terça-feira, 6 de julho de 2010

Chora por mim, Argentina

Ao ver a máscara de Maradona depois de levar quatro secos da Alemanha, voltei a sentir um desejo agudo de conhecer Buenos Aires e essa Argentina que, vista de longe,  é dos poucos países do mundo que conseguem fabricar tragédia a partir da pura banalidade. 
Diego Armando Maradona  é um ser a quem tudo se perdoa e tudo se aceita. Por mais asneiras que faça - e fez mais do que qualquer mortal poderia fazer sem ser condenado ao Inferno em vida - nunca será castigado. Depois de anos de droga, deu cabo de uma das coisas mais sagradas que existem para um argentino: a sua selecção de futebol. E depois de o fazer foi recebido como um herói. Já nada o pode tocar.  Por mais tortas que sejam as linhas por que ele escreve, escreve direito. É Deus.
Maradona bem poderia pedir à Argentina que não chore por ele, que a Argentina choraria à mesma por Maradona. A culpa não é dele. A culpa nunca é de ninguém, porque este país fantástico parece pairar acima do bem e do mal, num plano que só admite semi-deuses, ou deuses a tempo inteiro. Não há nenhum que tenha produzido tantos mitos humanos por metro quadrado. 
Senão, olhemos a mitologia do último século e vejamos a parte argentina de gente que está já bem acima das contingências da popularidade, figurando na galeria dos que nunca mais sairão do imaginário de gerações inteiras: o próprio Maradona, evidentemente. Mas também, entre outros, Ernesto Che Guevara,  Juan Manuel Fangio,  Carlos Gardel,  Jorge Luis Borges,  "Evita" Perón.
O que têm de comum estes nomes? O facto de serem mitos, de já nem sequer serem polémicos, pois ganharam um estatuto que os poupa a essas minudências. É como se  a Argentina não se contentasse em produzir simples heróis como toda a gente, e tivesse que  os fazer dotados de uma qualquer transcendência. Pode gostar-se ou não de Borges, mas ninguém vai dizer que não é um dos nomes maiores da literatura, e absolutamente incomparável, mesmo que a maior parte das pessoas não tenha lido uma linha dele; Eva Perón, a madonna dos descamisados, é um ícone pop. Do Che, cuja foto ornamentou o quarto de milhões de adolescentes nas últimas quatro décadas, nem vale a pena falar. Gardel (que na realidade era uruguaio) é o tango, dança  que mima a condição humana; Fangio ainda hoje dá nome aos que conduzem depressa e bem. E Maradona é Maradona.
Nunca fui à Argentina. O mais perto que de lá estive foi entre gaúchos no Rio Grande do Sul. É pouco, e, estou em crer, ligeiramente enganador. Mas ainda não perdi a esperança de conhecer esse país que assim produz sonhos e tragédias em quantidades que ele próprio não consegue suportar, e tentar perceber o que há naquela terra que assim a faz tão propensa ao mito. Diz-se dos argentinos que são italianos que falam espanhol e têm a mania que são ingleses. Isso são outras palavras para explicar que não vivem no real. Na América do Sul, ninguém os suporta, são odiados por todos - a começar pelos brasileiros. Não sei se isso é currículum ou cadastro. Acho que isso os conforta na sua estranha singularidade de país que falha mais do que acerta - no futebol, nas Malvinas, na economia - mas o faz sempre como se fosse o melhor do mundo, e a derrota fosse algo de que só a ele próprio deve culpar. Porque são semi-deuses, como os sicilianos do príncipe de Salinas. Não foram os práticos e prosaicos alemães que os humilharam - foram eles que se imolaram em nome da beleza e da liberdade do jogo. Não há morte mais bela. 
Vista de longe, a Argentina parece viver permanentemente à beira de um qualquer abismo, nas garras de um qualquer drama. Como o cego Borges nos seus labirintos e bibliotecas, o louco Che a criar Vietnames por todo o lado, Evita falando aos descamisados em êxtase de jóias e casaco de vison, nada disto é normal.  Não parece um país normal. E, num mundo de gente cada vez mais normal, isso é fascinante.

11 comentários:

  1. VÁ a Buenos Aires, jpb. E à Patagónia também. Foi a viagem da minha vida.
    Abraço

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  2. Ah! só torci por eles na guerra das Malvinas, afinal de contas, a ilha pertence geograficamente a eles, mesmo a maioria da população os rejeitando.

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  3. Argentino é mala sem alça!

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  4. Porra!! Argentino é mala sem alça!!!

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  5. Cheira-me a brasileiro anónimo...

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  6. JPB,

    Poucas vezes na minha vida concordei na íntegra como o faço agora ao ler esse texto, concordo em gênero número e grau, sem tirar uma única virgula, MARAVILHA!!
    Não sou de rir da desgraça alheia, mas fiquei em extase com a derrota humilhante que sofreram, eles são tão invejosos, mas tão invejosos que não se conformaram com a saída do Brasil, sairam logo no dia seguinte, com uma derrota maior, nós pelo menos saimos andando, eles saíram de quatro, literalmente rsrs
    À exceção da guerra das Malvinas, torço contra a Argentina até em jogo de bafo e de palitinho.
    Só pra voce ter uma idéia, esta é a quarta vez que publico comentário, já estou enjoada de reescrever e falar deles,e os comentários anteriores simplesmente evaporaram, sumiram, escafederam-se.
    Pra voce ver como argentino é encrenqueiro comm brasileiro, nem nisso a gente se entende.
    Deve ser praga dos hermanos!!!

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  7. Um texto brilhante! Aos mitos incontestáveis, nós não os conseguimos produzir.

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  8. Mas eu não disse mal dos argentinos, Nilza.

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  9. Apareceu meus comentários repetidos!!!
    Claro que não falou mal, nem eu também...só disse que gostei da derrota.
    E isso não é falar mal...rsrs

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  10. Um desejo que há muito acalento...Buenos Aires
    ( e o futebol é o menos importante...é o tango e a literatura que me chamam...)
    ~CC~

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  11. li a sua radiografia da bélgica, agora esta da argentina, ambas magníficas, venham outras; espanhas nem tudo os separa, portugal protectorado inglês, suíça unida pelas mesmas 4 línguas; a rep. de san marino tem um campeonato de futebol; irlanda o único país do mundo que fala estrangeiro, a islândia ainda existe?

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