sexta-feira, 1 de janeiro de 2010

Meditação sobre a década que hoje começou a acabar

Eu às vezes, durante os ócios do meu ofício, vou a um "chat" internético largar umas quantas bojardas. Não conheço lá ninguém pessoalmente, e creio que poucos se conhecem entre si. É um mundo essencialmente anónimo, onde, através de um nickname, as pessoas se interpelam, se insultam, se seduzem, se acarinham e se agridem umas às outras. Para quem leve aquilo a sério, a experiência pode ter consequências. Para quem lhe pegue como uma espécie de playstation que se liga e desliga sem mais aquelas, como é o meu caso, é simplesmente divertido. É bom não esquecer, no entanto, que por detrás de cada nickname existe um ser humano. Nem sempre nos lembramos disso.
Há tempos, entrei lá e alguém me interpelou: se eu já sabia de fulano. Não, não sabia. Pois, é que fulano morrera subitamente, há uns dias atrás. Estava toda a gente transtornada. Houvera quem não tivesse dormido, ou quem não conseguisse deixar de chorar. O clima era o de um Pátio das Cantigas virtual mas, à excepção de quem dera a notícia, ninguém conhecera pessoalmente o falecido, ninguém sabia quem ele era. Era apenas um nick que de vez em quando por ali aparecia e que, se bem me lembro, soltava umas frases bonacheironas. No fundo, toda a gente chorava a morte de um perfeito desconhecido como se fosse um amigo chegado.
Provavelmente, em nenhuma outra década como na que agora começou a acabar chorámos ou rimos tanto por causa de gente que achávamos que conhecíamos. Já muito se tem falado desta virtualidade, que foi uma das grandes marcas da época: nunca tivemos tanta gente ao alcance dos dedos, nunca o mundo nos entrou tanto pela casa dentro.
Mas talvez nunca tenhamos estado tão afastados dos outros e da realidade, porque só uma parte deles - e dela - nos chega pelo monitor. E essa parte é a mais segura e asséptica: não há cheiros, nem toques, nem frio nem calor, nada nos atinge sem ser filtrado. Amamos e odiamos sem impedimentos físicos, sem as barreiras dos sentidos e daquilo que quando eu andei na catequese se chamava o "respeito humano." Somos capazes de ter centenas de amigos, porque eles nada mais nos exigem do que uns cliques no rato. E podemos ter inimigos à farta, porque não nos vão enfiar um murro entre os olhos.
No computador do seu quarto (cuja potência é largamente superior à que foi necessária para enviar os primeiros homens à Lua em 1969), qualquer puto tem hoje ao alcance da mão, em segundos, mais informação crítica sobre o mundo do que tinha nessa altura o presidente dos Estados Unidos. Mas não sabe nem quem é o primeiro-ministro do seu país. Os miúdos da geração SMS cada vez falam menos e grunhem mais. E são capazes de estar a falar uns com os outros pelo telemóvel na mesma sala, com poucos metros entre si. Não me apetece ser velho do Restelo ou tio chato para quem dantes é que era bom. Mas só um idiota achará que isto não é inquietante.
"Less is more" - menos é mais - era o lema arquitectónico de Mies van der Rohe. Eu temo que mais seja cada vez menos. Estamos ainda longe de viver em redomas, aventurando-nos cada vez menos para fora delas ao encontro de uma realidade que é desagradável, porque real. Mas já estivemos bem mais longe.