sábado, 12 de junho de 2010

Se eu soubesse

Se eu soubesse que isto ia ser assim tinha gozado a vida mais do que gozei, e perdido menos tempo a aprender inutilidades. Cada vez menos é preciso saber coisas que não sejam imediatamente necessárias à sobrevivência. Andámos nós a empinar as preposições simples, os rios e as linhas de comboio, as capitais e a tabuada, e nada disso precisamos de saber, porque agora as máquinas nos dizem tudo.
Se eu soubesse tinha poupado o meu pobre cérebro, não o tinha sobrecarregado com uma ganga inerte de conhecimentos que agora posso ir buscar facilmente a uma memória artificial ao alcance dos dedos. Quantos habitantes tem Kuala Lumpur? Em quantos cantos se divide a Divina Comédia? Em que dia nasceu Carlos V, e quais eram os seus títulos?* Posso saber tudo isto, e praticamente tudo o que quiser, em segundos. Para quê investir na memorização de coisas? Um clique, e já está: o Google é o saber em outsourcing.
Enganaram-me. Disseram-me que o saber não ocupa lugar. Claro que ocupa. E ocupa tempo. Felizmente, hoje estou liberto dessa infindável tarefa de formiguinha intelectual, e posso dedicar-me a uma especialização. Posso apertar parafusos em série, descansado. Não preciso de saber fazer contas, de saber línguas, de saber o que quer que seja, porque uma tecla me faz cálculos, me traduz, me diz o que quer que eu queira. Não preciso de me orientar, porque uma máquina me diz por onde devo ir. Não preciso de pensar, porque uma máquina me diz o que devo concluir, e não tarda que me diga que decisões devo tomar.
Nem preciso de ter muito trabalho, porque essa mesma máquina me vai publicar instantaneamente este desabafo, com uma audiência potencial que o D. Quixote - um texto consideravelmente melhor do que este - não teve em séculos.
Agora posso embebedar-me, dormir até tarde, perder-me no bosque. Sei que, se precisar, um clique me dirá o que preciso. Talvez seja isto a liberdade absoluta. Ou a servidão. Por enquanto, ainda depende de mim sabê-lo. Por enquanto.
__________

* Carlos V era Rei de Espanha, de Nápoles e da Sicília, dos Países Baixos e dos Romanos, Imperador do Sacro Império Romano, Arquiduque da Áustria, Duque de Milão, de Suábia, de Brabante, de Limburgo, de Luxemburgo, de Carniola, de Caríntia, da Estíria e de Gueldres, conde de Flandres, da Holanda, da Zelândia, de Ostrevant, de Hainut, de Louvain, de Namur, do Tirol, da Borgonha, de Artois e de Charolais e landgrave da Alta Alsácia. Aposto que nem ele sabia isto de cor.
Mas eu soube-o e pu-lo aqui, graças ao Google e ao copy-paste, em cerca de quinze segundos. Claro que não interessa para nada.


10 comentários:

  1. O desabafo está bem escrito, mas é um desabafo. É bom ter um acesso tão fácil à informação. Mas essa informação foi lá posta por pessoas e sobre muita dela as pessoas continuam a discutir a sua validade. Quando apareceu a escrita ouve quem se queixasse que as pessoas já não tinham que se lembrar das histórias, bastava ver o rolo de papiro ou o tijolo, nalguns casos. Há aí má vontade em relação aos bits electromagnéticos...

    ResponderEliminar
  2. E se um dia o Google falha, anh?

    ResponderEliminar
  3. Não sei onde está a má vontade, JJ. Eu gosto imenso desses bits, porque me fazem poupar tempo e esforço, e me libertam para fazer outras coisas. Uso e abuso deles.
    Como de outras vezes, apenas reflicto sobre mudanças que nos afectam e que têm duas faces: uma é a face do progresso, que nos facilita e enriquece a existência. Outra, é a do nosso progressivo distanciamento das bases sobre as quais assentam as nossas vidas.
    Estamos cada vez mais dependentes de uma tecnologia que cada vez menos controlamos. Claro que essa informação - e toda essa tecnologia - foi lá posta por pessoas. E, discuta-se ou não a sua validade, ela está lá e existe. (A discussão, de resto, tem os seus limites, pois para a grande maioria das pessoas trata-se de informação indiscutível e indiscutida - mas isto já é... outra discussão.)
    Como diz o anónimo aqui em cima: E se um dia o Google falha? Ficamos sem saber nada, porque é ele que sabe por nós. Como acontece com os nossos automóveis: dantes, tínhamos uma ideia de como funcionavam, e se emperravam conseguíamos muitas vezes resolver o problema com uma limpeza de platinados aqui, um fio ligado ali. Hoje, ficamos literalmente como bois a olhar para palácio.
    Uma vez mais: não tenho nada contra o progresso tecnológico, antes pelo contrário. Mas quero manter a lucidez de não esquecer que ele tem sempre um preço.

    ResponderEliminar
  4. Bom, é por essas e por outras que eu não gosto do conceito de computador pessoal magro, deixando tudo nos servidores da internet. Continuo a usar o Eudora para quando o serviço de gmail acabar eu continuar a poder ver os meus e-mails. Mas a completa autarcia é muito dispendiosa. Eu também sabia limpar a porcaria dos platinados do Mini, depois descobri que era melhor mudá-los sempre em Setembro para não ter a chatice do carro não pegar nos dias de chuva. Agora os motores são completamente misteriosos mas avariam-se menos e há telemóveis para chamar a assistência. E se o Google se avariasse estaria aí esa estante a fazer de backup.
    jj.amarante pangloss

    ResponderEliminar
  5. Não consigo resistir a coscuvilhar essas prateleiras, mesmo vendo-se mal. Também tenho a "Riqueza e Pobreza das Nações" do David Landes em edição da Gradiva à esquerda do "Guns, Germs and Steel" do Jared Diamond. Esse do Huntington deve ser irritante, optei por ler o "Identity and Violence" do Amartya Sen.

    ResponderEliminar
  6. Sobre o Mini: também tive disso. E continua a ser um mistério para mim o facto de um carro tão sensível à chuva ter nascido na Grã-Bretanha, que é, como se sabe, um país onde impera o sol e o tempo seco.

    ResponderEliminar
  7. Claro que os carros se avariam menos (enfim, têm dias) e temos telemóveis para chamar a assistência. É isso. Dependemos cada vez mais de uma rede tecnológica. É óptimo, quando ela funciona - e, geralmente, funciona. Mas somos cada vez menos capazes de compreender as coisas básicas da existência que nos rodeia. Cada vez menos sabemos como as máquinas funcionam. Cada vez menos sabemos acender um fogo, apertar um parafuso, descobrir um caminho ou evocar um poema, pois temos quem - ou o que - nos faça isso.
    Isto não é necessariamente um lamento, é uma constatação.

    ResponderEliminar
  8. JPB creio que adorava, nessa altura, ver os filmes de ficção cientifica?
    Ora aqui está essa evolução... Não foi a nossa geração que criou esta técnologia para nos facilitar a vida? Ei-la !!!!!! Não sejam resingões e nostalgicos.
    Não tenho nada contra, pelo contrário; espero ainda ter uma maria robó que faça quase tudo em casa e que eu detesto,tendo mais tempo para ler blogs como este.!!!!
    MJM

    ResponderEliminar
  9. MJM, a minha resposta a isso está inteirinha nas que dei acima, ao JJ. Leu?

    ResponderEliminar
  10. partilho dos pontos de vista de JPB; nada contra nem nada a fazer contra o progresso, mas claro que posso ser rezingão e nostálgico e não quero a maria robô pra nada (quer dizer, ainda não quero); robôs já os há por aí, se não lhes derem o comando certo escusam de carregar no enter! como numa história verídica duma empregada que não era capaz de processar "sandes mista em pão de forma", "então q é q isso leva", "f.daaasse queijo e fiambre, não?", "aqui tem", "aiú c.lho, eu disse em pão de forma!";até aqui, linhas de comando, enters falhados, computer says no; mas eis que a referida decide abandonar o 286 q repousa por cima dos ombros, recorre ao cérebro adormecido e dita "ah o q o sr. quer é uma tosta mista fria"; e pronto ñ era um bug no programa, era uma ordem mal introduzida, o q valeu foi a tecnologia google "será que v. quis dizer ..."

    ResponderEliminar