quinta-feira, 25 de março de 2010

Crónicas transtaganas



No outro dia, quando começou a Primavera, eu estava lá para o Alentejo e apanhei com uma chuvada como nunca tinha apanhado na vida. Ia por uma daquelas estradas intermináveis que rompem a charneca em suaves altos e baixos, e às tantas parecia que a chuva, de tanta força que trazia, me ia partir o vidro. E ainda faltava o granizo. Eu pensei: "Se isto já está assim, o que será quando começar a cair a granizada?" Arreceei-me, como diria o Aquilino.
Parei o carro. Em menos de cinco minutos corriam rios pelos declives. Havia pedaços de montado de onde despontavam azinhos assustados e sobros como náufragos repentinos. A charneca marulhava e gorgolejava, que são palavras estranhas para descrever o Alentejo. Havia pássaros nas árvores a piar de espanto.
Isto era, repito, mais ou menos pela hora em que começava a Primavera. Havia manchas de flores amarelas e brancas a assinalar a coisa, mas tudo o resto a desmentia. Tanto pior para os clichés. Há pouco mais de três meses eram tempos de seca, via-se o fundo às barragens e as costelas às vacas. Mas desde então, só chove por ali. Em memória de chaparro velho não há tanta chuva, tanta água a cair dos céus e a escorrer por aquelas curvas que parecem um corpo de mulher arrepiado.
Agora estão verdes - já a despontar num arruivado aqui e ali, mas ainda verdes. Há partes do Alentejo que parecem a Irlanda. Há água até vir a mulher da fava rica, mas parece que as raízes do cereal apodreceram. Vai ser má colheita.
Não há fome que não dê em fartura, não há fartura que não dê em fome: cada vez mais acho que este mundo está muito bem concebido na sua total falta de sentido. Quem o fez sabia o que estava a fazer. Tudo anda em círculo, é como aquele jogo chinês em que o papel embrulha a pedra, a pedra amola a tesoura e a tesoura corta o papel.
Há sempre algo que nos redime e algo que nos afunda. Dá para tirar uma moral de tudo o que acontece, e talhada à feição de cada um. Podemos é não saber bem o que fazer com ela. Mas isso, tal como as chuvas de Primavera na charneca e muitas mais coisas que agora não vou dizer, é que dá gosto à vida.

5 comentários:

  1. Há uns tempos aconteceu-me o mesmo, apanhar um «dilúvio» numa estrada, no meio do Alentejo. A sensação foi extraordinária, no sentido literal do termo. Parece que um mundo novo se revela, de um momento para o outro. Muito estranho...
    Partilho a sua convicção. O que redime e o que afunda estão presentes em tudo, sempre, o caos e a ordem, o bem e o mal. Sempre, eternamente. Não há fim nem princípio, o mundo é circular, e não falo apenas da bola onde nos movemos.
    Belo apontamento!

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  2. JPB, o meu Pai dizia que o mundo foi muito bem concebido, sim, mas muito mal executado. E que seriam esses erros de execução que baralham a lógica «procedimental» das coisas e a nossa compreensão delas. Senão, vejamos: por que razão não choveu nem nevou no início do Inverno e há-de chover cães e gatos no início da Primavera? Erro «procedimental». E não há compreensão humana (logo, previsão) que resista. ;-D

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  3. Eu costumo dizer é que é um lugar muito mal frequentado. Mas a ideia de o fazer foi boa.

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  4. Pois, pois... pega no avião, aterra no Verão brasileiro e vais voltar a ver o que é chuva, da grossa, que ensopa até ao tutano. Volta a São Paulo e ao Rio, também a Minas Gerais, regressa o Rio grande do Sul e verás que a nossa chuvinha não dá nem para lavar o nariz.

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  5. De chuvas tropicais também tenho a minha conta... Mas esta, garanto que lhes pedia meças.

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