curiosamente ainda, e numa espécie de atitude inversa, muitos dos Jean-Phillipes e Renés e Pierres que passavam para francês músicas em inglês trocavam os seus nomes franceses por nomes artísticos ingleses: Johnny Halliday, Richard Anthony, Jack Rivers, etc.

    Ah, e isso de ver os Ídolos: só o fiz por curiosidade científica. Eu é mais filmes de porrada e gajas boas.

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  8. eu é mais pornografia. Adoro! Seja ela da escola anglo-saxónica, escandinava ou francesa. Da espanhola não gosto muito, mas isso fica para outro post.

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