quarta-feira, 28 de outubro de 2009

Para o JJ Amarante

O pouco que sei desta foto é que foi tirada no metro de Paris, em 1982. De resto, tenho ideia de que a rapariga era bonita e cantava bem - não me lembro é o quê.
Quanto ao aspecto flou e embaciado da imagem, é porque se incluía numa série de slides que mandei digitalizar, mas quem tratou disso fez uma porcaria de um trabalho. Achei graça, no entanto, a esta ter ficado assim, como que saída das brumas da memória.
Para mim, as fotos são uma espécie de "aide mémoire." Um pretexto, muitas vezes, para relembrar e recriar as circunstâncias que as rodearam. Porque cada foto tem a sua circunstância, e às vezes essa é muito mais interessante que a própria imagem que dela ficou.
O destino da generalidade das fotos que se tiram é o fundo de uma gaveta, um álbum que nunca mais se vê, ou os meandros de um disco rígido. Como toda a gente, tenho imensas nessas condições. À medida que avanço na vida, apetece-me cada vez mais desencantá-las nessa espécie de arqueologia da memória. Não se trata de "recordar." Trata-se de fazer valer esses momentos, de os actualizar através de um novo olhar. Concluí que um blogue é uma boa forma de fazer isso, até porque tem a vantagem de dar a ver tudo isso a quem o quiser fazer.
E, no fundo, se eu me dei ao trabalho de tirar essas fotos, é para que elas sejam vistas um dia, por mim e por quem calhar. Senão todas, pelo menos as que eu for escolhendo. Quanto mais não seja, porque as tirei.

Às vezes a gente anda por aí e vê coisas que poderia ter escrito

Trás-os-Montes, região de Moncorvo

Memórias

O post anterior, e outros que já aqui coloquei, nada tem a ver com o presente, com a actualidade. As minhas janelas não estão abertas apenas para o mundo que vou vendo e sentindo, mas também para o que já vi e senti. Delas vejo mais do que a paisagem que me rodeia: vejo-me a mim como fui, onde fui, e o que fui. Nós não somos apenas o tempo que passa, somos tudo o que vivemos.

Estas histórias de mim e de coisas que vi e senti não estão escritas como as escreveria na altura. Sobre parte delas eu escrevi à época, com intuitos, ângulos e finalidades diferentes de hoje. O que sobreviveu de tudo isso serve-me hoje como se de meros apontamentos se tratasse. O que eu quero é recriar a minha memória desses lugares, gentes e sentimentos que tive, relendo o passado, olhando-o de uma distância às vezes já grande. Muitas das coisas de que falo já nem sequer existem, ou, se existem, são já muito diferentes. Não importa: elas existem na memória. No fundo, é onde tudo existe para nós.

terça-feira, 27 de outubro de 2009

Vaya con Diós

Panamá, vista da cidade velha. Em baixo: onde era o bairro El Chorrillo

El Chino, “taxista e guia turístico,” guiava o vetusto Chevrolet pelas ruas da Cidade do Panamá pendurado no volante, como se o abraçasse. Tinha cara de poucos ou nenhuns amigos, e a forma como resmungava só ajudava à ideia.
Era um acossado, o velho Chino: pelo trânsito, pelas pessoas, pela vida. Olhava em volta como se indagasse quem lá vinha, farejando ameaças. Tinha um revólver no porta-luvas e apontava o dedo ossudo para os chavales e demais malandragem que borboleteava nos passeios do bairro de San Miguelito. Não fazia a coisa por menos: “Todos ladrones. Habria que matarlos a todos.” Não poupava ninguém, e quando eu li alto a placa na parede do quartel das Forças de Defesa do Panamá, que exorta quem lá entra a morrer pela Pátria, ele rosnou: “Morian por Panamá un carajo. Se fueran todos, huyendo.
Isto de fugirem todos fora alguns meses antes, quando em Dezembro de 1989 os Estados Unidos resolveram ir ao Panamá buscar Manuel Noriega. O “Cara de Ananás” estava a tornar-se incómodo ali naquele rincão do quintal das traseiras da América, nesse Panamá por eles talhado à medida de um canal entre dois oceanos. Então, Bush pai mandou as suas tropas, e entre elas gente que só o nome põe respeito – 82ª Divisão Aerotransportada, 6º Regimento de “Marines”, lendas talhadas de Bastogne a Khe Sahn. Mas naqueles dias de História suspensa, ainda nos efeitos da Guerra Fria, eles ainda vinham de um defeso grande, galuchos imberbes cuja primeira vaga de assalto Mário de Carvalho, operador de câmara da CBS para tudo quanto é guerra, acompanha divertido.
“Cada puto daqueles tinha quase tanto poder de fogo como todo o meu pelotão de Comandos na Guiné,” havia de me contar ele numa esplanada de Manágua, noite dentro. “Mas não faziam a mínima ideia de para onde iam nem do que iam fazer. Eu ia-lhes contando coisas da guerra e dando conselhos, e eles olhavam-me de olhos arregalados.”
Os pesados C-130 dos ianquis vieram razando sobre a costa de Panamá by the dawn’s early light . Mas tanto a maré estava baixa quanto o salto dos airborne foi um pouco adiantado, e boa parte da primeira vaga ficou espetada no tarrafo lodoso, como velas num bolo de aniversário. Pois o Chino bem podia arrepelar-se com o pouco fervor patriótico dos seus conterrâneos: tiveram que ser alguns dos próprios habitantes da cidade, acordados por todo aquele escarcéu, a ir puxar os magalas invasores para fora do lodo, onde alguns ficaram horas, tolhidos pelo peso do equipamento e de M-16 erguida nos braços, para não estragar. “Uma cena que só visto.” Mário cofia o bigode lusitano.
Acordado estava Jair, músico de Curitiba que um dia rumara ao Panamá de pandeiro e violão “por causa dos dólares.” A essa hora ainda ele estava a dar cantada a uma muchacha renitente, quando se ouviram tiros e rajadas para o lado do mar, e depois rebentamentos que parecia vir tudo abaixo. “Puts! Os gringo vem aí!” Foi remédio santo. “Fomos a correr para casa da muchacha, mermão. Fiquei lá três dia.” Há males que vêm por bem.
Os gringos haviam de chegar um dia. Chegam sempre, nesta América Central que nasceu tão longe de Deus e tão perto dos Estados Unidos. Chegaram, e quase escaqueiraram uma cidade inteira para levarem preso o Caradepiña para uma esquadra de Miami, onde ficou até hoje a penar por narcotráfico e por ter passado a fazer fora do penico quando antes era tão amigo da CIA e da DEA.
Depois puseram lá outro presidente, Guillermo Endara, e prometeram-lhe que pagavam ao Panamá os estragos, que não foram poucos: só o bairro de El Chorrillo, que era de casas de madeira, levou em cheio com uma bomba daquelas enormes, e desapareceu, feito em aparas e tições. Mas não pagaram.
Então o presidente resolveu inverter o fadário. Afastou-se dos gringos e aproximou-se de Deus. Foi fazer greve de fome para a catedral de Panamá, um imponente templo espanhol na cidade velha. Isto foi quando eu lá estive. Fui vê-lo: numa das laterais da igreja, em mangas de camisa, a uma mesa simples, Endara despachava o expediente que lhe passavam ministros e secretários, enquanto em volta circulavam turistas, fiéis e curiosos, tudo envolvido no murmúrio das rezas.
Eu olhava para aquilo alucinado, era tudo tão latino-americano que arrepiava. Tinha nos ouvidos os resmungos e invectivas do Chino contra a vadiagem e cobardia dos seus irmãos, as gargalhadas brasucas do Jair, esfregando a barriga com volúpia, e o irónico olhar veterano do Mário, contando como filmara a invasão com um olho na câmara e outro nos invasores.
De todos, o único que não tinha lá estado na altura da invasão era eu. Mas ouvi-lhes as histórias. Quem sabe se o Jair voltou a Curitiba cheio de dólares, ou abalou para outras muchachas. O Mário fez mais umas tantas guerras de câmara às costas, e tanto quanto sei descansa agora numa abençoada reforma. Quanto ao Chino, não sei obviamente nada. Ou perdeu a cabeça e varreu a tiro a malandragem de San Miguelito, ou reformou-se também calmamente. Era um castiço. Já lá vão 20 anos, mas ainda tenho na cabeça a imagem dele a atirar-me a bagagem para o passeio diante do aeroporto de Panamá, e a rosnar-me: “Vaya com Diós.”                                                                                                                                                                                                     

domingo, 25 de outubro de 2009

A felicidade são estas coisinhas

Hoje acordei uma hora mais novo. Que bom.