sábado, 8 de agosto de 2009

Paisagem com líquido

O lago do Alqueva visto dos altos de Monsaraz. Percebe-se que aquela água não pertence originalmente ali. Continua a ser um elemento estranho, um borrão de tinta caído sobre a charneca. Foi adicionado à paisagem e ainda não se casou com ela.
Ouvi um dia alguém dizer que as ilhas que surgem aqui e ali à superfície das águas "parecem a terra a querer respirar."

Revisitação: Histórias simples do meu bairro

Aqui ao pé de casa havia uma pequena pastelaria, coisa asseada e digna, onde geralmente íamos tomar o fumegante alento matinal de cada jornada quotidiana. Era propriedade de um jovem casal alentejano. Ele, ensimesmado e sem história nem assunto, com um ar até resignado; ela, garrida criatura loira, espécie de Mariah Carey ainda mais suburbana que a original, que não fazia mistério do seu fascínio pela parte masculina da Humanidade, e geralmente se ataviava de modo a chamar-lhe a atenção: blusas ostensivas, jeans de número abaixo, botas de franjinhas e brilhantes ou sapatos a dar para o agulha.
Há tempos, e sem qualquer aviso prévio, a pastelaria apareceu fechada. Cá por casa, a coisa intrigou-nos, pois nada o fazia prever. Tivemos que mudar de escala matinal. E assim continuou.
Hoje, a nossa prestimosa vizinha Dona Alzira, alma atenta ao mundo em redor, apanhou-nos na escada e revelou-nos o mistério:
Então foi que a rapariga se terá metido com o marido de uma cabeleireira quase adjacente. Esta, brasileira, descobriu o enrolo e é que não vai de modas: no dia seguinte, à hora do almoço, pastelaria cheia de comensais, irrompe pelo terreno inimigo, acareando a messalina.
Não temos relatos precisos da ocorrência, mas terão soado clamores de “Vem cá vagabunda, cê num tem homincasa não, sua sem vergonha?” Foi, de fonte segura, um tal arraial que a freguesia debandou, guardanapo entalado e bitoque por comer, como se um terramoto se abatesse sobre a zona. Ninguém pagou a conta, perante a patente falta de condições para tal. Tudo acabou logo ali, em refrega de lota pesqueira, estilhaçar de loiça e rasgar de roupa suja. Na deriva do pandemónio, a locanda correu taipais e já nem serviu lanches.
Do casal não tenho notícia. Parece que a adúltera foi recambiada para o Alentejo. A cabeleireira voltou a aviar extensões, bufando dignamente de fúria. E eu passei o dia de hoje relativizando a maioria das mesquinhas questões materiais da vida diária, pois percebi que ela tem coisas muito mais importantes, fascinantes e eternas.
A pastelaria reabre brevemente, com nova gerência.

sexta-feira, 7 de agosto de 2009

Revisitação: Post(al) de Outono

(Daqui)
Às 10 da manhã da passada segunda-feira estavam 5 graus em Riaño. O ar frio e sem vento vaporizava-se sobre as águas paradas da barragem, que pareciam ferver. E uma nuvem ondulante colava-se às cumeadas rochosas da cordilheira cantábrica. Era tão belo que quase fiquei deprimido por não ser possível apanhar aquilo tudo com uma simples câmara fotográfica.


Ali, na antecâmara dos Picos de Europa, eu contemplava uma Espanha silenciosa e fria, um mundo distante de tudo, parado numa indiferença milenar e na sua majestade natural. Uma Espanha que não era a minha.
Não, a minha Espanha não era esta. A minha Espanha era a do Sul, com todos os seus clichés – sol, calles abrasadas, pó e charnecas desoladas, tapas, flamencos e pasodobles. Uma Espanha inicialmente imaginada na meninice através de visitas ao Ribatejo aqui ao pé da porta – uma Espanha que cheirava a cavalos e a azeite, com cartazes de touros, pátios mouriscos e uma língua que pouco mais era do que um português apalhaçado. Lisboeta de pai e mãe, a minha Espanha não é a de Vigo ou a Coruña, mas a de Badajoz ou Sevilha.
Até hoje, em cada ida a Espanha eu não consigo evitar compará-la com essa imagem inicial, e acho que nunca deixarei de o fazer. Ainda hoje, e mesmo muito depois de ter descoberto as sonoridades viscerais de Garcia Lorca, ou a força e a beleza plástica de que a língua espanhola é capaz, até numa simples crónica de jornal, eu contraponho ao que oiço ou leio essa caricatura de português que me soava na infância ainda povoada de Joselitos, Marisóis, palhaços de circo, pesetas fracas, caramelos baratos e imagens de gente de alpercatas trazendo as cicatrizes de uma vaga guerra civil travada numa terra cruel onde se matavam touros na arena.


Não, a minha Espanha não era esta das paragens quase alpinas, das gentes de fala sóbria e sotaque austero – esta España húmeda de que falava Ortega y Gasset quando, através dos penhascos cantábricos, passava como eu das planuras castelhanas para as matas e pastos verdes da costa asturiana, envolta em brumas atlânticas, de que se diz ter por fronteira norte “a Inglaterra, com o mar de permeio.” A verdade é que lá também dizem que “a Espanha é isto, e tudo o resto não passa de território conquistado aos mouros.”

É no fundo por esta não ser a minha Espanha que eu amo a Espanha e gosto dos espanhóis. Porque gostam da vida e de ser o que são, e pelo país que têm, onde há de tudo. E porque, como se vê pelas citações, também têm complexos mais ou menos velados – de inferioridade em relação ao Norte, de superioridade em relação ao Sul. Esse país a que, apesar de tudo, me orgulho de não pertencer, também é um pouco meu, e de todos nós aqui neste canto. Parafraseando Jean-Marie Le Pen de forma benigna, j'aime bien les espagnols, surtout chez eux.

Revisitação : Contos de ao pé da porta.


(Daqui)
Revisitar o mundo pode ser, por exemplo, ir a Granada ver o Alhambra, e pelo caminho atravessar os mil arcos da mesquita de Córdova e os mil montes do al-Andalus. Desde logo, nenhum português poderá perceber onde está e o que é sem fazer este caminho com os olhos bem abertos.
E, já agora, o caminho da Espanha inteira, para entender o que somos e o que não somos. O resultado pode ser uma depressão inicial, porque a Espanha somos nós, mas bastante mais extremados. Lá o calor é mais quente, o frio é mais frio, as alturas mais altas, as planuras mais desoladas, as distâncias mais distantes, os defeitos mais mortíferos e as virtudes mais sublimes.
Olhe-se cá de baixo os cumes nevados da Sierra com 36 graus à sombra, e percebe-se melhor porque há duas Espanhas. Vejam-se os penhascos de Ronda, o desfiladeiro alucinante cavado no meio da cidade onde segundo a lenda se inventaram as touradas, e para onde na guerra civil foram atirados em poucas horas 500 alegados fascistas como que para as goelas do Inferno, e entende-se o resto. Em Portugal não havia onde fazer isso.
O determinismo geográfico tem limites, mas ali, na meseta onde todas as coisas são menos temperadas, percebe-se que as pessoas também o sejam. Ver Córdova e a espantosa mesquita, as rendas de pedra do Alhambra e a vega granadina faz-nos entender que sempre vivemos numa espécie de quintal das traseiras. Mas, à parte isso, faz-nos entender a saudade que corre na memória colectiva do Islão. Foi aqui que ele ergueu o que foi em tempos a sua maior jóia. E as verdes pradarias e colinas prometidas aos mortos de Alá serão estas que se estendem em torno e para lá de Sevilha e do Wad al-Kebir, o "grande rio," cravejadas de
pueblos brancos teimosamente agarrados às escarpas e à memória de la frontera. Percebe-se porque é que a cor do Islão não é o ocre do deserto, mas o verde que representa as árvores que dão sombra e frutos, a água que retempera, a vida. O al-Andalus é o paraíso não perdido, mas “roubado,” e que ainda hoje bin Laden evoca nas suas arengas de vingança. Nunca secará a lágrima que Boabdil deixou correr ao olhar Granada pela última vez: Llora como una mujer lo que no has sabido defender como un hombre.
Mas uma freira caminhando pelas vielas do bairro de Albaicín como num
suk magrebino, ou a catedral cordovesa que nasce e se mistura quase naturalmente na mesquita em volta são odes a um mesmo Deus e um dos mais patentes desafios às trincheiras civilizacionais. Nem o grosseiro palácio que Carlos V (o mais europeu dos imperadores) ergueu junto aos delicados palácios Nasritas como um desajeitado símbolo de poder e conquista consegue destruir o poema.
Talvez sejam, quem sabe, não apenas ecos do passado, mas imagens de futuros possíveis. Aquele não se fez sem sangue, nem certamente estes se farão sem ele. Mas nos jardins do Alhambra há rosas belíssimas.
Dale limosna, mujer
Porque en la vida no hay nada
Como la pena de ser
Ciego en Granada.