sexta-feira, 11 de dezembro de 2009

Puxar pelos galões

Quando vi este produto num supermercado alentejano, comprei alegremente uma embalagem. Acho que alguém que pega em algo tão trivial como o café com leite, que toda a gente faz em casa, e o põe à venda como se fosse uma especialidade típica, demonstra um descaramento que merece ser reconhecido e apoiado.
Eu juro que não sabia que havia uma coisa chamada “galão alentejano.” Julgava que o vulgar galão era apenas isso: uma coisa vulgar, que há em todo o lado. Não o sabia típico do Alentejo, nem vejo como o possa ser: café com leite é café com leite, seja aqui, seja na Mongólia. Suspeito fortemente que se trata de uma engenhosa construção eco-cultural, semelhante à que fez do queijo flamengo uma coisa típica de Ponte de Lima, provavelmente já lá produzida quando os barões de Entre Douro e Minho ainda nem tinham inventado um país, quanto mais a sandes mista.
Seja como for, isto alegra e dá esperança. É um sinal de espírito empreendedor e de imaginação.
O futuro do Alentejo está no turismo, e fala-se de fazer dele uma espécie de “no
va Toscânia” – um local de calma beleza natural e clima ameno, onde a História se misture com as tradições e a gastronomia, atraindo gente de todo o lado para um turismo em que a fruição cultural se junte ao deleite dos sentidos.
Para isso, o Alentejo tem quase tudo o que a Toscânia tem: o clima, paisagens, gastronomia. Só perde na tradição histórica e cultural, mas nesse aspecto qualquer outra região europeia perde. É verdade que tem cidades-museu, conventos e castelos, uma monumentalidade rica – mas comparar isso com Florença, Siena, Lucca, Pisa e tutti quanti, no que elas são hoje e no que foram, não é justo. A Toscânia conhece o turismo há séculos – foi um dos locais em que ele se inventou, quando a educação de qualquer jovem das elites norte-europeias incluía obrigatoriamente o
Grand Tour pelas terras da Antiguidade clássica e do Renascimento.
O que fazer então? É simples: se há história conta-se, se não há, inventa-se. Sejamos realistas: grande parte do que hoje temos por tradições seculares são construções recentes, e algumas delas até deliberadas. A Escócia só conheceu o
kilt no século XVIII, o que não impediu Mel Gibson de os vestir aos indomáveis combatentes medievais de Braveheart – um anacronismo de vários séculos em que ninguém repara, porque o kilt está consagrado hoje como eterno atavio dos escoceses.
A História não pode ser inventada. Mas pode ser encenada – que é o que acontece a muita da que o
touriste de ontem e o turista de hoje percebe em lugares como a Toscânia. Esta tem um passado prodigioso, que fascina tanto como as paisagens. Pelo Alentejo não passou nem metade da História que por lá passou – mas a que existe pode ser reencenada e valorizada. O Alentejo tem o rasto de dramas e tragédias, tem cenários de paixões, tem campos de batalha, tem locais místicos, tem memórias de sangue, de luta e de trabalho. Tem tradições.
E o resto do país também. O que e preciso é saber “vendê-las.” Em Helsínquia, levaram-me um dia numa volta turística cuja metade era passada numa igreja escavada na rocha: era a única coisa interessante que havia na cidade, e os abnegados finlandeses fizeram tudo para eu a achar realmente interessante.
É aqui que entra, humilde e determinado, o galão alentejano. Se o seu caminho for firme e bem conduzido, acredito que dentro de anos o café com leite bem quentinho seja tão alentejano como italiana é a
pizza - palavra que há menos de dois séculos pouca gente em Itália conhecia, e que mesmo assim começou por designar um doce.
Não se trata de fazer batota, mas de reinventar. Se é possível fazer de uma coisa tão simples e vulgar um produto típico da região, até onde se poderá ir com a açorda, o campo místico de Ourique, os cantares de mineiros, cardadores e ceifeiras, a campina a perder de vista, os torreões da raia virados a Castela, as migas, os amores pungentes de Mariana Alcoforado freirinha de Beja, os conventos, os seus mistérios e os seus doces?
Foi por tudo isto que comprei aquela embalagem. Mas não compro mais. Tudo tem um limite. Ainda sou capaz de juntar leite ao café cá em casa.

Aqui como lá em cima: Arredores de Florença ou Siena? Não, senhores. De Aljustrel

Mudanças

Mudei o fundo do belogue de negro para branco - ou se vai de uma ponta à outra, ou nem vale a pena partir.
As letras ficam melhores, as fotos, quanto a mim, piores. Agora cabe-me a mim, e só a mim, decidir por quais delas quero ser lembrado. Dispenso sugestões, eu cá me arranjo.

quarta-feira, 9 de dezembro de 2009

Outono no Alentejo


Entre Viana do Alentejo e Portel
A mulher da minh’alma, que é de lá, disse que me ia mostrar o Outono no Douro e no Marão, e eu andei meses a sonhar com isso. Mas não calhou até hoje, porque a vida atirou-nos este ano mais para o Alentejo, onde temos sido muito felizes.
É terra de folha perene, que reverdece às primeiras águas. Mas lá onde moram as caducas, a vista é tão preciosa como o ouro e o sangue que elas trazem, poisados sobre o verde triunfante do campo alentejano.

terça-feira, 8 de dezembro de 2009

Ser português é chato

Estive há dias a ver um programa de TV chamado “Ídolos,” que consiste na audição de jovens pretendentes a artistas da rádio, TV, disco, video e MP3, por um júri que os aprova ou elimina (esta descrição é para memória futura, pois pode ser que este texto fique na História, e o programa não).

Não contei os concorrentes, mas seriam na ordem dos vinte. Contei sim, porque era fácil, os que cantaram em português. Foram dois. Os cerca de 18 restantes cantaram em inglês, imitando os meneios e trejeitos linguísticos de quem fosse nado e criado em Brooklyn ou na Califórnia. Mas eram Carinas,Tatianas, Fábios e Cátias vindos da Trofa, do Montijo, da Maia ou da Cruz de Pau.

O espectáculo foi deprimente, mas previsível. Afinal, estamos no país de David Fonseca, um cantor português muito apreciado que nunca cantou uma palavra em português, e de Jorge Palma, que só canta em português, sim, mas com esforço: ainda há tempos confessava em entrevista que durante muito tempo foi incapaz de escrever um verso que fosse na sua língua.

Não estamos bem na nossa pele, nem na nossa língua. Não estamos à vontade com o português. Temos vergonha dele. Nunca vi uma coisa assim, a não ser talvez, num processo algo semelhante, nos intelectuais expatriados romenos como Émil Cioran ou Mircea Eliade, filhos, como nós, de uma língua e de um país culturalmente periféricos, e que se refugiaram no francês – Cioran falava do “cheiro a sol e a bosta” da sua língua-mãe.

É como se quiséssemos fugir desta fatalidade original que nos coube – a de termos nascido aqui, amarrados a uma terra e a uma língua que nos impede de sermos como os outros. Ser português é uma limitação tremenda, apenas contornável macaqueando quem o não é. Por isso fazemos questão de pronunciar tão bem as línguas estrangeiras, e nos rimos dos toscos espanhóis que falam inglês com sotaque de Albacete. Por isso nos misturamos na paisagem quando vivemos algures. Somo o povo mais camaleónico da Terra. Ninguém diria que há um milhão de portugueses em Paris.

Mesmo no uso do português somos tímidos.Temos medo das palavras, usamo-las como se nos queimassem a boca ou não tivéssemos direito a dizê-las. Quando empregamos uma expressão menos usual, e nem é preciso que seja muito, rodeamo-la de desculpas que lhe amorteçam o impacto: “Passe a expressão,” “Por assim dizer,” “Como se costuma dizer.” Povoamos a escrita de “comas,” «aspas» e
itálicos. Dizemos I love you para não termos que dizer amo-te, exclamamos merde e fuck porque parece mal dizer merda e foda-se. “Na língua inglesa soa sempre melhor,” cantam os Clã pela voz de Manuela Azevedo.

Ao ouvir os jovens dos “Idolos” fiquei como eles, a achar que lá fora é que se faz bem, que no estrangeiro é que é bom. Seria quase impensável ver alguém em Espanha, em França, no Brasil ou em Itália vir para um programa destes cantar em inglês ou noutra língua que não fosse espanhol, francês, português ou italiano. Até podia haver alguém que o fizesse, mas seria sempre uma excepção, e uma atitude corajosa. Em Portugal, a excepção – e a coragem – é cantar em português. Quase diria que é ser português.