sexta-feira, 31 de dezembro de 2010

Feliz Ano Novo


Palácio da Ajuda: fachada principal

Palácio da Ajuda: traseiras


- E aqui tens tu, Lisboa.
- Enfim - exclamou o Ega - se não aparecerem mulheres, importam-se, que é em Portugal para tudo recurso natural. Aqui importa-se tudo.  Leis, ideias, filosofias, teorias, assuntos, estéticas, ciências, estilo, indústrias, modas, maneiras, pilhérias, tudo nos vem em caixotes, pelo paquete. A civilização custa-nos caríssima, com os direitos da Alfândega: e é em segunda mão, não foi feita para nós, fica-nos curta nas mangas... Nós julgamo-nos civilizados como os negros de São Tomé se supõem cavalheiros, se supõem mesmo brancos, por usarem com a tanga uma casaca velha do patrão.... Isto é uma choldra torpe. Onde pus eu a charuteira?

Eça de Queirós, "Os Maias"

sexta-feira, 24 de dezembro de 2010

Espírito da época

Para que este estabelecimento não passe o Natal com uma foto de peixes despedaçados a encabeçá-lo, deixo aqui uma árvore.  Também é trazida pela memória acordada pela revisão de fotos guardadas numa gaveta, e foi tirada perto do local da anterior.
Esta árvore fantástica não é um pinheiro natalício, mas também tem algo a ver com a época. Dá pelo nome técnico de Boswellia sacra, cresce nos wadis, leitos secos dos rios do sul da Arábia e do Corno de África, alimentando-se da vaga humidade deixada no solo pelas torrentes episódicas, e é da sua resina que se faz o incenso que, com o ouro e a mirra, os Reis magos levaram ao Deus menino.
O incenso valia, na Antiguidade, o seu peso em ouro. Era objecto de um comércio chorudo, cujas rotas se comparavam à da seda. Provinha sobretudo destas regiões, e era levado em longas caravanas através de algumas das regiões mais inóspitas do planeta até aos portos mediterrânicos, para alimentar a América da altura, que era o Império Romano. Nele se consumia avidamente o incenso às toneladas - para os templos, para a medicina, para os cosméticos. Era tão precioso como hoje é o petróleo.
Estas coisas são como as cerejas, e por isso um dia destes vou aqui contar como fui ver a Cidade Perdida engolida pelo deserto, de onde há três mil anos partiam as caravanas e se calhar os três Magos. Há tempo: ainda agora eles vão a caminho. E eu também. Feliz Natal.

quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

Momento evocativo e demagógico

Interrompo o vosso sossego porque estava aqui a ver umas fotos  e calhei nesta, guardada com muitas outras que tirei há uns anos em Omã, na costa arábica: algures no sul do país, restos de tubarões pescados e feitos em pedaços. Depois são secos e comidos, presumo que com razoável delícia. Não sou eu, filho de um povo que faz o mesmo ao bacalhau, que vou estranhar.
Dizem que o tubarão é uma espécie perigosa, um assassino dos mares. Todos os anos, deve haver meia dúzia de ataques de tubarões a seres humanos. Mas todos os anos são mortos milhares de tubarões. Vendo bem, qual é a espécie mais perigosa?
Bom, isto agora não interessa nada. Até já, então. Boas Festas.

domingo, 19 de dezembro de 2010

sábado, 18 de dezembro de 2010

Uma aventura nas urgências

Por vontade dela, a mulher da minh'alma metia em casa tudo quanto é cão e gato, e comia com eles à mesa. A soleira da porta alentejana é hoje uma espécie de sopinhas do Sidónio ou Santa Casa da gataria das redondezas. Há dias, um dos sacaninhas, um minorca a quem ela tentou tratar de uma pata magoada, pagou-lhe o amor mordendo-a na mão com afã e descaro. Seguiu-se princípio de infecção, vacina anti-tetânica, antibiótico, as coisas do costume.
Só que este último era do tipo que já lhe dera em tempos terríveis dores de estômago. E voltou a dar. Às 9 de uma destas belas noites geladas, lá demanda este vosso criado, com ela torcendo-se, as urgências de um hospital público.
A triagem foi rápida, mas depois seguiram-se as trevas: 4 horas de dolorosa, angustiada e cada vez mais encolerizada espera, sem razão aparente para isso, pois reinava a calma na zona, havia pouca gente e não chegou uma única ambulância. Imigrantes, ressacados, bêbedos, indigentes, o lumpen da ordem, esperavam pacientemente na sala. Atrás de um vidro, funcionários com a simpatia de gárgulas medievais não davam uma informação ou satisfação de jeito: "O doutor atende quando puder." Nem iras, nem choros, nem finalmente pedidos de livro de reclamações comoveram quem quer que fosse. "Não temos, escreva uma carta à administração do hospital." À uma da manhã, desistimos, que se lixe o antibiótico. Vamos para casa.
Mas a infecção ameaçava progredir. Não vamos brincar com essas coisas: às 9 da noite do dia seguinte, o casalinho volta às urgências, mas de outro hospital que do primeiro nem ouvir falar era bom. 
Ambiente ainda mais soturno, sala escura e mal cuidada. Quase vinte minutos de espera numa fila para a inscrição, seguindo-se nova espera interminável por um primeiro atendimento. Os critérios de chamada são tão obscuros como a sala, onde se espraia a habitual mistura social. A confusão é espessa. Chegam ambulâncias de vez em quando, trazendo misérias, desgraças e aflições. Há gente que espera pacientemente, outros protestam. Um grupo rodeia médicos e enfermeiras desolados, tentando perceber o que terá acontecido ao processo de um paciente, que se evaporou misteriosamente. Entornado numa maca, um jovem de gorro na cabeça, no mais adiantado estado de degradação  química, tenta regularmente pôr-se de pé mas não se tem nas pernas. Implora que lhe chamem um táxi, chora pelo telemóvel para que alguém o venha buscar - mas é evidente que nem no hospital nem na família há quem esteja para aí virado.
Passadas quase três horas, em que pelo menos já não havia dores de estômago, lá se tenta saber das razões de tanta espera. "Mas já chamámos a senhora três vezes." Chamaram uma ova. Mas vai-se a ver e chamaram mesmo, só que pelo nome errado. Tinham-se enganado a transcrevê-lo.
Etapa seguinte: nova espera para ser atendida pelo médico, em nova sala fria e malcheirosa, servida por casas de banho imundas, cheia de doentes em maca que dormem, resfolegam, gemem e protestam. Há um que, subitamente curado pelo desespero, se levanta e tenta pôr-se dali para fora, até ser impedido por familiares  e encarregados. Um preso algemado à cadeira de espera é escoltado por dois polícias entediados que o ameaçam entre dentes à mais ténue tentativa de se mexer. A fome aperta, mas não há sequer uma miserável máquina de café, quanto mais de bolachas ou qualquer coisa que se trinque. 
Só quase lá para a 1 da manhã é que somos chamados, atendidos e mandados embora com o problema resolvido. Lá fora no passeio, solitário na noite gelada, abraçado de cócoras a um pilarete metálico, o jovem de gorro murmura coisas vagas por entre as quais se pressente que implora, protesta ou simplesmente se lamenta. Suspeito que o infeliz ainda lá esteja.
No total dos dois dias, foram quase 8 horas de inferno nas garras do sistema hospitalar de uma capital europeia (durante as quais, além de tudo, não vimos um único empregado de limpeza) apenas para obter a receita de um antibiótico que não fizesse dores de estômago, que finalmente se conseguiu num quarto de hora de consulta por uma médica de extrema simpatia e competência. 
"É a mesma coisa em todo o lado," disse-nos o homem do táxi. "Se quiserem ser bem atendidos vão ao privado." Isto é cada vez mais evidente perante a degradação e o desinvestimento nos serviços públicos, nomeadamente nos de saúde. Mas saí da aventura com um respeito renovado pelo Serviço Nacional de Saúde e pelos hospitais portugueses, onde nunca fui tão mal atendido nem testemunhei tamanho desleixo - por enquanto. É que quase me estava a esquecer de dizer que isto se passou em Paris, primeiro no hospital Bichat, depois no Lariboisiére, num país cujo sistema nacional de saúde já foi considerado modelar. 

terça-feira, 14 de dezembro de 2010

O frio em Paris



Il peut pleuvoir
Sur les trottoirs
Des grands boulevards
Moi j'm'en fiche
J'ai ma mie
Auprès de moi
Il peut pleuvoir
Sur les trottoirs
Des grands boulevards
Moi j'm'en fiche
Car ma mie
C'est toi
  (Jacques Brel)



Há neve nas Tulherias. E um frio de rachar. Nas traseiras da Notre Dame, uma qualquer Cinderella pós-moderna largou um sapato. Ninguém liga. Os príncipes casadoiros não andam na rua com este frio de gelar paixões. Andam na Internet.
Mas na praça St. Michel há gente de joelhos, quieta ao frio, rezando alto, em protesto contra o aborto: Notre Père, qui êtes aux cieux...Que votre nom soit sanctifié... Que votre règne arrive...Que votre volonté soit faite sur la terre comme au ciel.  Eu nem quero acreditar - parece que estou em Fátima e não no Quartier Latin. Alguns CRS vigiam, de equipamento em riste, prevendo qualquer contra-manif. Quem disse que já não se reza na França céptica, "filha mais velha da Igreja"? Em Paris acontece de tudo, já o devia saber. 
Da porta da Madeleine, vê-se ao longe a Assembleia Nacional, com a Concórdia pelo meio: dois templos gregos recobrindo um o poder espiritual, outro o temporal, diante um do outro, iguais nos seus frontões. O urbanista quis pô-los assim, encarando-se, vigiando-se, desafiando-se? Nunca tinha reparado nisso, absorvido com o barulho das luzes. Reparo agora, que entro na Madeleine. Gosto de igrejas, estejam elas onde estiverem. E Paris vale bem uma missa, lá dizia o outro. 

Ali à beirinha compro chocolates, chás e patés no Fauchon. Em Portugal chamar-lhe-iam gourmet. Em Portugal chamam gourmet ao que é simplesmente bom, é uma mania recente, pacóvia e espertalhaça, que serve para cobrar mais pelo que deveria ser corrente. É como o Correio Azul, que leva dinheiro para fazer o que qualquer correio normal e  decente deveria fazer: entregar as coisas a horas. Qualquer tasca de Paris seria gourmet em Lisboa, qualquer café de esquina (são quase todos de esquina) seria casa de luxo, com cadeiras de palhinha, veludos, candeeiros e espelhos. Mas em Paris é simplesmente um café, um sítio onde é agradável estar. 
Ainda por cima com este frio selvagem. Mas Paris com frio também existe. Não dá para a balade, que essa é boa na Primavera, quando florescem os castanheiros. Mas dá para o calor burguês, o vinho morno, o cheiro do papel numa livraria, o amor entre coxins de veludo vermelho e papel de parede com anjinhos e grinaldas. A força dos clichés é tanta que não há remédio.
Há uma Paris para cada gosto. Frívola ou profunda, burguesa ou revolucionária, rica ou pobre. Cada um pode tirar dela o que quiser. As grandes avenidas do barão Haussman foram rasgadas para o progresso, o comércio, a ordem - e também para a cavalaria ter espaço para carregar sobre o povo, depois das convulsões do meio-século XIX. Na margem esquerda já não há calçadas, que foram esventradas em Maio de 68 em busca da praia que se dizia estar debaixo delas, e para lançar os pavés à cabeça dos polícias. Agora o Boul'Mich é alcatroado. Nas vielas de Montmartre ainda se evocam artistas esfomeados, cantores bêbedos, gatos vadios, putas e sons de acordeão, mas também as barricadas e o sangue da Comuna. O Marais de má nota deu em trendy. 
Mas a verdade é que Paris, e a França com ele (ou ela. Até no nome, que não se sabe se é feminino ou masculino, Paris dá para tudo) deixou de produzir génio. Alguém dizia que a França não tinha petróleo mas tinha ideias. Duvido que ainda as tenha, e se não arranjar petróleo depressa, está tramada. Já ninguém fala francês, e até eu, que quase o bebi nas papas da infância, o descubro por vezes enferrujado. Paris não morreu, mas quem a mantém viva são milhões de pessoas para quem a cidade em particular, e a França em geral, ainda simbolizam qualquer coisa que não seja um simples valor de mercado. Para a gente da minha geração, havia duas Franças, qualquer delas um farol. Nenhuma delas existe mais. Mas a memória de ambas vai demorar muito tempo a morrer. E Paris será sempre o que quisermos dela. É por isso que lá voltarei sempre como se fosse a primeira vez.

sexta-feira, 3 de dezembro de 2010

Tempo de vésperas

Winston Churchill dizia que a Rússia (na altura, a URSS) era um segredo envolto num enigma dentro de um mistério. Nunca se sabia o que lá ia dentro, nem o que de lá sairia. Mas uma coisa é certa: pode haver lá de tudo menos "democracia" ou "estado de direito," que nunca foram coisas muito russas, nem era agora que passariam a ser. O segredo não esconde o facto de não haver milagres. E milagre seria que um homem estruturalmente autoritário e russo como Vladimir Putin, formado nessa escola de virtudes democráticas que era o KGB, e que agarrou o poder com as duas mãos, o largasse por meras questões técnicas.
À Rússia fazia falta um campeonato do mundo de futebol, que lhe foi dado agora para organizar. Se me tivesse dado ao trabalho de o escrever aqui, teria ficado exarado que eu já sabia que isso ia acontecer, continuando a não ser bruxo. O processo de aproximação ao Ocidente ilustrado na cimeira da NATO em Lisboa precisava disso, como vai precisar de mais coisas. O gás russo ainda é muito necessário, a emergência da China exige  um contrapeso geostratégico urgente.
Daqui para a frente, só mesmo por força maior é que não vamos andar aos beijos na boca com a Rússia, enquanto cortejamos a China. Nenhum deles flor que se cheire em termos de regime político. E que se dane a defesa do estado de direito, da democracia, dos direitos humanos, daquela que José Cutileiro definiu há tempos como a mais decente forma de se viver em sociedade que até hoje foi inventada. Depois pensa-se nisso, até porque há uma crise economico-financeira de proporções históricas que não vai lá com paninhos quentes, que nos atormenta enquanto os colossos extra-ocidentais se perfilam no horizonte. Para o desenvolvimento dessa forma de viver está a chegar um interlúdio. O programa seguirá dentro de momentos. Se seguir.

quarta-feira, 1 de dezembro de 2010

Os meus livros

Riobaldo ama Diadorim. Não é que Riobaldo goste de homens, é jagunço como Diadorim, cabra macho. Mas não teve remédio, há coisas que não se percebem mas têm que se aceitar, e Riobaldo apaixonou-se pela beleza de Diadorim, enquanto deambulavam nas tropelias da vida e da morte pelos "sertões das gerais," sul da Bahia e norte de Minas. Riobaldo gostaria de sossegar da jagunçagem, assentar ao lado de Diadorim, seu amor platónico. Mas este não pára enquanto não vingar a morte do pai. Nesta história há tudo: drama, enganos, dívidas de sangue, pactos com o Diabo, recontros. E morte. E o sertão, que "está em toda a parte." E há a linguagem com que Guimarães Rosa a escreveu, um português à solta que não existe na natureza mas foi trabalhado palavra a palavra em cima dos falares sertanejos. 
Não é que eu tenha lido um dos livros da minha vida. Não o li todo. "Grande Sertão: Veredas" é ilegível de fio a pavio, porque cada página é um esforço de ultrapassar o fascínio pela forma para chegar ao conteúdo. Ao fim de dez estamos felizes mas arrasados - e elas são para cima de quinhentas. Não li o livro todo, mas beberrico páginas avulsas de vez em quando, como agora voltei a fazer e por isso aqui digo, para saborear coisas como estas que abro ao calhas:

Do que podia suceder. Vi homem despencando demais, os cavalos patatrás! Dada a desordem. Só cavalo sozinho podia fugir, mas os homens no chão, no cata cata. Ao que, a gente atirava! Se morria, se matava, matava? Os cavalos, não. Mas teve um, veio, à de se doidar, se espinoteava, o cavaleiro não aguentava na rédea, chegaram até perto de nós, aí todos os dois morreram de repente. Meu senhor: tudo numa estraga extraordinária.
(...)
Daí, deu um sutil trovão. Trovejou-se, outro. As tanajuras revoavam. Bateu o primeiro toró de chuva. Cortamos paus, folhagem de coqueiros, aumentamos o rancho. E vieram uns campeiros, rever o gado da Tapera Nhã, no renovame, levaram as novilhas em quadra de produzir. Esses eram homens tão simples, pensaram que a gente estava garimpando ouro. Os dias de chover cheio foram se emendando. Tudo igual - ás vezes é uma sem-gracez. Mas não se deve de tentar o tempo. As garças é que se praziam de gritar, o garcejo delas, e o socó-boi range cincerros, e o socó latindo sucinto. Aí pelo mato das pindaíbas avante, tudo era um sapal. Coquexavam. De tão bobas tristezas, a gente se ria, no friinho de entrechuvas.

Já lhe chamaram "livro gay", mas "Grande Sertão: Veredas" é tão gay como "Morte em Veneza". Está muito para além de coisa tão simples. Não é um "Brokeback Mountain" avant la lettre (é de 1956) e sertanejo. É o que cada um quiser que ele seja, coisa que define as grandes obras. Para mim, é esta delícia de invenção no falar e dizer, e é também a sede de uma das mais belas e comoventes cenas de amor de toda a ficção, quando Diadorim é finalmente morto numa refrega, jaz ensanguentado e Riobaldo, louco de dor, lhe descobre enfim o segredo:

Sufoquei, numa estrangulação de dó. Constante o que a Mulher disse: carecia de se lavar e vestir o corpo. Piedade, como que ela mesma, embebendo toalha, limpou as faces de Diadorim, casca de tão grosso sangue, repisado. E a beleza dele permanecia, só permanecia, mais impossivelmente. Mesmo como jazendo assim, nesse pó de palidez, feito a coisa e máscara, sem gota nenhuma. Os olhos dele ficados para a gente ver. A cara economizada, a boca secada. Os cabelos com marca de duráveis... Não escrevo, não falo! - para assim não ser: não foi, não é, não fica sendo! Diadorim...
Eu dizendo que a Mulher ia lavar o corpo dele. Ela rezava rezas da Bahia. Mandou todo o mundo sair. Eu fiquei. E a Mulher abanou brandamente a cabeça, consoante deu um suspiro simples. Ela me mal-entendia. Não me mostrou de propósito o corpo. E disse...
Diadorim - nu de tudo. E ela disse:
- "A Deus dada. Pobrezinha..."
E disse. Eu conheci! Como em todo o tempo antes eu não contei ao senhor - e mercê peço: - mas para o senhor divulgar comigo, a par, justo o travo de tanto segredo, sabendo somente no átimo em que eu também só soube... Que Diadorim era o corpo de uma mulher, moça perfeita... Estarreci. A dor não pode mais do que a surpresa. A coice d'arma, da coronha...
Ela era. Tal que assim se desencantava, num encanto tão terrível; e levantei a mão para me benzer - mas com ela tapei foi um soluçar, e enxuguei as lágrimas maiores. Uivei. Diadorim! Diadorim era uma mulher. Diadorim era mulher como o sol não acende a água do rio Urucuia, como eu solucei meu desespero.
O senhor não repare. Demore, que eu conto. A vida da gente nunca tem tempo real.
Eu estendi as mãos para tocar aquele corpo, e estremeci, retirando as mãos para trás, incendiável: abaixei meus olhos. E a Mulher estendeu a toalha, recobrindo as partes. Mas aqueles olhos eu beijei, e as faces, a boca. Adivinhava os cabelos. Cabelos, que cortou com tesoura de prata... Cabelos, que no só ser, haviam de dar para baixo da cintura... E eu não sabia por que nome chamar; eu exclamei, me doendo:
- "Meu amor!..."

segunda-feira, 22 de novembro de 2010

De uma cimeira

Durante dois dias, a FIL pareceu um objecto de ficção científica, uma qualquer base lunar hermeticamente isolada. Milhares de pessoas ali fechadas, no meio de uma segurança intransponível, para um circo diplomático com guião conhecido, espectáculo garantido e resultado anunciado. Estas cimeiras são as fotografias mais caras de toda a história das relações internacionais. Dezenas de líderes nacionais tiram umas horas para virem mostrar-se, fingindo que vêm resolver coisas enquanto nós fingimos acreditar nisso. Mas não fazem nada que um telefonema, ou uma videoconferência, não fizesse. Dito isto, estas encenações são essenciais. O poder é tanto acção efectiva como imagem de si próprio. O poder, e as suas relações, é como o amor: não basta sê-lo, há que parecê-lo. Tem que ser coreografado, sob pena de não ser efectivo. Estaline perguntava quantas divisões tinha o Papa - e o Papa sabia que não precisava de nenhuma, tinha todo o peso da liturgia valendo por mil divisões. O poder, as relações  de poder, vivem de percepções, de imagens, de encenações, de cerimónias. Sem elas, seria apenas um exercício vão de homens despidos de qualquer força. 

Então eu vi Dmitri Medvedev. Homem pequenino - ou velhaco ou bailarino. Mas este tem ar de saber dançar. Catarina, a  Imperatriz, dizia que a Rússia é demasiado grande para ser governada por mais do que uma pessoa. Quem a governa hoje? É este baixinho com ar de funcionário atilado? É este pachola? Ou é ainda o outro, Putin, o ex-KGB, o sex-symbol que caça feras de tronco nu nos Urais para fazer sonhar as caixeirinhas de Moscovo e manter em respeito os ânimos do resto do mundo?

Vi o baixote em Lisboa, ali a uns metros de mim, e perguntei-me se ela trazia mesmo a Rússia com ele. A Rússia dos silêncios grandes como uma jornada na estepe, da grande literatura, da grande música, e também a dos possessos, dos místicos, das paixões desatinadas, dos niilistas, dos caminhantes, dos bêbedos, das torres sobre os rios gelados que guardam coisa nenhuma, das planícies infinitas onde se vive e morre sem nome, como as folhas das árvores.

A Rússia dos  soldados impassíveis que guardam o Kremlin com olhos cinzentos e gelados de lobos da tundra é também a das mulheres belas como deusas hiperbóreas, que a derrocada soviética nos devolveu - a nós que durante 40 anos achámos que lá só havia matronas hediondas com dentes de ouro e maridos funcionários do Partido. 
Essa foi, reconheçamo-lo, uma dádiva não dispicienda da queda do comunismo, que entre os seus maiores erros tinha o de não ser erótico. A Ninotshka e as KGB's boazonas que acabavam na cama com James Bond enquanto o queriam matar não contam, até porque muito do seu sex-appeal vinha precisamente do facto de serem uma ficção incongruente. Só nos romances é que havia disso, e aristocratas misteriosas e doridas, fugidas aos bolcheviques e levando vidas dignamente modestas no exílio de Paris enquanto os seus brasonados maridos guiavam táxis para sobreviver. Para a minha geração, as russas ou eram babushkas trágicas ou rudes moçoilas de lenço na cabeça e braços roliços, guiando tractores para cumprimento de planos quinquenais ou parindo heróis da revolução. Não eram nada disto. 
  •                                                  
O pachola do Medvedev não trouxe na pasta a Rússia paranóica e com pavor do cerco, esse país colossal e ao mesmo tempo singularmente encravado entre gelos eternos, desertos hostis e impérios adversos, com acesso difícil aos mares quentes e à circulação vital dos oceanos. Veio dizer ao não menos pachola Obama que a Rússia dele quer ser muito amiga, e colaborar imenso. Claro que não lhe disse que ao mínimo sobressalto invade a Geórgia, ou coisa que o valha. O urso dorme com um olho aberto. Não se sofrem impunemente 20 milhões de mortos só da última vez que alguém quis violar a Grande Mãe Rússia - fora as outras. Lá ao fundo, no seu gabinete, Putin vela, de arma aperrada, e com ele velam os eternos fantasmas russos, feitos de sangue e lágrimas. Não são 20 anos de pseudo-democracia que vão apagar mil anos de chicote. Não são palavras e promessas que vão curar complexos. Não é agora, só porque o petróleo já não dá para grandes gastos, a China despertou finalmente e toda a gente é amiga no Facebook, que a Rússia vai deixar de ser o que é.

Não é agora que as coisas vão deixar de ser o que são, só porque a NATO anuncia que se vai embora do Afeganistão - coisa nunca vista na história das guerras. Se eu fosse talibã sentava-me calmamente, guardava-me de canseiras e poupava as balas para daqui a quatro anos. Até lá, a NATO vai dedicar-se a treinar e armar o exército afegão, para ver se ele acaba o trabalho que está longe de acabado. Isto é, não só não tem conseguido matar um monstro como está a criar outro. Já vimos este filme. Os próprios talibã foram criados nos anos 80 pelos serviços secretos paquistaneses, com dinheiro americano, para combaterem os soviéticos. Postos os soviéticos a andar, a coisa deu no que se sabe. Osama bin Laden era, nesses tempos, um útil mudjahidin anti-soviético, abençoado pela CIA. Não descansou enquanto não rebentou com o World Trade Center. Uma das grandes lições da História é que os homens nunca aprendem com as lições da História.
No Afeganistão, a honra manda que os homens não se vendam - mas alugam-se facilmente. Naquela manta de retalhos tribal em que se muda de fidelidades como quem muda de chapéu, o que a NATO está a fazer é a treinar e armar inimigos mais competentes. Já houve esquadras inteiras de polícia que desertaram com armas, bagagens e o precioso treino ocidental.
Amanhã serão regimentos e batalhões. O governo do pavão Kharzai, se entretanto não lhe tratarem da saúde por um pior ainda, continuará alegremente a recolher os dízimos e os óbulos dos senhores da guerra e do ópio. O Afeganistão não vai deixar de ser o que é. E, ao lado, o Paquistão tem bombas atómicas e cada vez mais malandragem à solta.

Ainda não vimos nada.

quarta-feira, 17 de novembro de 2010

Intermezzo

No domingo passado estava um homem a ler os Contos de Bertrand Russel enquanto almoçava na marisqueira O Cabecinha, em Aljustrel. Eu nem sequer sabia que Russel tinha contos publicados, ou pelo menos publicados em português. Não é que me interesse muito, porque a criatura já me deu o que tinha a dar há muitos anos, e para mim é assunto encerrado. Tenho mais coisas que me ralem. O que me tira do meu remanso para aqui vir dar ao dedo é que isto de descobrir alguém a ler Bertrand Russel enquanto come secretos de porco preto e bebe um branco da Herdade da Malhadinha n'O Cabecinha de Aljustrel (que recomendo sem rebuço) é daquelas pequenas coisas sem grande importância que tornam a vida engraçada.

terça-feira, 16 de novembro de 2010

Correntes

jjamarante, que é um querido, referiu-me numa coisa chamada "corrente," pela qual as pessoas que fazem blogues vão dizendo bem umas das outras. Ora eu, das correntes, sempre achei que quando uma passasse por mim fugiria, como daqueles comboios que se faziam nas festas, percorrendo a casa com chapelinhos de cartolina na cabeça, arrebanhando incautos ao som de marchinhas brasileiras. Mas ele, que tem um blogue notável pelo que nos ensina sobre a pureza de olhar as coisas, não merece que eu agora seja  envergonhado, ou modesto. Mais tarde ou mais cedo eu teria que fazer uma coisa destas, e agora é tão boa altura como qualquer outra.
Acontece que sou um péssimo classificador de blogues, pois a grande maioria dos que existem partilha a característica essencial de não serem lidos por mim. A blogosfera é um mar que eu navego erraticamente e sem cartas ou diário de bordo. Por isso não posso, legitimamente, fazer uma classificação. Não sou um coca-bichinhos como a Shyznogoud (ninguém é, acho). Também não é por ela ser minha amiga, mai-la mana, e de vez em quando ter a pachorra de me referir que eu a refiro a ela e àquele antro que é o Jugular, que eu leio muitas vezes e nomeadamente quando me está a apetecer irritar com qualquer coisa. O Jorge C. sabe do que falo, e sabe que também o amo. 
Com a peripatética Luísa palmilho a cidade que nos calhou em sorte para nascer ou dela sermos, e que é a mais feia do mundo, à excepção de todas as outras. Refiro o maradona entre os pesos-pesados (como dizem as meninas das informações da Bolsa e do PSI 20) porque me diverte a maneira como ele se diverte fazendo os outros levarem-no a sério, e muitos levarem-se a si próprios também. No registo "passado da carola" tenho o Atum Macaco, pela sintaxe e pela forma como tortura as palavras e expressões mais inocentes, coitaditas.  E quero aqui referir a descoberta recente e casual do pipoco, um rapaz snob que tem uma expressiva e fiel ranchada de comentadoras boas como o milho e singularmente erotizadas por ele. É a inveja de qualquer um. Quanto ao resto (but not the least, porque valem todos a pena,) é favor ver a lista de vizinhos aí do lado, que eu não tenho a vossa vida.

sexta-feira, 12 de novembro de 2010

Coisamailinda

Para as bandas de Castro Verde

No Alentejo, a terra ondeia como o corpo de uma mulher. Ou estende-se como um tapete vivo. Os homens são como as árvores: ora juntos ora dispersos, mas iguais, em pé contra todos os ventos, e de casca dura. Ficam ali, quietos, olhando o horizonte, sabendo que no dia em que conseguirem tocá-lo estará perto o fim da jornada. Por isso não têm pressa.
No Alentejo, os deuses não têm píncaros de onde observar os homens. Por isso, têm que se misturar com eles, comer e beber das mesmas malgas, palmilhar os mesmos caminhos. Também por isso as igrejas são belas, mas têm pouca gente. Os homens confiam mais em si próprios, e uns nos outros, do que num poder qualquer.
No Alentejo, vê-se até muito longe, e o longe é perto. A terra muda de cor, cobre-se de penugem, fica seca, estala ou canta sob a água. E os caminhos nunca acabam.

quinta-feira, 11 de novembro de 2010

Quem tem medo do andar de cima?

Desde que novos vizinhos se mudaram há uns meses para o andar por cima do meu na Grande Alface, o lugar deixou de ser sossegado. São jovens e recebem muitos amigos. Aos fins de semana é uma gritaria de conversas lá em cima, e música. Nos outros dias, são geralmente sons cavos de home cinema. De manhã cedo, todas as manhãs, ela saltita pela casa de saltos altos.
Uma destas manhãs, saltitou mais do que o costume, e de forma mais nervosa. Julgo saber porque foi: é que na véspera, em vez de risos, gritos, ou filmes, houve só gritos. Entre as onze e a uma da manhã, mais coisa menos coisa, ela não se calou, gritando-lhe raivas, revoltas, amarguras, desilusões, eu sei lá. Não percebi uma palavra. Mas foi um desandar do que lhe ia dentro. 
Quanto a ele, não sei. Certamente interagiu com ela, mas nunca o ouvi, nem geralmente lhe oiço os passos de manhã. Provavelmente usa solas de borracha. Provavelmente, ouve e cala, ou fala num registo menos estridente. Não sei. Mas ela gritou, arrepelou-se, passou das marcas, chorou alto, deitou tudo cá para fora.
Foi como se muita coisa precisasse de ser vociferada. Há momentos assim, como as grandes tempestades em que tudo transborda por causa de chuvas e ventos que não se sabe de onde vieram. Nessas alturas também as palavras caem do céu arrastadas por feridas que nem sabemos que tínhamos, ou que se calhar nos infligimos naquele mesmo momento, em tempo real.
Não sei se tudo ficou dito. Não sei se vai haver mais gritaria. Por mim é indiferente, pois entre a raiva e os amigos, entre os ajustes de contas e o home cinema,  que venha o diabo e escolha o que menos se oiça. As discussões domésticas, ao menos, têm uma pulsão dramática que suaviza o incómodo.  Como as janelas iluminadas do prédio em frente, também apelam ao nosso lado voyeur
Edward Albee escreveu o que até agora é certamente a mais espantosa cena conjugal que dramaturgo algum jamais concebeu. E eu, no devido tempo, apaixonei-me por Quem Tem Medo de Virginia Woolf? Consumiu-me no cinema a paixão fabulosa de Richard Burton e Elisabeth Taylor, na pele dos dois heróis de Albee que são George e Martha, nessa longa noite em que despedaçam tudo o que de mais profundo pode haver entre um homem e uma mulher para, sobre a paisagem devastada, quando sobre ela se ergue a tímida aurora de um novo dia, se amarem com a infinita ternura dos que sabem que vão continuar juntos. Encantou-me, em Lisboa, a excelente performance em palco de Jacinto Ramos e Glória de Matos - com Mário Pereira e Maria do Céu Guerra no jovem casal convidado para aquele fim de noite de copos e raiva, como inadvertidas mas necessárias testemunhas, a fim de que tudo fosse inelutável.
Sim, as paixões são plásticas, e fascinantes. No fundo, estou curioso, confesso, de saber o que se vai seguir no andar de cima. A cidade grande tem destas coisas: impõe-nos a vida alheia de uma forma perversa. E anónima. E superficial. É que eu nunca vi os meus vizinhos de cima. Ou, se os vi, não sei que são eles. A cidade são vidas que se alinham paralelas, juntas por força do espaço e, na maior parte das vezes, pouco mais do que isso.
Como já se passaram uns dias, penso que a tensão acalmou. Oxalá. Mas nem o home cinema nem os amigos se têm ouvido. Só os saltos dela. Que vida será a deles, depois da tempestade? O que se terá partido naquela noite? O que terão descoberto? Por mim, gosto de finais felizes, digo já.

quarta-feira, 10 de novembro de 2010

Prova de vida

Num blogue que se preze, o respectivo titular deve pôr o seu fofo bichinho de estimação, seguindo a lógica de que um blogue é essencialmente um exercício de projeccção do "eu" na realidade virtual. Portanto, há que pontuá-lo de sinais conducentes a deixar impressas nessa mesma realidade (ainda que de forma aleatória, irregular, não-organizada e acentuadamente dispersa) marcas que de certa forma humanizem o autor e permitam aos muitos milhares de pessoas que o seguem e eventualmente idolatram identificar-se ainda mais com a sua sensibilidade e Weltanschauung.
É  por isto, mas sobretudo porque há muito tempo que aqui não venho e quero informar que estou bem muito obrigado, que hoje aqui ponho a minha gata.

segunda-feira, 25 de outubro de 2010

Quem vai à guerra

Chamava-se Momade, era "miliciano" da Frelimo. Apanhámo-lo de manhãzinha fresca,  mais a sua Simonov chinesa semi-automática, quando o coirão ainda dormia na palhota já as mulheres trabalhavam na machamba. Fora, como de costume, a tagarelice delas que nos guiara. Pouco depois ouvia-se ao longe o grito de "tropa aué!" repercutido pelos matos fora, mostrando que estávamos descobertos. Choveram, à nossa procura, três ou quatro morteiradas.
Já nada tínhamos a fazer ali. Passáramos de caçadores a caçados. Sabíamos que eles tinham postos de sentinela espalhados, e sabíamos que o Momade sabia onde eram. Mas o gabiru, passado o susto, fazia-se de lucas e encolhia os ombros. Então o Vaz deu-lhe dois valentes cachações, agarrou-o pelo colarinho, encostou-lhe a faca de mato ao pescoço até quase fazer sangue e disse-lhe: "Ou nos dizes onde há sentinela ou faço-te como se faz às galinhas." Subitamente prestável, o Momade guiou-nos dali para fora que nem um campeão.
Não sei se isto foram métodos de interrogatório um pouco mais agressivos, ou se já caem na definição de tortura. Seja como for, e dado o contexto, achei muito bem  que tivessem sido empregues. Assim não houve mais violência nem chatices, e evitou-se cair em alguma emboscada onde até podia ter morrido alguém, deles ou nosso.
Comparada com muitas outras que se passam na guerra, esta é, evidentemente, uma história de encantar*. A guerra é uma porcaria. Por isso é que eu não fico muito impressionado quando saem revelações do género das que sairam agora por via da WikiLeaks, revelando que morreu muita gente no Iraque e que houve casos de tortura. Se não tivesse morrido gente, e se não tivessem havido casos de tortura, é que eu estranhava. Ao contrário do que muita gente parece esquecer hoje em dia, a guerra está longe de ser uma coisa pacífica, e muito menos um passatempo de salão. A guerra não consiste só em em fazer mal a outras pessoas, mas em fazer todo o mal que for possível - incluindo matá-las - sofrendo o menos que formos capazes. Se num jogo de futebol, que é a guerra codificada, há quem deliberadamente parta a perna ao adversário no calor da luta, mesmo diante de um árbitro, de umas dezenas de milhares de espectadores e até de muitos mais na televisão, o que será numa guerra a sério, por mais códigos e regras que se queiram pôr nela?
Os tempos modernos procuraram fazer guerras sem mortos (pelo menos, mortos do "nosso" lado), recorrendo à tecnologia. No fundo, é a aplicação da máxima de George Patton, segundo o qual "nunca um sacana ganhou uma guerra morrendo pela sua pátria. As guerras ganham-se fazendo os outros sacanas morrerem pelas pátrias deles."  Só os anjinhos deliberados em que se tornaram grande parte dos telespectadores ocidentais podem acreditar que as "bombas inteligentes" e os "ataques cirúrgicos" não partem mais do que telhados e paredes. E só quem nunca esteve numa zona de guerra pode acreditar que toda a gente se comporta segundo as regras da decência humana. Um combatente em acção não é um ser na plena posse do seu discernimento moral e ético. Um campo de batalha é, por definição, um ambiente altamente letal e stressante. Para mais, numa guerra suja como são as modernas guerras "assimétricas", nas quais um dos campos usa a população para se dissimular, discernir o inimigo entre os inocentes não é tarefa fácil nem para quem esteja descansado a ver de longe, quanto mais para quem lá esteja no meio do inferno, ameaçado de morte. Eu, que me conheço, não sei como reagiria em situações limite em que visse cair gente à minha volta com tiros disparados do meio de uma multidão de inocentes. 
Não, a tortura, a morte indiscriminada, a crueldade, são coisas que não têm desculpa nem justificação.  Não são de admitir. A vigilância sobre excessos e abusos de toda a ordem é uma conquista civilizacional de que não podemos abdicar. Mas é útil não esquecer que a guerra não é exactamente o território da compaixão. Não se pode aceitá-la e depois ficar surpreendido por nela morrer gente e se cometerem violências. "A guerra é o Inferno," dizia William Tecumseh Sherman, general da guerra da Secessão. Ele sabia do que falava. Ao arrepio do que se costuma dizer, a primeira vítima da guerra não é a verdade. É a inocência.

*O Momade acabou por confessar que o melhor que lhe podia ter acontecido foi ter sido apanhado pela tropa. Parece que tinha casado mas não pagara  as cabras e as galinhas devidas pelo dote, e o sogro andava por aqueles matos fora de canhangulo em riste, ameaçando-o com uma carga de chumbo. Agora, a salvo e sem mulher, divertia-se imenso e fazia uns cobres a lavar a roupa da soldadesca. De resto, no próprio dia em que foi capturado e uma hora depois de ter levado os calduços, já estava a comer rações de combate e era amigo de metade do pelotão.

quinta-feira, 21 de outubro de 2010

Douce France

Paris, 1982
Em 1789, a França explode contra o direito divino dos reis, contra a velha ordem, por um mundo novo de liberdade, igualdade e fraternidade.
Em 1968, a França explode contra a sociedade de consumo e a alienação burguesa, pela imaginação ao poder e a proibição de proibir, entrevendo a praia sob as calçadas.
Em 2010, a França explode porque não se quer reformar dois anos mais tarde.
Cada época tem a França que merece.

quarta-feira, 20 de outubro de 2010

Portugal S.A.

Querido blogue:
Hoje acordei para o Outono, com frio e céu azul. A minha gata felpudinha miava a pedir-me comida, e havia passarinhos lá fora a lembrar-me que a vida não pára. A buganvília do pátio continua a encher tudo de folhas caídas, mas agora menos, que já está a ficar descarnadinha. O ar estava perfumado de ervas e com um travo a fumo das queimadas, ou das fogueiras dos ciganos, e eu disse que bom que é estar vivo e que bonito que é o mundo.
Depois de tomar banho e fazer a minha higiene matinal fui até ao centro da vilazinha beber café e comprar o jornal para saber as notícias. É verdade que os jornais só falam de desgraças e de guerras, nunca têm coisas boas e felizes, e a televisão é a mesma merda. Mas mesmo assim eu gosto de saber o que se passa no mundo e à minha volta. 
Então li no jornal que o director de um banco diz que "Portugal é viável, mas tem muito trabalho pela frente" e fiquei inquieto. Não por causa do trabalho, mas por ele dizer que somos viáveis. É como quando nos dizem: "Estás óptimo!" Aí percebemos que estamos velhos. Da mesma forma eu percebi que Portugal pode não ser viável, senão ninguém precisava de dizer que o era. Não é que eu não suspeitasse, afinal Portugal é assim uma espécie de milagre desde a batalha de Ourique, e existe, distingue-se ou meramente se aguenta por via de alguns estrangeiros ou imigrantes de 2ª geração (D. Afonso Henriques, filho de um francês, Infante D. Henrique, filho de uma inglesa, Camões, filho nem se sabe de quem, e muitos outros filhos de senhoras, ou nem tanto). Mas divago.
Querido blogue: só um banqueiro poderia falar da viabilidade de um país como se fosse uma empresa. A verdade é que nenhum país é viável. Todos, pelo menos uma vez na sua história, já estiveram na falência (quando é um país acho que se diz bancarrota), e continuaram a existir.
A verdade é que nem quero pensar muito no que possa ser a inviabilidade de Portugal. Temo acordar de noite pressentindo beleguins à minha porta por conta dos chamados mercados internacionais, para me levarem de penhor a televisão, a bimby, o quadro da Última Ceia e quiçá a comida da gata. Imagino o Governo a meter os teres e haveres em caixas de papelão, antes de chegarem os senhores da comissão liquidatária. Fico sem saber para onde iremos, o que faremos, o que será de nós se se chegar à situação concreta da inviabilidade portuguesa. Passaremos a ser espanhóis? Seremos vendidos em leilão da Sotheby's, à mistura com quadros pré-rafaelitas e pratas venezianas? Em que lote ficarei eu? Serei comprado por um fundo de investimento do Texas ou passarei a fazer parte dos activos de uma companhia de seguros dinamarquesa? Divago outra vez.
Mas se a questão da viabilidade for mesmo real, então eu tenho uma sugestão: privatize-se o país. Venda-se isto a uma multinacional, que coloque cá um Conselho de Administração com administradores de vários pelouros em vez de ministros (a palavra até tem a mesma raiz), um CEO em vez de primeiro-ministro, e faça-se uma Assembleia Geral de quatro em quatro anos, para os eleger. Em vez de um discurso sobre o Estado da Nação, o CEO assina todos os anos um Relatório e Contas.
Se ao fim de um certo período a inviabilidade for certa, então, olha, transformem isto num Clube de Campo para milionários russos gerido por um condomínio internacional, ponham umas vaquinhas nos campos, umas meninas seminuas nas praias, umas lojinhas "gourmet" um pouco por todo o lado, sei lá que mais, eles é que sabem.
Querido blogue, era só isto. Agora não tenho mais assunto, de maneira que vou ficar por aqui. Vou almoçar pastéis de massa tenra e depois acho que vou dar um passeio. Não sei quando voltarei a escrever mas se passar muito tempo é porque não aconteceu nada de especial.

sábado, 16 de outubro de 2010

A raça do Chile

Não conheço o Chile, embora gostasse muito de o conhecer. Por isso falo de ouvir dizer e de ler. Do Chile só conheci chilenos, entre eles alguns exilados que trabalhavam numa residência universitária em Paris no início dos anos 80 e que, em vez de atenderem ao balcão do bar, passavam o tempo ao telefone a combinar golpes de Estado.
O Chile distingue-se de todos os outros países do mundo porque quase não tem largura, só  comprimento. E sendo tão comprido, está lá perdido numa costa americana, com os Andes de um lado, o Pacífico de outro, desertos a norte e gelos a sul. É dos países mais isolados do mundo. Não admira que lhe pertença o pedaço de terra mais longe de qualquer outro, que é a ilha de Páscoa. Dá ideia que mesmo expandindo-se continua solitário.
Teve um ditador de cara, aspecto e prática típicos das mais caricatas ditaduras sul-americanas à general Tapioca (vide histórias do Tintin), mas brutal como a mais fria das realidades, e apoiado num dos exércitos mais "prussianos" do mundo. Foi mártir e heróico nos anos de brasa, laboratório social, exemplo, bandeira,  inspiração tanto para libertários como para Chicago boys. Tem nitratos, minérios, revolucionários, uma praça em Lisboa, terremotos medonhos. Tem excelente vinho, que ainda há pouco bebi. E teve uma história magnífica, esta dos mineiros.
Quando tudo começou, tive medo, confesso. Medo de que uma vez mais a realidade viesse estragar tudo - matando os mineiros, ou transformando o seu drama em mais um circo ódio-visual.
Mas nada disto aconteceu. Apesar de tudo, apesar de todos os aproveitamentos político-mediáticos, a história dos mineiros chilenos de San José foi uma história perfeita que me reconciliou um pouco com o género humano.
Primeiro, pela forma espantosa como eles se comportaram - organizando-se quando nada nem ninguém sabia deles, conservando a esperança, lutando da única maneira que podiam: mantendo-se homens na sua dignidade fundamental. E quando uma sonda lhes chegou, mostrando que alguém os procurava cá em cima, limitaram-se a dizer que estavam todos bem, e onde. Sem lamúrias nem pieguice.
Depois, pela pronta resposta dada, recorrendo a tudo quanto a tecnologia podia dar. A operação foi exemplar: rápida, eficaz, precisa. Sem querer bater demais no ceguinho, e assumindo alguma injustiça filha do desconsolo com o meu país, suspeito que a estas horas, em Portugal, ainda estaria uma comissão a acabar de se instalar nos seus novos gabinetes para começar a estudar uma solução para o assunto - acabando toda a gente por se esquecer, um mês mais tarde, que havia 33 desgraçados soterrados lá em baixo.
Mas o Chile é um país civilizado e organizado, e tem orgulho em sê-lo. 
Eu confesso que fiquei espantado quando comecei a ver saír os mineiros. Esperava ver emergir seres esquálidos, esgaseados, semi-mortos de fadiga e desespero, e vejo sair cavalheiros bem barbeados, de cabelo cortado, nutridos e em forma, como se saíssem de um spa, e quase tão calmos como quem chega de um fim de semana no Algarve - embora admita que os óculos escuros tenham ajudado a esta imagem.
Primeiro senti-me defraudado: como toda a gente, tinha-me preparado para me apiedar. E nenhum daqueles homens me parecia digno de piedade, antes pelo contrário. Para quem literalmente renascia, parido pelas entranhas da terra numa espécie de cesariana ou laparotomia geológica, estavam com demasiado bom aspecto.
Mas depois percebi a grandeza de tudo aquilo. Aqueles homens nunca quiseram inspirar piedade, e não seria agora que o iam querer. Talvez por machismo sul-americano, talvez por orgulho na sua condição de mineiros, provavelmente por tudo isto e por muito mais, fizeram questão de sair do seu inferno com o desplante de um toureiro que não descura a pose mesmo depois de ser colhido, e tenta fazer de conta que nada lhe aconteceu. Aqueles 33 homens, que no escuro de um buraco a 700 metros abaixo da terra, rodeados por milhões de toneladas de rocha, mantiveram a sua condição humana - a sua organização,  as suas rotinas, as suas hierarquias, a sua coragem e dignidade individuais, o seu sangue-frio perante a morte sempre iminente - quiseram manter tudo isso quando subiram e se mostraram, ao mundo e aos que, sem hesitar ou perder um segundo, os ajudaram a sair acreditando sempre que o conseguiriam fazer. Sem choros, sem lamentos, sem remoques, sem acusações vãs. Apenas com uma frase e um voto: "Que isto nunca mais aconteça."
Foi uma história exemplar. Aconteça o que acontecer a seguir, senti-me bem com os homens, nestes dias de desencanto. E acredito que aqueles 33 mineiros estejam neste momento a pensar na sorte que tiveram em tudo se ter passado no Chile. Não é pouca coisa para se dizer de um país.

quinta-feira, 14 de outubro de 2010

Intermezzo

São Paulo, Outubro
As cidades  têm correntes, como os oceanos. A maior parte é invisível, e só as percebemos quando estamos nelas e sentimos, a princípio levemente, que estamos a ser levados. Sem sabermos porquê e como, somos arrastados ao longo de leitos que pressentimos não serem da nossa escolha. Uma cidade grande é um corpo que nos leva. E assim acabamos numa rua em que não pensámos, a beber encostados a um balcão que não preferimos. Algo nos chamou para ali, mas nunca saberemos o que foi.

domingo, 10 de outubro de 2010

A casa do sol nascente

Domingo, 7 e 45. 
A nossa casa é onde gostamos de sentir o cheiro das manhãs.

sábado, 9 de outubro de 2010

Pessoa no seu labirinto














Para percorrermos o universo labiríntico de Fernando Pessoa, nada como um espaço labiríntico, obscurecido, espécie de percurso iniciático em cujas paredes negras se suspendem fragmentos iluminados de poemas numa ordem anárquica. 
Alguns só podem ler-se ao espelho, a maioria surge como se fosse do nada, suspensos num espaço negro. E assim mergulhamos literalmente na heteronimia, na perplexidade, na pluralidade, na própria demanda pessoana.
Depois há écrãs tácteis onde folheamos os manuscritos. Há um pêndulo misterioso por detrás de painéis de S. Vicente translúcidos. E há uma mesa corrida sobre a qual se espalham as mais variada edições de Pessoa, manuseadas por crescidos, adolescentes e crianças das escolas.













É a exposição temporária sobre Fernando Pessoa no primeiro piso do Museu da Língua Portuguesa, devidamente existente na maior cidade de língua portuguesa do mundo. Eu nunca tinha visto nada assim sobre Pessoa. Ainda bem que há o Brasil para tomar conta dos meus poetas. 

O saco e a tralha

Na Bienal de São Paulo, instalada num espaço ondulante  de luz e curvas brancas lançado por Oscar Niemeyer, lembrei-me do meu irmão que um dia juntou umas tralhas que havia lá em casa dos pais, meteu tudo num saco e foi para a feira da Ladra tentar vendê-las. Ao fim do dia, tinha vendido apenas uma: o saco. 
Quando o que há de mais interessante numa exposição é o sítio em que ela está instalada, algo vai mal com ela, ou connosco. Mas eu sei que o problema não é só meu. A arte contemporânea está com o enorme problema de se achar a si própria e de se justificar num mundo inundado de mensagens. A tecnologia é capaz de nos fornecer experiências estéticas e sensoriais em qualidade e quantidade nunca vistas, e a arte ressente-se da concorrência. 
Então, refugia-se no conceito, no puro intelectualismo, lá onde a tecnologia nunca poderá chegar - mas facilmente alcançável pelo charlatanismo. A arte conceptual anda neste traço vermelho. Um dia eu dou uma mijadela no chão da sala e digo que é uma instalação, e aposto que sou aplaudido.

terça-feira, 5 de outubro de 2010

Um dia normal

Avenida Paulista
A República não me excita. Sou genericamente insensível ao discurso sobre a “ética republicana,” porque não vislumbro o que tal possa ser. Em Espanha, em Inglaterra, que são monarquias, não me parece que haja menos ética, ou que ela seja fundamentalmente diferente da nossa. Ética é ética: ou há, ou não há.
Não me choca nada que um determinado corpo de valores de uma determinada sociedade, povo ou nação seja corporizado, simbolizado ou representado por um elemento não-eleito, e mesmo hereditário. Nem tudo tem que ser representativo e avalizado pela maioria. Se a razão da maioria fosse sempre a melhor e a mais justa, não teriam pregado Cristo na cruz e libertado um ladrão. Dir-me-ão que essa tragédia foi essencial para fundar uma religião. Pois foi. Obrigado por me darem razão.
Numa família, não se elegem os pais, por mais debatida e democrática que seja a vida do núcleo. Um povo, uma nação, um país, não são muito mais do que uma família um pouco maior e mais complexa. Um conjunto nacional não pode ser, não é, uma mera soma de vontades. Há sempre algo que está acima disso, e que tem a ver com uma perenidade, uma linha inviolável, um passado e um futuro, um elo indefinível.
Não sou monárquico nem republicano. Acho que hoje a questão está ultrapassada. Mas acho um pouco patética a noção de um presidente “de todos os portugueses” que foi eleito por metade deles. Se é para ser uma figura moral, um árbitro, uma figura tutelar, então que o seja mesmo, e liberte-se da exigência do voto. Um rei, mesmo que seja um idiota, está acima disso. E, hoje em dia, nem faz muito mal que o rei seja idiota, porque não é ele quem manda. A casa real inglesa não prima pela finura de espírito, e os ingleses, de forma geral, vivem bem com isso.
Não me importava nada de ter um rei, e de ter o cerimonial de que todas as monarquias se rodeiam. Até porque o fausto da representação do estado e da nação, ou de uma ideia colectiva, é essencial para a identificação de todos com ela. A Igreja sabe disso, quando se reveste de ouro. Mário Soares sabia disso quando foi presidente, François Mitterrand também. E eram os dois socialistas.  Não tem nada a ver.
O presidente dos EUA é um rei eleito. A república norte-americana vive fascinada com a monarquia, contra a qual se formou. É uma espécie de "complexo de Estocolmo."  Nem descansou enquanto não arranjou uma espécie de família real, os Kennedy. E as dinastias republicanas sucedem-se no governo.
A República implantou-se em Portugal quando já não havia muita diferença a fazer. A Monarquia que por cá vigorava já era inóqua em termos de regime. Não passou a haver mais liberdade ou mais democracia. Nada mudou no essencial. Continuaram a cometer-se fundamentalmente os mesmos disparates. Não estaríamos hoje pior do que se tivéssemos continuado com um rei.
Não estou, neste momento, em Portugal. Mas, se tivesse, este dia ser-me-ia indiferente.

segunda-feira, 4 de outubro de 2010

sexta-feira, 1 de outubro de 2010

Janelas (in)discretas

S. Paulo
Os grandes edifícios das grandes cidades nunca dormem, como elas. E à noite, no prédio em frente, despertam em nós coisas inconfessáveis. O voyeur que há em cada um dá com ele à espera de entrever uma mulher a despir-se, um casal a fazer amor em cima da secretária, um empregado a roubar.
Mas altas horas, nas divisões desertas e abandonadas, quase podemos ouvir o silêncio lá dentro. Cada janela iluminada abre-se para um mundo à espera de ser de novo habitado. É o ruído de fundo da cidade que nos diz que a vida continua.