quarta-feira, 10 de fevereiro de 2010

Era uma vez na América

A aldeia global de Marshall McLuhan é um termo um pouco esquecido, porque os visionários são sempre esquecidos – sobretudo os que tiveram razão. Mas é o termo que melhor se aplica ao mundo de hoje, que é realmente uma aldeia. É por isso que o Jorge é adepto do futebol americano, do qual, pelos vistos, vê um jogo por ano na televisão e segue o resto pelos jornais. A lei da proximidade abarca hoje o mundo inteiro, e até na paixão desportiva há amores virtuais.
Eu percebo muito pouco de futebol americano. A minha ideia é de que aquilo é uma mistura de râguebi com o jogo da glória. Também percebo pouco de basebol, e para ver como era fui um dia ver um jogo dos New York Mets, em Queens. Fiquei quase na mesma, e achei que era o jogo mais infantil do mundo. Mas não o são todos? Percebi que os americanos gostam daquilo porque tem uns picos de excitação quando os artistas conseguem acertar na bola (pelos meus cálculos, não mais de um ou dois minutos por jogo, tudo somado) mas o resto demora três horas, permitindo que eles saiam para comer uns cachorros e beber umas cervejas, e passem a maior parte do tempo a confraternizar uns com os outros ou a fazer negócios. Como em todos os outros desportos nos EUA, um jogo é sobretudo uma festa. O que se passa à volta do campo é tão importante como o que que se passa nele, e se calhar mais.
Aconteceu-me estar em Boston em 2004, quando os Red Sox ganharam as World Series do basebol. É o Campeonato Nacional deles e, portanto, é Mundial. (O Mundo são os EUA. O resto ou é paisagem, ou são comunistas, o que inclui a al-Qaeda. Ou então não existe. A maioria dos americanos acha que a América Central é no Kansas. Os restantes acham que é no Nebraska).
Ora os Red Sox, sendo de Boston, são como o Porto: uma nação. Eles falam mesmo da Red Sox Nation, que tem adeptos de costa a costa dos EUA. E não ganhavam as World Series havia 82 anos.
Convém lembrar que estamos a falar de uma das cidades mais sofisticadas dos EUA ( do Mundo, portanto...). Da cidade de Harvard, do MIT, dos Kennedy, das elites intelectuais da Costa Leste, de tudo isso e muito mais. Não é uma parvónia qualquer em busca de afirmação e auto-estima. Mas, de um momento para o outro, o Boston cool explodiu na mais gigantesca, inacreditável, provinciana, alienada, louca, pirosa e contagiante das euforias colectivas. Tenho pena, e muita, de ter perdido a maioria das fotos que tirei. Eram ainda analógicas, em filme. Só fiquei com umas poucas digitais.Para quem achava que por cá somos tarados pela bola, tive uma cura de choque. Eu não queria acreditar no que via. Do mais pindérico dos pasquins ao Boston Globe, todos deram a primeira página ao evento. Não digo uma parte da página, nem sequer a manchete: digo toda. Muitos deles, com uma foto única, geralmente do herói da equipa, um crioulo alegadamente bom no bate-e-foge basebolístico.
Depois, lá dentro, eram páginas seguidas de notícias, reportagens e análises que iam do puramente desportivo ao declaradamente político. Vivia-se para mais a recta final da campanha presidencial que opunha George Bush, buscando um segundo mandato, a John Kerry, que era dali mesmo de Boston. Então eu li coisas como a afirmação de que agora Kerry já nem precisava de ganhar, porque o Massachussets, tantas vezes esquecido e negligenciado pelos poderes federais (onde é que eu já li coisas assim?) tivera finalmente a sua desforra e o seu dia de glória. Pinto da Costa, tu não és nada comparado com isto.
Toda a cidade se engalanou. Não havia montra de loja que não aludisse ao evento, com manequins vestidos de Red Sox, bancos a prometer juros indexados ao resultado final, peúgas vermelhas por todo o lado. E no dia em que a equipa regressou da final, fez um desfile por toda a cidade aplaudida por um milhão (um milhão!!) de pessoas nas ruas. As televisões davam Red Sox até ao enjoo. Uma delas foi fazer reportagem para o cemitério. Um cidadão abraçava-se a uma campa, chorando que nem um desalmado: "Avôzinho, havias de estar vivo para veres isto com que sonhaste toda a tua vida."
No final disto tudo, dei por mim a gritar Who's your daddy now? com um boné dos Red Sox pelas ruas de Boston. Não me orgulho. Mas em Roma sê romano.

1 comentário:

  1. E então esse maravilhoso e ultra excitante jogo chamado cricket ? Deve ter sido inventado apenas para os ingleses poderem acompanhar o chá e os "cookies".

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