quarta-feira, 2 de dezembro de 2009

A noite dos tubarões

Manágua, 1990
Esta semana, uma Cimeira Iberoamericana completamente desinteressante recordou-me tempos interessantes.

"Tu sabes quem é aquele que ali está?", perguntou-me o Luis. "Toda a gente sabe. É o tipo da Contra aqui em Manágua." O fulano emborcava copos de rum, fumava charuto e passava regularmente a mão pela pele de uma criatura que a devia ter suave como o cetim ao toque.

O Luis era vagamente sindicalista. Pelo menos apresentava-se como tal. Tinha a cara picada das bexigas, bigode e cabelo negros, o sangue índio por todos os lados. Falava aos berros, inclinado por cima da mesa, para se fazer ouvir acima da inevitável orquestra. A cantora implorava: "Devorame otra vez, devorame otra vez." O Luis ia-me traçando o retrato daquela esplanada do hotel Intercontinental, caída a noite sobre a cidade: "Olha, ali é o tipo da CIA. Aquele mais além é coronel do exército sandinista." Estavam lá todos, amigos e inimigos.
Ele próprio, Luis, andava metido com organizações estranhas que conspiravam encarniçadamente contra o Governo. Já tinha levado em tempos uns sopapos dos esbirros de Tomas Borge, o homem do Interior, um dos nove comandantes sandinistas que geriam a Nicarágua desde a revolução de 1979, há mais de dez anos. Esbirros esses que também por ali andavam. Luis apontava-os: "Aquele ali é o chefe da polícia de Manágua."
"Quer dizer então que a guerra acaba às seis da tarde," pensei eu. Durante o dia matam-se uns aos outros. Mas quando cai a noite, começa a cheirar a rum e a mulatas. Então tudo converge para onde há de um e de outras, e juntos embebedam-se de música, sexo e álcool. No dia seguinte acordam de manhã cedo, prontos para se matarem de novo. Neste país tórrido, as ressacas são geralmente benignas. Tudo se esvai com o suor. Ou com o sangue.
A esplanada junto à piscina do hotel Intercontinental de Manágua é o microcosmo surreal que espelha tudo. Depois de dez anos de revolução sandinista, de afrontamento aos gringos, de proclamações solenes, de guerra civil, a Nicarágua de 1990 é um país à beira de um ataque de nervos. Tudo pode acontecer. Luis sabe-o: já viu muito. Espera tudo, e não acredita em nada. Nem na Doña Violeta.

Expliquemos: Doña Violeta Barrios de Chamorro é a candidata da oposição ao regime sandinista nas eleições que se aproximam - a Unión Nacional Opositora, uma coligação efémera que vai dos sociais-democratas de esquerda aos grunhos da direita mais caceteira. Há pouco mais de uma década, não pensava em política: era apenas a mulher de Pedro Joaquín Chamorro, jornalista, director do diário La Prensa, que vituperava a ditadura de Anastacio Somoza Debayle - o homem que garantia os bons negócios norte-americanos no país e que um dia explicou candidamente à CBS: "Sou rico porque o povo gosta que eu seja rico." E era. Possuía nove das dez maiores empresas da Nicarágua. Quando em 1972 um medonho terremoto destruíu Manágua, Somoza abotoou-se com a ajuda internacional e não reconstruíu uma parede que fosse. 18 anos depois, a cidade era ainda um bairro de lata pontuado de ruínas. Do pai dele, que o precedera, dizia Franklin D. Roosevelt, ciente da raison d'état: "É um filho da puta. Mas é o nosso filho da puta."
Ora Pedro Joaquín, cavaleiro andante da minguada burguesia liberal nicaraguense, tanto chateou que um dia apareceu morto. Se foi Somoza que o mandou matar, mais lhe valia ter ficado quieto. O povo, ao fim de 60 anos de dinastia somozista, estava no limite da paciência. A revolta popular varreu as ruas de Manágua, afrontou a Guarda Nacional, e abriu caminho ao avanço da Frente Sandinista de Libertação Nacional, até então um puro movimento de guerrilha rural de inspiração guevarista, que tinha por padroeiro o herói mártir Augusto César Sandino, morto à traição por Somoza pai. Em Julho de 1979 as colunas da FSLN entram em Manágua, e Somoza foge para o Paraguai, onde uns anos depois é morto à bomba. Chamam a isto justiça poética.
Como uma nova Cuba no istmo centro-americano, como um farol de esperança para uns ou um sinal do demónio para outros, a aventura sandinista inflama as imaginações, convoca paixões e ódios, sonhos e pesadelos em todo o mundo. É a utopia em marcha. Doña Violeta Chamorro, que largara as lides domésticas para pegar no testemunho do marido assassinado, apoia o novo poder. Mas cedo se desilude. E o La Prensa, pela sua mão, passa a zurzir o directório dos nove comandantes sandinistas como zurzira os somozistas. O desgoverno dos chiquititos é agravado pela guerra sem quartel que lhes é movida de Washington, alarmada com mais aquela revolução no seu quintal das traseiras. Ronald Reagan agarra em descontentes, em antigos somozistas, em visionários sinceros e em puros bandoleiros, e forma aquela que, a par dos mudjahidin afegãos, é a primeira guerrilha pós-moderna, de sinal contrário aos campeões marxistas da libertação dos povos. La Contra, apesar de confinada às selvas, mantém em cheque o exército sandinista. A economia nica beira o caos: a inflação é de milhões ao ano, o córdoba não vale um feijão podre.
Quando o comandante Daniel Ortega e compañeros cedem às pressões internacionais para fazerem eleições em 1990, a Revolução - coisa nunca vista - vai às urnas. Doña Violeta, a dona de casa viúva, é a candidata da oposição unida. Vestida de branco, percorre o país num violetamobile parecido com o carro anti-bala do Papa, acenando em silêncio, como uma aparição diáfana de enorme sombrero contra o sol impiedoso. Os seus apoiantes cantam e dançam: "Se va Daniel, se va Daniel / y ocho se van con el." Há quem caia de joelhos à passagem do cortejo. Está ali a Nuestra Señora que vai meter na ordem os padres-guerrilheiros de boina à Che, como Ernesto Cardenal, seguidores da Teologia da Libertação, que se deitaram a fazer leituras marxistas dos Evangelhos: salvar as almas no outro mundo, sim, mas primeiro fazer justiça aos corpos, neste.
Quanto a Daniel e aos restantes comandantes, multiplicam-se em comícios onde ferve a retórica revolucionária e anti-ianque, perante multidões que muitas vezes são transportadas de terra em terra a bordo de autocarros e camionetas - são los mítines portatiles, os comícios portáteis. De vez em quando encontram-se os de um e outro lado e a coisa descamba em cenas de grossa pancadaria. Eu mesmo fui apanhado no meio de uma, onde voavam paus e pedras. A Revolução ou a Reacção? Naquele início dos anos 90, tornada num laboratório político internacional, dilacerada e miserável, a Nicarágua mergulha no psicodrama.
É nesta conformidade que eu lá aterro. E, na noite do dia eleitoral, vou para a esplanada barulhenta junto à piscina do Intercontinental, um dos poucos edifícios intactos de Manágua. Na véspera estivera até às 4 da manhã a ouvir as histórias do Mário de Carvalho, enquanto à nossa volta uma polaca perdida de bêbeda filmava lenta e obsessivamente as pilhas de cadeiras de plástico arrumadas a um canto.
Agora a orquestra regressou. Lá fora, a terra é percorrida de surdas ameaças. No lago Nicarágua, grande como um mar, nadam tubarões-touro, a única espécie que sobrevive em água doce, conhecidos pelo carácter imprevisível e agressivo, e por serem os seres vivos com maior índice de testosterona do planeta - até as fêmeas a têm em abundância. Estão bem para aquele país, estariam bem a nadar naquela piscina, naquela noite espessa de calor, corpos e música. A cantora repete devorame otra vez.
Aquela esplanada é o lugar que neutraliza tudo. Aquele hotel vagamente em forma de pirâmide parece uma nave espacial, blindada contra os demónios exteriores, onde toda a gente procura refúgio. Ao fim da tarde houvera um qualquer sarrabulho ali próximo. Então, toda a gente - jornalistas, observadores, hóspedes em geral - correu para os televisores, em vez de ir à janela. A realidade não é o que se passa na rua, mas o que dá na CNN.
Luis, ao meu lado emborca cubalibres. Para ele, o país está perdido. "Todo es una mierda," e Doña Violeta não vai solucionar nada. Eu conhecera-a dias antes. E ao conhecê-la, na sua finca dos arredores com tonalidades extremenhas, percebi muita coisa da América Latina. Estendeu-me a mão fina, a pele branca da aristocracia colonial hispânica, com pouco ou nada a ver com a massa mestiça da sociedade que pulula nas ruas e campos da Nicarágua. Em fundo havia Mozart, e não salsa latina. Parecia outro mundo.
Mas aquela mulher de olhos negros é tão nicaraguense como qualquer outra que eu ali vejo. Tem neles a mesma tragédia que vai nos olhos negros das pietás crioulas que choram os filhos mortos de fome ou na interminável guerra civil. Há mais de dez anos que vai, todos os dias, até um cemitério de Manágua deixar flores frescas na campa do homem que amou, morto pelos mesmos demónios latino-americanos. Pertence à raça dos senhores, sim, mas de sangue que já muito se juntou a todos os que se derramaram nesta terra abrasada. Pagou o seu quinhão, e bem caro.
Os chiquititos, como ela trata os sandinistas, fizeram tudo para a impedir de ganhar as eleições. Durante o dia, a televisão estatal passa Batman, o blockbuster do momento em todo o mundo, na esperança de que o povo fique em casa. Aqui e ali irrompem "turbas divinas", grupos que nascem não se sabe de onde para perturbar a oposição onde quer que ela se reuna. Depois a noite vai caindo, e com ela regressam os demónios. Deixo Luis em vias de coma alcoólico, saio da esplanada, do reduto do Intercontinental, e mergulho na cidade caótica, onde desde o terremoto não há nomes de ruas nem números de casas - as moradas indicam-se por "calle frente a los Correos, tercera puerta a la derecha." Passam grupos no terreiro poeirento diante do Palacio Nacional, a que García Márquez chamava "Parténon bananeiro" (foto grande). Em Agosto de 1978, foi aqui que irrompeu um comando sandinista de 19 valentes liderados pelo lendário Eden Pastora, o "Comandante Zero." Dando tiros para o ar, sequestrou a Câmara dos Deputados somozista, berrando: "Quién son los hijos de puta enemigos del pueblo?" Era o sinal da Revolução que não tardava.


12 anos depois ela, a revolução, resiste brava, mas ingloriamente. Na noite sufocante contam-se votos. A UNO de Violeta vai claramente à frente. Então, longe dos olhos de todos, desenrola-se um drama de poder e morte. Daniel Ortega não aceita que dez anos de processo libertador se finem pelo voto. Nada terá valido a pena? Quer sair para a rua em armas. Os batalhões sandinistas estão a postos, só esperam uma ordem. As hostes da UNO não o estão menos. É a noite dos tubarões. Acorre Jimmy Carter, já consagrado nas lides de negociador, que chefia uma delegação de observadores. Agarra Ortega por um braço, fecha-se com ele numa sala, e explica-lhe que a vida é assim, que tem de aceitar a derrota, foi lindo mas acabou-se. Durante horas, o futuro joga-se na conversa entre os dois homens. O velho ex-presidente idealista é a voz da razão, o jovem comandante com dez anos de poder é a utopia teimosa. Shakespeare daria tudo para ser mosca nesta noite tropical, da qual faria uma obra-prima.
Ás seis da manhã, os demónios estão exorcizados. Ninguém dormiu. Toda a gente converge para a grande sala do Centro de Conferências Olof Palme, oferecido pela Suécia, que está a abarrotar de jornalistas e fiéis devotos da Revolução: "verdes" e esquerdistas europeus loiros, barbudos e de sandálias, freaks e libertários de todas as partes - los sandalistas, como resmungam os nicaraguenses mais cépticos. Há lágrimas em muitas faces. Ortega vem com outros comandantes - Tomas Borge, Bayardo Arce, Jaime Wheelock - o semblante carregado, olheiras de quem chegou ao limite das forças. Fala com voz cansada, num discurso belo de arrepiar: já não há ilusões, tudo acabou. Mas ao menos o Mundo sabe que houve um pequeno povo que durante dez anos, contra tudo e contra todos, se bateu por um pouco de dignidade.
Junto a mim, um jovem casal de sandalistas alemães está abraçado, imóvel, a cara escondida no ombro um do outro, chorando o fim do sonho. A manhã quieta, sem uma brisa, clareia sobre Manágua. Caminho de volta ao hotel, sabendo que vivi horas irrepetíveis. Um estranho silêncio cobre a cidade. No horizonte recortam-se vulcões mudos. O Luis deve estar caído algures. A orquestra calou-se, os bêbedos adormeceram nos braços das mulatas, não tarda vêm os empregados ainda sonolentos varrer a esplanada silenciosa do Intercontinental, onde se empilham cadeiras e chaises-longues. Já não há utopias, morreram todas esta noite.

terça-feira, 1 de dezembro de 2009

Dezembro

S. Pedro do Estoril

segunda-feira, 30 de novembro de 2009

Comment peut-on être suisse?

Eu sempre embirrei um bocado com os suíços. Orson Welles já não os respeitava muito, ao dizer, por interposta personagem ("O Terceiro Homem") que enquanto a Itália, em séculos de convulsão e violência, produzira Miguel Ângelo, Leonardo e tudo isso, a Suíça, em séculos de serena democracia, nada mais produzira do que o relógio de cuco. Acrescentarei os chocolates, mas isso também a Itália fez.
Passei a embirrar ainda mais quando uma noite em Genebra, com dois graus negativos e nenhum carro num raio de vários quilómetros em redor, vi um suíço esperar ordeira e estupidamente que o sinal mudasse para atravessar a rua.
Há mais de quatro séculos, no Império Otomano, Solimão o Magnífico recusava-se a entrar em igrejas cristãs, porque se o fizesse torná-las-ia parte integrante do Dar al-Islam, a terra do Islão, e deixariam de ser igrejas. Os cristãos podiam construí-las. Só não podiam é fazer as torres das ditas maiores que os minaretes das mesquitas, o que não deixava de ser justo. Ontem, em referendo, os suíços proibiram os muçulmanos de construírem minaretes na Suíça - um país que só deu o direito de voto às mullheres muitos anos depois da Turquia.
Agora venham falar-me de retrocessos civilizacionais. Afinal onde está a barbárie?
Nas Cartas Persas do barão de Montesquieu perguntava-se: "Como se pode ser persa?" Eu cá pergunto é como se pode ser suíço.