quinta-feira, 21 de janeiro de 2010

Raios e cervejas

Bucareste, 1995

Um raio é como a felicidade: quando damos por ele, já passou. Não há fotógrafo que não sonhe em fotografar um. Há gente que persegue trovoadas como aqueles doidos que correm atrás dos tornados no Midwest americano, sem nunca conseguir caçar um raio.
Pois bem, eu consegui. Está aqui. Devo confessar que não me deu grande trabalho: foi em Bucareste, no Verão de 1995. Estava uma noite de ananazes, como diria o Eça, e caíu uma trovoada pavorosa. Eram raios de segundo a segundo: foi só poisar a máquina no parapeito da varanda e ir disparando. Algum haveria de ficar preso no filme.

Os verões, naquelas paragens, são tão selváticos como os invernos. Se estes são de ir aos vinte e aos trinta negativos, congelando até as ideias, aqueles são de torrar o corpo e os miolos. Não admira que aquela gente seja meio louca e aquelas terras tenham sido percorridas pelas maiores violências da História.
Naquele dia eu tinha estado a beber umas cervejas com o Nicu. Era o diminutivo de Nicolae Nicolaiescu, um nome que não podia ser mais romeno - em Portugal, seria José da Silva, ou coisa do género. Para aí metade dos romenos chamam-se assim. Ora eu tinha conhecido o Nicu na rua, quando ele começou a mandar vir comigo por eu estar a tirar fotos. Parei-lhe a verborreia com um sinal de que não estava a perceber patavina do que ele me estava a dizer, e aí o bom do Nicu percebeu que eu não era romeno.
"Julguei que eras da segurança," disse ele num inglês problemático. Bem-vindo à paranóia romena, pensei eu. Mal tinham passado seis anos desde a queda estrondosa de Nicolae Ceausescu, o "Danúbio do Pensamento," o "Génio dos Cárpatos" - enfim, o traste que tinha subjugado a Roménia sob uma das mais brutais e grotescas ditaduras de que há memória na Europa. Tudo ainda estava muito fresco.
O Nicu era engenheiro civil e vivia na rua, roupas em desalinho, cabelo às farripas, um cheiro pavoroso. "Não há trabalho." Convidou-me para bebermos uma cerveja. Aponto uma esplanada próxima. "Ali é muito caro. Só tenho dois mil lei." Na altura, eram uns 150 escudos, menos de um euro hoje. Dava para umas três imperiais. "Anda daí que pago eu." Ficou feliz. Assim já podia guardar os lei para ir comprar cigarros ao contrabandista.
Se reproduzida hoje, a maior parte da nossa conversa seria datada. Já lá vão quase quinze anos, nessa altura a Roménia acabara de depositar o pedido de adesão à UE, e ainda não fizera as pazes com o passado recente. O Nicu falava-me dos fantasmas de Ceausescu e da Securitate que pairavam ainda sobre a Roménia, governada pelos que tinham mandado matar o ditador rapidamente, antes que ele falasse demais. O que se passara fora um mero ajuste de contas. Mas o que interessa é que bebemos quase um litr de bere enquanto o Nicu me explicava que uma revolução é quando as coisas dão uma volta completa e voltam onde estavam antes. Andar em frente é uma evolução, explicava, vincando uma linha recta com a unha suja na toalha de papel.
O Nicu era meio louco, e deu-me ali uma sabatina de ciência política, pedindo regularmente desculpa pelo mau inglês: "Quando trabalhava, falava mais. Agora, na rua, esqueci-me um bocado." Separámo-nos quando a tarde tropical escureceu de nuvens e se resolveu em chuva e trovoada.
Bom, isto de lembrar coisas é como as cerejas, e serve só para explicar como é que esta foto me lembra uma tarde em Bucareste durante a qual eu fiz algo que dificilmente faria em Lisboa: beber umas imperiais com um sem-abrigo avariado da tola. Quando saímos da nossa terra, saímos um bocado de nós. É isso. Tudo é diferente, o tempo é diferente. Acho que também foi por isso que consegui apanhar um raio no velho Kodachrome.

2 comentários:

  1. O Nicu é um sábio, JPB. Não caiu, sequer, na tentação de se exibir com a medida da «volta completa» revolucionária, como há dias, na televisão, fazia um português «mediatizável», insistindo nos 380º. ;-D
    E o raio é um belíssimo raio! :-)

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