sexta-feira, 10 de setembro de 2010

Mouros e cristãos

Estamos no ano 722 da Era Cristã. Toda a Ibéria foi ocupada pelos muçulmanos... Toda? Não! Uma região povoada por irredutíveis cristãos ainda resiste ao invasor.
Pois foi por estas bandas, nestes penhascos impensáveis, que tudo se passou. Rezam as crónicas árabes “que em tempos de Anbasa Ibn Suhaim al-Qalbi se levantou nas terras da Galiza um asno selvagem chamado Belay.” Era assim que chamavam a Pelayo, a quem nós chamamos Pelágio. Esse Astérix ibérico resolveu que dali os infiéis não passavam e juntou-se numa penha para as bandas de Covadonga com 300 dos seus, diante do exército de milhares do mouro Anbasa.
O resto é metade história e metade lenda, mas eu nestes casos concordo com John Ford e prefiro a lenda. Aliás, basta ver estes penhascos da Cordilheira Cantábrica para acreditar nela. Empoleirado ali, com mais dez amigos e uma merenda, até eu com a minha barriguinha era capaz de suster qualquer exército do mundo. Entre lançadas, setas, pedradas e cacetadas, ficaram 10 cristãos, mas a mourama levou uma corrida para nunca mais voltar. Aqui nasceu a Reconquista, que acabaria 770 anos depois com o mouro Boabdil a lançar um último olhar lacrimoso a Granada e a mãe dele a zurzi-lo sem dó: “Chora como uma mulher o que não soubeste defender como um homem.”
Nenhuma foto faz justiça à vertigem destas fragas, destes monstros de rocha, destes desfiladeiros alucinantes com paredes de pedra caindo centenas de metros a pique sobre correntes e cascatas. São o berço ideal de todas as lendas. São uma trincheira contra a normalidade e a normalização. Juntam-se neles três autonomias espanholas (Castela e Leão, Astúrias e Cantábria), mas no fundo não pertencem a nenhuma. Como os Alpes, os Himalaias ou os Pirinéus, como todas as grandes cadeias de montanhas, separam mais do que unem. São um mundo à parte.
Os navegantes chamaram-lhes Picos de Europa porque era a primeira coisa do continente que avistavam sobre o horizonte, quando vinham por aí fora com os olhos já cheios de mar. O nome acaba por ser poeticamente justo, porque aqui jogou-se algo importante para o continente. Mais do que em Poitiers, que foi uma cavalgada aventurosa já nos limites da sua extensão estratégica, foi nestas penedias que o poder muçulmano na Europa partiu os dentes e ficou condenado a prazo. Tivessem Pelágio e o seu bando de montanheses falhado, e a reconquista cristã seria morta no útero. Não haveria ponto de apoio, nem célula matricial que lhe desse início. Não sei como teria sido a história do mundo nesse caso, mas seria muito diferente do que foi.
Mas estes exercícios de “what if?” têm os seus limites. O determinismo histórico também tem a ver com a geografia. Estas montanhas são inconquistáveis. E o que não se mata, cresce. Se não fosse Pelágio seria qualquer outro a estragar o sonho de um al-Andalus eterno, noutro qualquer momento.  O que ainda hoje Osama Bin Laden exorta os muçulmanos a recuperar, a jóia da coroa, o jardim do Islão um dia perdido, estaria sempre condenado. Passou. Morreu.
Mas a memória do Islão tem um tempo muito diferente da memória ocidental. Quem quer que tenha visitado países árabes (digo sobretudo árabes, e não genericamente islâmicos)  e falado com intelectuais, políticos, gente diferenciada, sabe como o passado deles não é o nosso, e como ele é dominado pelo trauma das Cruzadas. No discurso oficial e privado, as Cruzadas são um tema recorrente, e parece que foram ontem. Para nós, elas são um episódio entre muitos, ao longo de mais de dois milénios.  Mas para eles são o ponto dominante. Para os árabes, são a grande ferida,  a grande agressão responsável por muita da decadência posterior, e que o Ocidente não só ainda não pagou, como perpetua, nomeadamente no apoio ao Estado de Israel – por eles chamado, na sua retórica, um “estado cruzado” essencialmente análogo aos reinos cristãos medievais da Palestina. E nas Cruzadas está incluído o roubo do al-Andalus, que um dia foi parte integrante do Dar al-Islam, o lugar do Islão. Sem entender isto não se entende nada.
Mas a gente olha para estes fraguedos, lembra-se das histórias de mouros e cristãos e começa a pensar que, na verdade, quem começou foram eles. Antes de os irmos chatear à Palestina vieram eles chatear-nos a nós, que sob a forma de visigodos estávamos por aqui sossegados a construir igrejinhas e vilórias nas nossas colinas e veigas ibéricas. Naquele dia de 711 em que um Tarik pôs pé junto do monte (djebel) que levaria o seu nome (Djebel Tarik, Gibraltar) - e que, ironicamente, continua ocupado, hoje por ingleses - entraram por aqui a dentro à espadeirada e foram por aí acima. Ficaram sete séculos até serem expulsos. E agora só nós é que somos os maus da fita? Ou será que estas coisas também prescrevem, e só conta a última em data?
Não tenho nada, antes pelo contrário, contra o Islão e os muçulmanos. São tão terroristas como quaisquer outros. Concordo com Karen Armstrong quando diz que todas as grandes tradições dizem a mesma coisa, basicamente da mesma maneira, e o que dizem se resume numa palavra: compaixão. O resto são visões e interpretações. Esse pastor americano que ameaça queimar exemplares do Alcorão é um imbecil, e quem o seguir é outro. O problema é que há poucas coisas mais devastadoras do que a imbecilidade, quando misturada com o poder.
Não fico é de cócoras, vergado por inomináveis culpas históricas. A vileza tem andado bem distribuída ao longo dos séculos, e tocado a todos de forma bastante equilibrada. Entre Tarik e Boemundo de Tarento, entre a gesta Dei per francos e a jihad, venha o Diabo e escolha. Não me venham com a história de sermos culpados de todas as mediocridades do mundo islâmico, e de todas as agressões que sofreu. Sejam homenzinhos e assumam as responsabilidades. E agora que já arranjei lenha para me queimar, vou comer uma fabada.

6 comentários:

  1. Estou farto de dizer que as suas crónicas são brilhantes, por isso, por perrice, desta vez não digo, pronto. Geralmente quando vejo que um texto não cabe na tela desisto de o ler, "é seca" adivinho eu. Este li-o todo, todinho. E com uma inveja que nem imagina, nos Picos da Europa v. consegiu um bom pico, inspirado pela sidra por certo.
    Logo que possa eu re-re-re visito Covadonga, que tenho apoio em Oviedo.
    ps: esta crónica merecia ser dividida em Mouros e cristãos I, II e III

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  2. Desta vez não consegui beber sidra (ou cidra?). Estive com uma pontaria fenomenal, e acertava sempre nos poucos tascos onde não a tinham - ou tinham só garrafas grandes, e demasiadas para a minha sede. Mas já tinha engatilhado este tema para escrito futuro.
    Obrigado pelos comentários. Como diria a Nilza, fico sem geito, ué.

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  3. Simplesmente espetacular... como é delicioso ler algo assim e ao mesmo tempo sentir o que se lê. Palavras para quê?... é um artista português!!!
    MJM

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  4. Em relação ao islamismo e muçulmanos:
    Falar de dogmas,crenças, suas ramificações, sequelas e morfologias é um bicho de sete cabeças pra mim, sou aquela menina rude e indócil do primário que se esforça e ao mesmo tempo se recusa a aprender, tamanha é a complexidade, incoerência, não de seus conceitos, mas a mentalidade de quem por elas comete atrocidades, mata e morre, depois põe nos outros a culpa...o inferno está cheio desses bem intencionados, se é que existe um fora de seus mundos.
    Agora fiquei sem jeito de elogiar, até porque seu Abel e a doce MJM já tiraram as palavras da minha boca.
    Mas só pra lhe deixar mal acostumado: brilhante, brilhante o seu texto.

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  5. Ah, belos sapatos! certamente são novinhos em folha...

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  6. Brilhante texto, aliás, eu "devoro" tudo...

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