quinta-feira, 27 de maio de 2010

Já que este vai ser o tema dominante do próximo mês e meio, mais coisa menos coisa e mais crise menos crise...

... quero dizer o seguinte: eu gosto de futebol. Gosto do jogo, e da mistura de arte e combate que ele tem. Os ingleses chamam-lhe com razão "the beautiful game." Joguei-o com paixão durante anos e cheguei a ser, dentro do género meia-bola e força, um aceitável ponta-de-lança. Quando senti que começavam a ser-me mais fáceis os golos na cerveja do que na baliza dei lugar aos mais jovens, e entreguei-me à meditação que precede a sabedoria.
Na minha adolescência, cheguei a interessar-me razoavelmente pelos destinos do Sporting. Houve mesmo alturas em que sabia de cor a constituição da equipa principal, da qual recordo um punhado de valentes que ganhou uma Taça europeia ainda se está para saber como. Pelo caminho, deu uns fantásticos 16 a 1 ao APOEL de Chipre, que ficou por cá alcunhado de "Associação dos Padeiros Organizadores de Excursões a Lisboa." Nela militava o Figueiredo, o "Altafini de Cernache," que levou vários anos para conseguir passar pelos defesas contrários, e depois outros tantos a tentar fazê-lo com a bola; e o Mascarenhas, que nesses tempos bárbaros de grande incorrecção política eu e os meus amigos designámos solenemente "o único preto do mundo que não faz a mínima ideia do que é jogar futebol." Claro que também havia gente como o Osvaldo Silva, que tinha umas noções da coisa, e o recentemente falecido Morais, a quem a Pátria ficou a dever dois momentos fortes: o canto directo que deu ao Sporting a tal Taça na final, e uma valente sarrafada no Pelé que o atirou para o estaleiro com uma perna partida no Campeonato do Mundo de 66. Deus o tenha em descanso.
Durante um ano ou dois (se calhar três, e não se fala mais nisso) devorei diariamente A Bola e as prosas aquilino-camilianas com que Vítor Santos e outros jornalistas do tempo enchiam colunas inteiras para descrever um golo, um drible ou a decepção de um penalty atirado ao poste. Eram parágrafos como torres de menagem, períodos quilométricos, ora líricos, ora heróicos, que transportavam o leitor pelos relvados como se estes fossem os campos do Mondego ou, no caso de jogos com estrangeiros, a charneca de Aljubarrota. Há décadas que não abro um jornal desportivo, mas creio que hoje, se se joga melhor, escreve-se bem pior.
O interesse pelo que se passava fora das quatro linhas nunca foi muito, e mesmo esse, sendo pouco, desapareceu-me rapidamente. A crescente boçalidade que impregna o chamado "mundo do futebol," e as actividades da sua legião de arrivistas, patos-bravos e capi mafiosi tem o encanto de uma pocilga. O que lá se passa interessa-me tanto como a questão da recorrência do simbolismo lunar na moderna poesia chilena. Ainda gosto mais do Sporting que dos outros, mas o clubismo para além de uma módica predilecção por determinada camisola é-me incompreensível. Vejo gente a exaltar coisas como o "benfiquismo" ou o "sportinguismo" como se fossem preciosas virtudes morais e cívicas, e pergunto-me se estarão a falar a sério ou a gozar. Não tenho culpa, mas são coisas que para mim fazem tanto sentido como uma assembleia daquelas igrejas onde se investe dinheiro na salvação e no alívio divino das varizes. E por falar em religião: dignos cidadãos dizem mal do Papa e depois vão prostrar-se diante de sociedades anónimas geridas por bimbos com cachuchos de ouro no dedo e amantes brasileiras. O culto que professam alimenta multidões acéfalas, para não falar das claques de que já falei, e alegrou o país com três ou quatro mamarrachos às moscas que nunca serviram nem servirão para nada que não seja estarmos a pagá-los por um preço bem maior que dez visitas papais. É o regime do Estádio Novo, que muito naturalmente enterrou a ditosa Pátria nossa amada. Poupem-me.
Divaguei. Mas isto era só para dizer que nesta paisagem devastada eu mantenho o gosto pelo jogo. Há dois anos emocionei-me até às lágrimas com a densidade, a alegria, a beleza e ao mesmo tempo a eficácia com que a selecção espanhola o jogou. Raras vezes um campeão foi tão justo, e a vitória tão poética. Ao mesmo tempo, também sou um bocado bimbo: se pelas mesmas razões torço pelo Barcelona, fiquei todo contente com as vitórias do Mourinho, porque é português. E vou sofrer, embora sem grandes ilusões, pela Selecção. Que diabo, são chavalos cá da terra.
Disse. 
***
A foto foi tirada em 1977 no "Mineirão" de Belo Horizonte, num jogo entre o Atlético Mineiro e o Cruzeiro, o "derby" local. Na primeira ida ao Brasil, não quis deixar de ir a um jogo de futebol, para ver como era. À semelhança da televisão, nada tinha a ver com o que se passava em Portugal: comparadas com o que eram lá, ambas as coisas, por cá, tinham a animação de um velório. Não me lembro do resultado. Mas lembro-me que metade do estádio cantava "É ou não é / Piada de salão / Um time de viado / A querer ser campeão," e a outra metade respondia "Um, dois três / Quatro, cinco, mil / Eu quero que o Cruzeiro vá prá puta que pariu." No Brasil, rima.

11 comentários:

  1. Eu lembro-me de ouvir os meus colegas falar do Figueiredo todos os dias. Talvez pudesse dar tema para um post específico, não sei se associado ao Mito de Sísifo, se aos mistérios da selecção dos jogadores para integrar uma equipa, enfim um post sobre a condição humana...

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  2. Sr.JPB

    Sei que o tema predominante é o futebol, ia até comentar mas, será que poderia ter a gentileza de satisfazer-me a curiosidade e "traduzir", se não lhe for inconveniente ou incômodo, esse trecho:
    "... depois vão prostrar-se diante de sociedades anónimas geridas por bimbos com cachuchos de ouro no dedo e amantes brasileiras."
    Os portugueses só têm amantes de nacionalidade brasileira?
    Só a título de esclarecimento, a pergunta em questão não está relacionada ao fato de sermos marginalizadas e discriminadas por "alguns" patricios(as) seus, é tão somente mera curiosidade de uma brasileira.

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  3. Não, Nilza, os portugueses não têm só amantes de nacionalidade brasileira. Também as têm portuguesas, a maioria. E quiçá de outras partes. Mas eu não falei em todos os portugueses que têm amantes, falei só de alguns, que têm amantes brasileiras. Se conhecesse um pouco melhor a realidade portuguesa saberia do que falo.

    Há por cá brasileiros e brasileiras discriminados e marginalizados, sim.
    Mas não me parece que ter alguém por amante equivalha a marginalizá-lo ou discriminá-lo. Porque se for, quero ir para um convento.

    Descontraia-se e leia Eça de Queirós: ele povoou os seus romances de "hespanholas" que vinham fazer as delícias dos cavalheiros lusos. E não consta que a honra da Espanha e das espanholas se tenha, nem ao de leve, sentido beliscada por isso.

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  4. Ah, e já agora: tomara que a gente ganhe ao Brasil no mês que vem. Até os comemos, carago!

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  5. Certamente a honra do Brasil também não será afetada se as brasileiras e brasileiros optarem por relacionarem-se com portugueses(as), mas a curiosidade ficou no ar justamente pela especificação da nacionalidade, já que há uma diversificação, a brasileira tinha que ser citada.
    Quanto ao jogo, que vença o melhor, é esperar para ver, nunca canto vitória antes do tempo, sempre me avizinho da prudência e cautela, são excelentes conselheiras.
    Boa sorte!

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  6. JJ Amarante:
    Lembrei-me que Albert Camus, antes de escrever "O Mito de Sísifo", foi jogador de futebol (guarda-redes.) Não sei se uma coisa tem a ver com a outra. Mas talvez haja algo de Sísifo na condição do futebolista, que tem a missão de transportar uma bola para dentro de uma baliza o maior número de vezes possível, num trabalho que infindavelmente recomeça todas as semanas...

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  7. Também gosto do futebol que se joga bem jogado dentro das quatro linhas, JPB. E é verdade que se perdeu a grande «literatura» do futebol, mas ganhou-se, com o fenómeno «Rui Santos», a «análise científica», que aborda o desporto numa perspectiva «integrada», incluindo estatística, psicológica, histórica, filosófica e até físico-química, e que, a seu modo, também seduz.
    P.S.: Isto sem ignorar que ainda os há, no comentário futebolístico, com sensível vocação poética.

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  8. JPB,

    Não te preocupes muito com o que a minha dilecta amiga Nilza pergunta. É uma óptima Senhora, apaixonada por Nietzsche, mas nunca teve, para mal dos seus pecados, um amante português. Não se pode ter tudo!

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  9. gosto desta maneira ironica de querer ser diferente, mas no fundo no fundo és igual a muitos e muitas que gostam de futebol,que lembram os outros tempos do amor á camisola.
    JPB só parabéns por não seres fanático
    Mais não te iludas com a selecção
    Mjm

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  10. Eu não quero ser diferente. Quero é dizer a quem é que sou igual.

    O amor à camisola é hoje o mesmo que era noutros tempos, penso eu de que. Essa parte não percebi.

    "Vou sofrer, embora sem grandes ilusões, pela Selecção," escrevi eu.

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