quarta-feira, 7 de julho de 2010

Auto-retrato com estrada e ciprestes (ou a deriva narcísica do autor recapitulando as fotos do lado numa só)


Gosto imenso de ciprestes. Jose María Gironella dizia que eles acreditavam em Deus, e eu acredito que sim, só de os ver assim erguidos, como conjuntos de mãos postas em prece. São campanários vegetais. Isso tem feito com que os tratemos com demasiada reverência, ao lhes dedicarmos sobretudo os cemitérios. Entre nós, só os mortos pareciam merecer esta árvore belíssima que, dizem-me os livros, nem sequer é europeia, posto que veio da Pérsia. Enfim, se formos a ver, muita coisa europeia veio da Pérsia.
Mas dá-me a impressão, absolutamente empírica, que o cipreste vai tendo por cá um uso cada vez mais profano. Ainda bem. São eles que na Toscânia dão o toque final à mais bela paisagem rural do mundo, acrescentando solenidade vertical aos vinhedos, olivais, trigais e pinheiros mansos que os deuses, através dos homens, ali compuseram. Gosto de os ver, solitários como sentinelas no descampado, ou em fieiras compactas como penitentes da Semana Santa .
Também gosto de estradas, sobretudo das que não conheço. Gosto de estações de caminho de ferro, e dantes também gostava imenso de aeroportos, mas fartei-me porque já são todos iguais. Gosto da expectativa, da situação provisória e transitória, da suspensão da vida normal que todos esses locais representam - ninguém é dali, todos são de outro lugar. Mas gosto sobretudo de estradas. Gosto que elas me levem, e de parar nelas como quem contempla o corpo do ser amado antecipando o prazer. Como no amor, o que mais interessa não é chegar ao fim, é caminhar até lá.  
Já fiz estradas do diabo. Andei milhares de quilómetros em África, por savanas que não mudam, em manhãs de cacimbo fresco e poentes de inferno. Atropelei galinhas, vi saltar antílopes e gnus, cruzei ciclistas desastrados que ou se assustavam ou me sorriam, mas acabavam quase sempre por cair na valeta já quando eu os olhava no retrovisor. Fiz 1200 quilómetros de Porto Alegre a S. Paulo com o credo na boca, a cheirar escape de camião e sempre à espera de me esborrachar contra um; pelo caminho, à entrada de Curitiba, e já anestesiado  por doze horas de estrada, não vi uma lomba artificial  e levantei voo. Devo ser a única pessoa que aterrou em Curitiba numa carrinha FIAT. No fim, fui ver no mapa a imensa jornada que realizara, e era só um bocadinho assim de Brasil, uma coisa pequenina cá em baixo.
Fiz trilhos de deserto e auto-estradas alemãs, fiz comboios no mato a 10 à hora, Shinkansen japoneses a 300, camionetas um pouco por todo o lado, e não fiz nem um décimo dos caminhos que gostaria de fazer. Invejo os grandes viajantes. Mas já vi mais variedade em poucos quilómetros de uma estrada portuguesa do que em milhares deles em tantos caminhos desse mundo. Eu sei que a viagem não é só paisagem, não é só partir ou chegar, a viagem é o movimento. Mas sim, calcorrear os trilhos portugueses  é muitas vezes uma experiência rara, da qual gosto cada vez mais.
Nem sei bem porque é que desatei a escrever isto tudo, só porque no outro dia me apeteceu parar e fotografar ciprestes à beira da estrada.  Gosto de andar sem destino nem objectivo. Não importa Ítaca, mas o caminho para Ítaca.

7 comentários:

  1. Esse traço contínuo costuma indicar pouca visibilidade. O fotógrafo estava protegido por um triângulo de sinalização?

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  2. Não. Estava protegido por 40 graus à sombra (e eram quase 8 da noite)que desencorajam qualquer pessoa normal de andar cá fora num domingo, como era o caso.

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  3. Bom, poderia aparecer um cão maluco ou um inglês mas considerando a conhecida frase "Only mad dogs and englishmen go out in the midday sun" e tratando-se de um fim de tarde, o risco deveria ser então praticamente nulo.

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  4. Ao ler esse texto, lembrei-me de Ítaca , de Konstantin Kavafi, deixo-te fragmentos:

    "Se partires um dia rumo à Ítaca
    Faz votos de que o caminho seja longo
    repleto de aventuras, repleto de saber.
    (...)
    Numerosas serão as manhãs de verão
    Nas quais com que prazer, com que alegria
    Tu hás de entrar pela primeira vez um porto
    Para correr as lojas dos fenícios
    e belas mercancias adquirir.
    (...)
    Tem todo o tempo ítaca na mente.
    Estás predestinado a ali chegar.
    Mas, não apresses a viagem nunca.
    Melhor muitos anos levares de jornada
    E fundeares na ilha velho enfim.
    Rico de quanto ganhaste no caminho
    Sem esperar riquezas que Ítaca te desse.
    Uma bela viagem deu-te Ítaca.
    Sem ela não te ponhas a caminho.
    Mais do que isso não lhe cumpre dar-te.
    Ítaca não te iludiu
    Se a achas pobre.
    Tu te tornaste sábio, um homem de experiência.
    E, agora, sabes o que significam Ítacas."

    Espero que gostes...

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  5. Esse é um dos poemas que há muito fazem parte do meu tesouro privado. A última frase do texto é, no fundo, uma referência a ele.
    Obrigado.

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  6. ler as suas crónicas é uma delícia, é como era fumar kart ... quilómetros de prazer;
    eu gosto mesmo é de estação de comboio, esperar o próximo, ir com ele, mesmo que seja para a grande alface (eu salto antes)

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  7. Esta sua crónica comoveu-me.Eu também gosto até de ir de autocarro na cidade,assim sem mais nem menos pelo gosto do movimento, das pessoas e do que encontrarei ao fim da viagem.Realmente o caminho para Ítaca. E depois para arrematar o comentário de Nilza com a poesia de Kavafis...Perfeito.

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