terça-feira, 3 de novembro de 2009

Mais memórias de um Muro

Ilha ocidental num mar comunista, rodeada de muro por todos os lados, privada de hinterland, Berlim Ocidental era uma cidade artificial, artificialmente mantida para figurar como farol, ou como montra do way of life ocidental. Era como um doente todo embonecado e ligado a uma máquina, recebendo os alimentos através de um tubo - ou de vários, para ser mais preciso.
E para evacuar era também um problema. Entre outras manigâncias arranjadas ao longo dos tempos, vigorava um acordo Leste-Oeste mediante o qual Berlim Ocidental depositava o seu lixo em território da RDA, mediante um pagamento. Como ao fim de um certo tempo se verificou que a quantidade máxima de lixo autorizada pelo acordo não era atingida, chegou a pedir-se à população que produzisse mais. Era inconcebível que os comunistas não levassem com todo o lixo que eram pagos para receber.
Os estrangeiros tinham mais facilidade em visitar o lado oriental do que os alemães. Faziam-nos recomendações como se fôssemos entrar num jardim zoológico: “Ajam normalmente. Não fiquem a olhar demasiado para as pessoas, elas não gostam de se sentir assim observadas.” Pouco faltava para nos dizerem que não lhes déssemos de comer.
Podia passar-se a pé, no Checkpoint Charlie, ou fazendo uma estranha viagem de metropolitano. Apanhava-se o S-Bahn (rede operada pela RDA) em Friedrichtrasse, por exemplo, e saía-se na estação seguinte, já do lado de lá. Havia, em vez de bilheteiras, um posto fronteiriço. Obtinha-se um visto de 24 horas e trocava-se obrigatoriamente uma determinada quantia de marcos ocidentais por igual montante de marcos da RDA (um câmbio de 1 para 1 absolutamente artificial, já que a moeda oriental de nada valia do lado de cá).
Em poucos minutos e poucos metros, era uma viagem entre dois mundos, separados por um muro. E uma viagem no tempo, também. Saía-se de um frenesi urbano cheio de luzes, lojas, Mercedes e vida, e desembarcava-se no que parecia ser uma cidade parada em qualquer tempo passado. Não era só o cinzentismo das ruas, a ausência de néons e de publicidade em geral, as escassas lojas género capelista de bairro, os carros raros, antiquados e mal-cheirosos, as roupas de modelos que faziam lembrar os anos 40. Era algo mais fundo e entranhado nas pessoas, no seu ritmo de vida, nas suas relações. Comparada com o lado ocidental, Berlim-Leste era uma cidade provinciana, onde as pessoas não sorriam nem paravam na rua a conversar (estávamos na Alemanha, afinal de contas), mas onde as empregadas do café Linden Corso, na Unter den Linden, ou no restaurante giratório na grande bola da torre de telecomunicações em Alexanderplatz, vestidas de batas com rendinhas e sapatos antiquados, ainda eram capazes de nos desejar
guten appetit. E os guardanapos eram de pano.
Praticamente, não havia onde gastar os marcos orientais. Regressar ao lado de cá proporcionava uma sensação de alívio, um pouco estranha. Eu pensava que nem tudo poderia ser mau do lado de lá - afinal de contas eram milhões de alemães que assim viviam, sem Mercedes, néons, ou pizzas. A liberdade? A liberdade é mais premente para quem a conhece, e a RDA, na altura, já levava uma geração de vida.
Mas o problema era que os alemães de Leste, e sobretudo os berlinenses, viviam paredes-meias com o "mundo livre". Se não o viam directamente, ouviam-no, recebiam os seus canais de TV, as suas imagens, os seus ecos. Ideologicamente, o capitalismo podia ter má fama no mundo do "socialismo real", mas o seu brilho e
glamour não podiam deixar de causar efeito.
Uns anos mais tarde, percebi melhor como a generalidade das pessoas se está basicamente nas tintas para os grandes princípios, e quer é viver melhor seja onde for. Há vinte anos, os alemães do lado de lá saltaram o mundo em busca de bananas, que a maioria nunca tinha visto. Talvez a liberdade seja apenas isso. Mas lembro-me também de ler numa revista, naqueles dias de brasa de 1989, o desabafo de uma alemã-oriental: "Um dia acordei e pensei: tenho 40 anos, sou arquitecta, e nunca vi Veneza." Nem só de bananas vive o homem.