quarta-feira, 19 de maio de 2010

O sabor da terra

Sintra - O castelo dos Mouros visto da Regaleira
Em quase 700 fotografias, praticamente não há pessoas, "apenas a paisagem nua, e a marca de um tempo secular." De norte a sul, das serranias graníticas às charnecas abrasadas, dos vales de arbustos e pedregulhos às colinas de tojo, urze e estevas, contando com as ermidas, as estradas, os castelos e os conventos, as vilas, aldeias e cidades, são "as pedras que assistiram imóveis à sucessão de muitas gerações", ou "os caminhos por onde homens e mulheres passaram em busca do pão, do amor, do poder ou da morte." É a tentativa de captar o carácter, a identidade, o espírito de um país através dos universos físicos - a terra, os rios, os ventos, as plantas - que os moldaram. Em quase 700 páginas de "Portugal - O Sabor da Terra," José Mattoso, Susanne Daveau e Duarte Belo quiseram fazer nada menos do que "o retrato de Portugal," essa coisa fugidia. Estou a imergir nele, agora que foi reeditado. Mas se é ele que me faz falar, não é dele que para já falo. É do seu fascinante sujeito.  
Há dezenas, centenas de livros sobre Portugal, e na sua esmagadora maioria escritos por portugueses. Desses, não poucos vão além da questão física, e mergulham no seu imaginário, na sua alma, tentando adivinhar o que vai nela. Dos estudos de Cunha Leão sobre a psicologia portuguesa aos labirintos da saudade de Eduardo Lourenço, das artes de sermos nós de Pascoaes aos horóscopos de Pessoa e ao profetismo de Agostinho da Silva, da razão e mistério de António Quadros aos inventários de lugares mágicos, de geografias sagradas, de mitos e lendas, predestinações e destinos singulares, há de tudo como na farmácia. E não me parece que, mesmo em proporção, outros tenham mais disto, ou sequer tanto como nós. Posso enganar-me mas, que eu saiba, Portugal é um dos países que mais se interroga sobre si próprio.
Essa interrogação traduz uma perplexidade, quase uma incomodidade, essencial: somos afinal o quê? Somos esta porcaria de povo que diariamente se desilude a si próprio, ou transportaremos connosco uma qualquer grandeza? Entre estas duas perguntas balança a nossa alma bipolar. Não sabemos bem onde havemos de nos situar. Oscilamos entre a mania mais desbragada e a depressão mais chã, entre a mais rasteira tacanhez e a loucura mais sublime. Somos como os gatos: ou passamos a maior parte do tempo a dormir, ou queremos sempre estar em mais de um sítio ao mesmo tempo, acabando por nunca estar em nenhum. 
Vivemos de sonhos e de oxalás, de milagres e mezinhas, de desenrascanços e de seja o que Deus quiser. Temos o mar em frente mas, mais do que marinheiros, somos emigrantes - se calhar porque o nosso mar começa geralmente a ser bruto logo aqui junto à costa agreste, sem grandes portos de abrigo, e não é amável, não nos convida a passear nele, antes a transpô-lo a salto. Foi isso que fizemos ao "mar d'um cão" que nos calhou, como também fizemos à Espanha cadela para chegarmos à Europa. Fomos lá, aos ultramares e depois aos transpirinéus, buscar tudo - a alma, o ouro, as especiarias, o pão e até, Santo Deus, o bacalhau. Devemos ser o único povo do mundo cujo prato nacional é feito com algo que não há nem nunca houve no seu território. Há séculos que mamamos em tetas de Eldorados. Primeiro foi a Índia, depois o Brasil, depois África, depois a Europa comunitária. E agora que tudo se esgotou, estamos no fim do caminho, e num belo sarilho. Já só podemos contar connosco.
Poderemos fazê-lo? O que teremos em nós que me faça acreditar que sim? Será para procurar a resposta que se reeditam livros como este, que perscrutam a alma telúrica desta estranha porção de terra em busca da sua essência e da sua razão de vida? Será por isso que tanta vontade me dá de os ler e reler, e de continuar a percorrer as veredas deste país de merda que eu amo sem remédio e que não trocaria por nenhum outro? Quem me tirasse o cheiro das estevas, a visão de espigueiros como pequenas catedrais sagrando o território e as sementes, dos rios, das serras e das planícies, o sabor das coisas, dos vinhos e das canções, o fio de ternura e sonho que me une às paisagens e às pessoas da minha terra, tirava-me a vida. Porque será?
Vá-se lá saber. 

5 comentários:

  1. Sim, porque será?
    Será, sómente porque queremos sempre mais sem nada fazer por isso?
    Será, por sentir a falta ou saudades do que somos e temos quando distantes deste cantinho?
    MJM

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  2. Raízes, meu senhor, são as raízes, a mesma que me une inexoravelmente e indissoluvelmente a este meu país tão cheio de contradições e imposturas, tão benevolente com malfeitores e corruptores e tão injusto com os retos e crédulos.
    O mesmo país que muitas vezes, li, vi e ouvi ALGUNS portugueses classificá-lo como terceiro mundista, a nós brasileiras como prostitutas e destruidoras de lares e aos brasileiros trapaceiros calhordas, olhar-nos de baixo acima como se fossemos ralé, a mesma que eles dizem que nossos colonizadores levaram para serem misturados aos escravos e indigenas, para formar a nossa raça.
    Esse é o meu país, terra da qual não ando muito orgulhosa, mas é a terra que me pariu, me alimentou, que sussurra suas dores, seus mal tratos, é a terra que grita por justiça, que sibila seus ventos em suas matas e seus rios , que amo, que não me ama tanto e que não sei viver longe dela.
    A explicação coerente? Raízes... estamos enterrados até a alma e fecundos em nossas terras, é a nosso fotossíntese.

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  3. Deixe lá, Nilza, o que os portugueses acham dos brasileiros. Olha que o portuga aí, no mínimo, também tinha bigode (eles e elas), andava de tamancos e era burro que nem um pneu de tractor. E, para muita gente, ainda é. São os estereótipos que sempre se criam nestas circunstâncias em que convivem comunidades.
    Quanto ao resto, é isso mesmo. Eu só queria era ouvir alguém dizê-lo melhor do que eu.

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  4. Parabéns pelo excelente texto. São as raízes ou algo mais que não se explica mas se sente. Embora diga que quisesse ouvir alguém dizê-lo melhor do que a si próprio, acho que o facto de o sentir dessa maneira já poderá ser reconfortante. Seria óptimo se a maioria do nosso povo o sentisse da mesma maneira, ou pelo menos conseguisse assumir que o sente sem qualquer tipo de complexos. Parabéns pelo blogue.

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  5. JPB, acho que gosto desta nossa terra por exclusão de partes. Encontro sempre uma vantagem nela que as outras não têm ou um defeito nas outras que ela não tem. Mas falo só da terra e das pessoas, uma a uma – mas não todas - que a habitam. Não aprecio particularmente a nossa «dimensão colectiva», em que só vejo desconfiança e atonia.
    Gostei muito de o ler e já aí tenho o livrinho que recomenda. ;-)

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