sábado, 19 de setembro de 2009

Um táxi para Belgrado

Ficou ajustado: Péter levar-nos-ia a Belgrado no seu táxi, por 100 dólares. Eram quase 400 quilómetros, de Budapeste à “Cidade Branca”. Nesse 1993, o embargo internacional à Sérvia, por causa da guerra nos Balcãs, impedia as ligações aéreas. A via terrestre – por comboio ou estrada – era a única possível. Podíamos usar os ronceiros comboios herdados do comunismo, mas eu e o Carlos tínhamos pressa e muito equipamento, e as 8 horas de caminho de ferro eram um suplício que eu já experimentara sozinho e não queria repetir.

No dia seguinte, bem cedo, Péter apresenta-se no hotel. Quando abriu a bagageira, não queríamos acreditar: metade do espaço estava ocupado por garrafas de litro de laranjadas, limonadas, colas e demais refrigerantes. "É para dar aos polícias na Jugoslávia. Parece que eles nos tramam a vida se não lhes dermos presentes." Péter nunca passara a fronteira meridional. Os húngaros sentem aquelas paragens pré-balcânicas que se abrem para sul como um princípio de Terceiro Mundo. Para Péter, aquele serviço era um mergulho no desconhecido, que ele encarava com respeito e precaução.

A Hungria é um país chato, no sentido literal do termo: uma planície perfeita e monótona sem uma elevação que seja, campos intermináveis de cereais e girassóis cortados aqui e ali por renques de árvores, umas casas, uns campanários, e depois mais campos iguais. Andamos quilómetros e parece que não saímos do mesmo sítio. Felizmente a estrada era boa e o Mercedes novinho. Só parámos para almoçar em Kiskunfélegyhása, que é até hoje o sítio com o nome mais complicado onde eu já almocei.

As coisas pioraram consideravelmente depois de passarmos a fronteira em Szeged. Então, assistimos na pessoa de Péter a uma profunda transformação. De reservado que era, passou a totalmente sorumbático. Mas o pior de tudo é que passou a respeitar escrupulosamente toda e qualquer sinalização, nomeadamente a dos limites de velocidade. Quando digo escrupulosamente, quero dizer rigorosamente à letra.

Ora o norte da Sérvia, a Vojvodina, é um mero prolongamento da planície húngara, que vai praticamente até Belgrado. A estrada, razoável, estende-se por rectas intermináveis e, para mais, o embargo fazia com que na altura houvesse praticamente nenhum trânsito. Seguir a menos de 90 km/h, e muitas vezes a 60 ou 50, num poderoso Mercedes por uma estrada larga, lisa, recta e vazia é, meus irmãos, uma experiência não recomendável à pachorra de ninguém.

Mas Péter estava inabalável, tanto mais que no horizonte acaba por surgir a inevitável e sonolenta patrulha a mandar-nos parar. Ainda os agentes estavam a olhar para a matrícula húngara já o bom do Péter saía disparado em direcção à bagageira do Mercedes. E antes que eles tivessem tempo de dizer “Kiskunfélegyhasa” já tinham aos pés Fantas e Schweppes laranja para toda a família.

Mandaram-nos seguir em paz sem mais aquelas, depois de verem os nossos papéis. Tenho para mim que o fariam de qualquer maneira, mas guardámo-nos de o comentar a um Péter que parecia escapado do Inferno e orgulhoso da sua previdência.

Sete longas horas depois de termos partido de Budapeste (para fazermos 370 quilómetros...) estávamos a entrar, exaustos, em Belgrado. Fui eu, portuga da outra banda da Europa, quem teve de explicar ao Péter por onde era o caminho de saída depois de nos deixar no hotel.

“Vai um copo, Péterzito? One for the road?” Que não, que tinha de voltar já para Budapeste. Partiu, apavorado de seguir já de noite por aquela estrada inóspita, num país em guerra. Mas não ia desarmado. Ainda tinha umas águas tónicas na bagageira.


Nota: O homem da foto, que tocava na Knez Mihailova (a grande artéria pedestre de Belgrado), tem a caixa do violino cheia de notas, mas não está rico. Naquela altura, a inflação na ex-Jugoslávia era de vários milhões ao ano, e já ninguém tinha pachorra para a calcular. Moedas era coisa que não existia, e imprimiam-se notas de cem milhões de dinares que no dia seguinte não valiam a ponta de um chavelho.

sexta-feira, 18 de setembro de 2009

E agora?

Alguém, como que a reprovar-me por apropriação indevida ou citação não atribuída, me fez o reparo de que a frase que tenho por baixo do título deste blogue é um verso de Paul Éluard.
Acontece que eu inicialmente tinha escrito o nome do autor à frente. Mas alguém me fez o reparo de que essa coisa das citações eruditas é um bocado pretensioso.
Eu sabia que não me devia ter metido nisto.

quinta-feira, 17 de setembro de 2009

Trovoada

Foi na segunda-feira passada, entre Castro Verde e Beja. De um lado, um quase poente de Verão; para sudeste, um horizonte de trevas que subiam por ali acima.
Parei o carro na berma: o silêncio era apenas cortado por alguma passarada, nem vento havia. Ainda. Então começaram a rolar trovões ao longe, e luziram clarões no negrume.
O resto foi assim.