terça-feira, 11 de maio de 2010

De outra manhã no Alfa


Por alturas de Santarém, eu já estou francamente a par da vida amorosa da senhora que, junto da janela oposta à minha, a debate ao telemóvel com alguém que se adivinha corresponder à descrição de "uma amiga." Confesso uma certa pena do Horácio que partilha tal vida. A avaliar pelas confidências, o infeliz está no limiar do despedimento com justa causa. E creio mesmo - não vou jurá-lo, mas o discurso dela contém alusões implícitas - que a sua substituição já tem vindo a ser testada com recurso mão-de-obra eventual.
O sujeito ao lado dela dorme tão ostensivamente que cheguei a julgar que tomara uma pastilha de cianeto só para não a ouvir mais. Eu estou um pouco mais longe e mesmo assim a voz da mulher incomoda-me, até porque se vai entusiasmando com a conversa enquanto folheia maquinalmente uma revista do Correio da Manhã.
Nos televisores de bordo, Pedro Abrunhosa, com uns óculos escuros enormes que claramente o impedem de ver onde se meteu, é entrevistado por uma rapariga da qual me escapa o nome mas que julgo já ter sido namorada de vários futebolistas. Eu sei que esta referência se aplica a cerca de 2 536 raparigas em condições de entrevistarem Pedro Abrunhosa. Fora as outras. Mas é o melhor que se arranja.

Acontece que eu, geralmente, não estou interessado nas vidas de quem por simples acaso viaja no mesmo comboio que eu. Não é que não possam ser interessantes, de grande cunho humano, e até espiritualmente inspiradoras. Mas gosto de ser eu a escolher as que eventualmente me interesse conhecer.
O problema é que há pessoas – sempre houve – para quem a explanação da sua vida privada em público é essencial ao equilíbrio psicológico. São as que falam alto onde quer que estejam, olhando disfarçadamente em volta para verem o efeito que a coisa provoca. 
O feito é geralmente condicionado pelos interlocutores directos disponíveis, isto é, precisam de pelo menos uma pessoa com quem falar. Mas o telemóvel veio dar-lhes uma base de apoio quase ilimitada. Basta-lhes construírem uma lista de contactos abundante e complacente e não lhes faltam recursos, mesmo que estejam sozinhos. Assim podem expor diante dos incautos circunstantes uma vida social intensa. E também uma actividade profissional dinâmica: a avaliar pelas conversas, toda a gente é patrão, tem secretária, e uma agenda de 50 reuniões diárias.
Reflexão do dia: o direito à privacidade não está só em causa quando outros violam a nossa intimidade, mas também quando nos impõem a deles.
Nos écrãs, Eládio Clímaco visita uma feira algures dentro da nossa Zona Económica Exclusiva, prova figos, e cheira uma banana.

Toca o meu próprio telemóvel: é um número não identificado. Já sei que é alguém que me quer oferecer um cartão de crédito, fazer um inquérito ou vender uma assinatura. Até a  Proteste, Santo Deus, já me telefonou para me tentar convencer a ser sócio. Agora a quem é que eu me queixo das empresas que me chateiam pelo telefone? 
Não atendo. Se o fizer, terei que mandar o desgraçado do lado de lá para locais nefandos, e isso custa-me: certamente, é alguém a ganhar uma miséria ou uma simples comissão que a minha recusa lhe nega. Além disso, não o vou fazer numa carruagem do Alfa cheia de gente. Mandei vir até agora, não vou fazer o mesmo que a mim próprio chateia. Desligo ostensivamente o aparelho, num gesto que só pode ser classificado como magistério de influência. Nós, as elites bem formadas, os bons exemplos sociais, sei lá, temos responsabilidades.
Eládio Clímaco fala com Rui Reininho, numa conversa entremeada de imagens do Porto. Era inevitável. As pessoas do Porto têm uma característica única, inexistente em qualquer outra pessoa, e que nunca as abandona: são do Porto.

Até chegar a Coimbra, a senhora do telemóvel já atendeu 5 chamadas e fez outras tantas, actividade que esgotou a paciência a dois interlocutores e a bateria a três. Resumindo: a criatura não se calou um segundo que fosse. O passageiro do lado continua inanimado. Mas eis que as condições ambientes se agravam de forma considerável: uma senhora, uns quatro lugares à frente, atende a filha no telemóvel e passa a descrever-lhe os pormenores de uma colonoscopia que felizmente correu bem. Depois dá cotoveladas na velhinha ao seu lado e passa-lhe o aparelho: "Toma, fala com a tua neta." A velhinha olha para o telemóvel, coloca-o no ouvido e solta um berro agudo: "Ah, 'nha filha, atão como vais?" Toda a carruagem estremece. A do lado sacode-a: "Chiu, fala baixinho, que ela ouve bem." Palavras sensatas. 
Eládio Clímaco bebe copos de vinho com o cantor Vitorino. 

O rapaz no banco de trás do meu informa a família, e a mim próprio, de que estamos a sair de Aveiro e que daí a 20 minutos estamos no Porto. A senhora do lado de lá folheia a revista do Correio da Manhã com a mão esquerda enquanto com a direita dedilha SMS's. O passageiro do lado acorda sobressaltado com o silêncio. Eládio Clímaco é transportado ao colo por dois elementos de um grupo etnográfico de Trás-os-Montes. 

4 comentários:

  1. Gostei muito do teu texto, até porque é uma situação tão corriqueira do cotidiano, mas confesso-te, que mais chamou-me a atenção foi o fato do Sr. Eládio cheirar uma banana...como-as diariamente, não me lembro de que tenham cheiro,
    acho que minhas mucosas nasais não estão trabalhando satisfatoriamente...

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  2. Descanse, Nilza. Acho que o problema não estava nas suas, mas nas dele.

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  3. Vou ficando fã dos seus textos JPB, este não é excepção.Tenho muitas vezes essa sensação de incómodo ao saber a vida das pessoas.Para mim acontece ainda pior,quando nas minhas viagens diárias na fertagus ,jovens sentados ao lado e têem a sua música a sair do telemóvel,achando que todos gostaremos de ouvir.Será que eles acham que ainda não estamos bem acordados e vai daí uma música ( para mim mais barulho que música)para a carruagem toda ouvir?
    Há outro acontecimento que eu adoro ver.
    As pessoas pegam no destak para ler na viagem,ao chegarem a lisboa e saiem deixam o jornal no lugar ao lado.Um acto de bem fazer ,pois o passageiro que nesse lugar se vai sentar já tem matéria de leitura sem se dar ao trabalho de a trazer com ele..
    Nem sei para que servem os depósitos do jornal Destak que reza o seguinte: Deposite aqui o seu jornal após leitura.
    Estará escrito numa linguagem que essas pessoas não sabem
    MJM

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