sexta-feira, 21 de agosto de 2009

As torres de San Gimignano

Num dos lados da praça principal de San Gimignano existe uma gelataria que ostenta orgulhosamente o diploma do primeiro lugar no Campeonato Mundial de Gelados. Eu nem sabia que existia tal coisa. Mas, obviamente, cuidei de provar os gelados campeões do Mundo. Para a posteridade, fica registado que o dito manjar sabe ao que deve saber a neve que cai no Paraíso sobre as frutas dos pomares divinos.
San Gimignano é conhecida pelas suas catorze torres, concentradas no centro histórico. Vistas de longe, parecem uma pequena Manhattan medieval, erguida numa colina sobre a paisagem toscana. A vila é uma escala obrigatória pelo que conserva de sabor antigo no casario de pedra castanha, ruelas, praças e recantos onde se descobrem alpendres, claustros, paredes cobertas de frescos e a memória de séculos. Percorri tudo aquilo. No entanto, o que mais recordo agora é o sabor daquele creme gelado, mais efémero do que um dia de vida. As torres centenárias de San Gimignano sabem-me hoje a meloa, morango e manga.
De Siena trago a espantosa luz do entardecer, quando o sol coado pelas nuvens doira tudo e acentua o castanho-avermelhado do casario. De Pisa, tenho o cheiro do mar, a pior pizza que comi em Itália (é verdade) e as intermináveis figuras de parvo feitas pelos turistas no relvado tentando tirar fotos a fingir que estão a segurar a torre ou a apanhar com ela em cima. Não sei como será San Gimignano sem gelados, Siena sem nuvens de trovoada ao fim da tarde, Pisa sem turistas ou pizzas intragáveis. O que trazemos das cidades é muito pouco, porque elas não se deixam desvendar facilmente. Não sei como é Florença no Outono ou no Inverno, e muito menos o que é realmente a cidade, o seu lado menos evidente, a sua alma, que apenas julgamos entrever para lá de uma janela entreaberta, num vulto que passa, nuns olhos que nos cruzam no passeio. As terras têm uma fachada que oferecem ao forasteiro, mas para lá da qual lhe resistem.

A mulher da minh'alma já tinha passado aqui cerca de um mês, há anos. Viveu-o na melhor das

condições possíveis: com gente da terra, que lhe desvendou os recantos, os segredos, as misérias, o ritmo quotidiano. Entrou nos quartos e nas cozinhas, comeu com eles à mesa e bebeu do seu vinho, riu e chorou com eles, ouviu-lhes as preces e as pragas, viu céus estrelados em lugares secretos no alto das colinas e em castelos que não vêm nos roteiros.
Eu não conheci Florença, nem San Gimignano, nem Siena ou Pisa – como não conheci tantos lugares por onde andei no mundo. Trouxe de lá umas impressões, uns cheiros, umas fotos. Não saboreei: devorei, apertado pelo tempo e pelos quilómetros, tentando descobrir a alma dos lugares nas ruas e ruelas, nas latadas, nos campos de trigo, nas colinas raiadas de vinhedos e olivais, nas "villas" entre os ciprestes que, como agulhas solenes, pontuam a paisagem rural da Toscânia, tida por muitos como a mais bela do Mundo. Entrevi essa alma aqui e ali – por exemplo, na conversa dolente de dois velhos sentados num banco de aldeia que podia ser no Alentejo ou em qualquer outra parte, comentando a chegada iminente da chuva sobre os campos. Percebi-a quando parei numa tasca em Panzano pedindo um afetatto misto e dois copos de chianti - e o dono, com um cortante "Posso parlare?", me interrompeu o pedido e discriminou, de ementa na mão, todas as outras delícias que tinha. Então eu disse-lhe: "Queremos um affetato misto e dois copos de chianti". Ficámos amigos.
Ouvi os velhos durante cinco minutos – o tempo de desentorpecer as pernas. Estive uma hora e meia em Panzano, numa varanda com cadeiras e mesas de plástico sobre colinas de vinhedos e bosques de pinheiros mansos, comendo presunto e salames e bebendo um vinho que, como diria o Eça, "tinha mais alma que muito poema ou livro santo". E estes e outros momentos são-me agora mais caros do que as cinco maravilhadas horas na galeria dos Uffizi, as trezentas fotos que tirei ou o limoncello que agora estou a beber. Pois nada os podia ter fotografado, nada os poderia ter gravado melhor do que a memória de ter, ainda que por breves instantes, vivido nos locais por onde passei.

Sulla piazza

Quando soaram as badaladas da meia-noite na torre do Palazzo Vecchio anunciando a chegada do fatídico dia dos meus anos, eu estava ali na Piazza della Signoria, trincando um coraçãozinho de chocolate comprado na Rivoire da esquina. A cidade escaldava ainda de um dia abrasador. Faziam quase trinta graus àquela hora, e eu tive inveja do David, do Neptuno, e dos outros seres em pelo que ali estão cinzelados e expostos.

Levei na bagagem para Florença um livro de David Leavitt. Como E. M. Forster, que escreveu o livro mais icónico passado em Florença, Leavitt é homossexual, e só por isso já se compreendia o seu fascínio pelo ambiente sensual da cidade em geral, e pela Signoria em particular. Ele diz que aquela praça não é para mulheres. Faz sentido. Ali se juntam, eternizados na pedra e singularmente irmanados, a misoginia e os fantasmas homoeróticos. A ostensiva nudez masculina "calcifica a fanfarronice sexual". As figuras femininas ou são as Sabinas violadas ou Judite cortando a cabeça a Holoferne. Acrescento eu: toda aquela exuberante genitália à solta é demasiado explícita para os meandros do desejo feminino, que me perdoem as campeãs e os campeões (pareço um político a falar) da indiferenciação dos géneros. Mas um homossexual masculino é geralmente mais terra-a-terra nos seus impulsos e vai, digamos, mais direito ao assunto.
Ali, o termo "arte erótica" nunca pareceu tão redundante. Toda aquela arte é erótica, e lá no fundo deve haver pouca gente insensível à sugestão carnal do David, de corpo tão perfeito e ao mesmo tempo tão desproporcionado (a cabeça enorme é de um adolescente, mas as mãos, também enormes?). Não caem parentes na lama por confessar tais sensações perante a mais bela estátua do mundo – pelo menos, perante o original que está na Academia, se não se quiser pecar por uma simples cópia.

No geral, Florença é uma Meca gay, passe a cacofonia escatológica. Mas ela até vem a propósito para lembrar que não cheira especialmente bem, ao contrário de qualquer ideário romântico. Há ruas que cheiram a esgoto e a lodos do Arno. O que também faz sentido, porque é como se algo nos quisesse lembrar que toda aquela beleza é de fabrico humano, e que a vida tem um lado podre. Quem quiser perfumes no ar, que saia da cidade e vá para as colinas (mas lá iremos). Florença, a bela, foi construída sobre planícies pantanosas onde ainda não há muito se morria de paludismo, conquistada às lamas e aos miasmas à custa de drenagens persistentes e dinheiro dos Médici, que não pagava só políticos e artistas.
A uns metros de mim, os turistas caminham sobre um medalhão de bronze incrustado no solo da Piazza, ignorando geralmente o que ele representa. Assinala o local exacto em que Girolamo Savonarola, o franciscano que ali acendera a fogueira das vaidades florentinas, foi ele próprio levado à fogueira em 1498. Erguera-se contra a imoralidade, a sensualidade, a devassidão renascentista da cidade. Queimou livros, quadros, estátuas e cosméticos. Mas a cidade cansou-se, e queimou ela própria o fradalhão, atirando as suas cinzas ao Arno sob o Pontevecchio.
Há quem lhe chame justiça poética. Quanto a mim, podia ficar agora aqui o resto da vida a encadear metáforas sobre a morte e a vida, o bem e o mal, a beleza e a podridão. Mas, felizmente, não me apetece.

Revisitações: Quarto com vista


Este Verão mudei de década de vida, e achei que Florença era um bom sítio para celebrar tal mutação etária com a mulher da minh'alma. Nunca lá tinha ido.Já andei por sítios que não lembram ao diabo. A uns não gostei de ir, mas gosto de ter ido. Florença era daqueles a que eu gostei de não ter ido antes, e que tinha guardado como uma garrafa de vinho, alimentando-me do gozo que teria ao bebê-la. Há poucas coisas mais invejáveis do que os olhos de um neófito.
Ir a uma cidade onde se concentra um quinto de todos os tesouros artísticos do mundo, e onde a cada esquina se tropeça com um, é como ir a um banquete. Acabamos por perder o apetite e não comer nem um décimo das coisas que gostaríamos. Estar num sítio é deixar de estar noutro, e nem uma vida inteira chegaria para ver tudo. Stendhal chegou aqui e, perante o estendal de arte (não resisti a esta…) ia-lhe dando uma coisinha má, tipificando uma síndrome que até já está cientificamente estudada. Convenhamos que é uma doença chiquérrima: "Querida, o médico proibiu-me Van Goghs, Ticianos e tudo quanto seja impressionista. Agora só posso ver umas coisinhas abstractas, uma aguarelas inglesas e um pré-rafaelita de vez em quando. Rubens, por exemplo, nem pensar, dá-me logo palpitações."

Como no resto do país, muitos dos tesouros de Florença estão ocasionalmente escondidos por andaimes e tapumes. Manter tudo aquilo em bom estado é um trabalho de Sísifo, e quando se acabou de recuperar tudo, há que começar de novo. A Itália é um estaleiro permanente. Felizmente que neste momento só as traseiras da catedral estão a ser limpas. Desembocando do Borgo S. Lorenzo, vindo dos lados do mercado, topei com a incomparável fachada do Duomo a brilhar e soltei um grito da alma: “Caralhos ma fodam, que coisa mailinda.” Não sou o Stendhal.

Quando Deus distribuiu a beleza pela Terra, grande parte foi parar a Itália. Se esta desaparecesse, o mundo ficava muito mais feio e triste. E não falo só da arte – falo da terra, das pessoas e do que elas continuam a fazer no dia a dia. A empregada do tasco põe-nos à frente uma choruda bisteca fiorentina e abre as mãos em adoração: "Guardi comme é bella!" Só neste país é que uma costeleta é servida com a reverência prestada às obras-primas.




quarta-feira, 19 de agosto de 2009

Afagos afegãos



Está a haver eleições no Afeganistão. Apesar de ser verdadeira, esta é uma frase estranha. Afeganistão e eleições são palavras que raramente se situam na mesma frase. Fazer eleições no Afeganistão é uma tentativa patética de dar uma aparência normal àquele país. Mas aquilo que por comodidade chamaremos Ocidente não tem outro remédio: está condenado a fugir para a frente.
O que aconteceu foi que o Ocidente caíu numa armadilha para a qual já devia estar vacinado. Sabe, desde o Vietname, que não é saudável meter-se em guerras de infantaria no Terceiro Mundo. Mas, mesmo assim, meteu-se numa, quase sem dar por isso. A propósito da “luta contra o terror,” os EUA, e o chamado Ocidente com eles, foram para o Afeganistão à procura de bin Laden, por meio de uma guerra altamente tecnológica e de poucos efectivos. Oito anos depois, não apanharam bin Laden, precisam de cada vez mais gente, não controlam a maior parte do país, e estão metidos até ao pescoço numa tradicional guerra de guerrilha, daquelas que nunca se ganham.
O Afeganistão preenche quase todos os requisitos para ser considerado um “vespeiro,” um “atoleiro,” ou qualquer outra metáfora para uma situação sem saída (na melhor das hipóteses). Nunca ninguém o conseguiu controlar, e não é a NATO que o vai conseguir. É um país volátil e volúvel, povoado por gente dura que não se vende, mas se aluga ao melhor preço – e se odeia entre si quase tanto como odeia o “estrangeiro.” Nem é bem um país, mas uma manta de retalhos tribal. Não terá nunca, num futuro previsível, um governo confiante e confiável. As eleições vão ser uma fantochada. Há vários dias que se andam a vender boletins de voto nos bazares de Cabul – é fácil imaginar o que se passará nas regiões mais remotas, que de resto começam a poucos quilómetros da capital.
O Iraque já devia ter sido uma lição. Os americanos, no seu optimismo neófito de quem só anda há 200 anos neste mundo, acham que basta fazer eleições para resolver tudo, e que a democracia é assim uma espécie de McDonalds que se implanta na base do franchising. Eles próprios já esqueceram como isso da democracia é uma coisa tão difícil e rara, ainda hoje, neste mundo. O Iraque vai desabar assim que eles saírem (já começa), e o Afeganistão vai engoli-los, e a nós com eles. Uma guerra daquelas só se ganha se houver um objectivo claro e preciso, findo o qual se pode retirar em boa ordem, tendo cumprida a missão. A eventual captura de bin Laden poderia ser a nossa salvação - a partir daí, poder-se-ia deixar sem remorsos o Afeganistão à sua sorte. Mas bin Laden nunca será capturado. E vamos acabar por sair de lá mais tarde ou mais cedo – com muito mais soldados mortos, muito mais choro, ranger de dentes e faces perdidas. Com uma derrota, em suma.
Por isso, o Ocidente deve encarar o actual esforço militar no Afeganistão como a preparação de uma retirada minimamente honrosa. O problema é que, ao contrário dos EUA, que nos século XX nunca sofreram no seu território as consequências mais graves de um conflito armado e muito menos de uma derrota, e por isso continuam culturalmente convencidos de que a guerra é uma opção acima de outras eventualmente mais pacíficas, os europeus já deram para esse peditório. Habituados, ainda por cima, a viverem sob o guarda-chuva americano que os salvou das hordas soviéticas (que hoje se sabe terem sido largamente sobrestimadas), não estão muito pelos ajustes de mandar mais um só soldado que seja para o ultramar.

Aquela dourada luz do entardecer

Catedral de Granada, Junho.

domingo, 16 de agosto de 2009

A rapariga maconde



A rapariguinha olhou para mim, com aqueles dois olhos fantásticos. Apontei-lhe instintivamente a máquina fotográfica. Então, ela não tirou os olhos de mim. Mas levantou as mãos lentamente e torceu-as num gesto de timidez. E ali ficou, à espera que eu lhe tirasse o retrato.
Isto foi em 1973, num sítio do norte de Moçambique chamado Nambude. Estava-se em guerra por ali, era uma entre várias crianças e adultos que erravam por aqueles matos fora.
Não sou o Steve McCurry, nem esta rapariguinha maconde é a jovem afegã que ele fotografou em 1984, de um espantoso olhar verde, e da qual foi em busca passados vinte anos . Mas de vez em quando não deixo de me interrogar: 36 anos depois, o que será feito desta miúda?
Possivelmente, já morreu - a vida não era fácil naquelas paragens, nem geralmente longa. Ou será uma velha mirrada, tatuada, com o lábio superior perfurado, gasta na "machamba" de milho e mandioca e pelo parto de vários filhos. Não, a vida não era fácil por ali, e deve continuar a não o ser.
Nunca ela soube nem saberá que esta foto me acompanha desde então e que tenho por ela um apreço especial, por toda a doçura que há nela. Pergunto-me o que será feito da rapariga, sim. Mas na verdade não iria querer saber a resposta. Quem, ou o que será agora a miúda que em 1973 olhou para mim assim, já não tem nada a ver com a foto que daí resultou. Provavelmente, até já nem é capaz daquele olhar doce. Seja o que, ou quem for, não é a mesma. Nem eu.