segunda-feira, 22 de novembro de 2010

De uma cimeira

Durante dois dias, a FIL pareceu um objecto de ficção científica, uma qualquer base lunar hermeticamente isolada. Milhares de pessoas ali fechadas, no meio de uma segurança intransponível, para um circo diplomático com guião conhecido, espectáculo garantido e resultado anunciado. Estas cimeiras são as fotografias mais caras de toda a história das relações internacionais. Dezenas de líderes nacionais tiram umas horas para virem mostrar-se, fingindo que vêm resolver coisas enquanto nós fingimos acreditar nisso. Mas não fazem nada que um telefonema, ou uma videoconferência, não fizesse. Dito isto, estas encenações são essenciais. O poder é tanto acção efectiva como imagem de si próprio. O poder, e as suas relações, é como o amor: não basta sê-lo, há que parecê-lo. Tem que ser coreografado, sob pena de não ser efectivo. Estaline perguntava quantas divisões tinha o Papa - e o Papa sabia que não precisava de nenhuma, tinha todo o peso da liturgia valendo por mil divisões. O poder, as relações  de poder, vivem de percepções, de imagens, de encenações, de cerimónias. Sem elas, seria apenas um exercício vão de homens despidos de qualquer força. 

Então eu vi Dmitri Medvedev. Homem pequenino - ou velhaco ou bailarino. Mas este tem ar de saber dançar. Catarina, a  Imperatriz, dizia que a Rússia é demasiado grande para ser governada por mais do que uma pessoa. Quem a governa hoje? É este baixinho com ar de funcionário atilado? É este pachola? Ou é ainda o outro, Putin, o ex-KGB, o sex-symbol que caça feras de tronco nu nos Urais para fazer sonhar as caixeirinhas de Moscovo e manter em respeito os ânimos do resto do mundo?

Vi o baixote em Lisboa, ali a uns metros de mim, e perguntei-me se ela trazia mesmo a Rússia com ele. A Rússia dos silêncios grandes como uma jornada na estepe, da grande literatura, da grande música, e também a dos possessos, dos místicos, das paixões desatinadas, dos niilistas, dos caminhantes, dos bêbedos, das torres sobre os rios gelados que guardam coisa nenhuma, das planícies infinitas onde se vive e morre sem nome, como as folhas das árvores.

A Rússia dos  soldados impassíveis que guardam o Kremlin com olhos cinzentos e gelados de lobos da tundra é também a das mulheres belas como deusas hiperbóreas, que a derrocada soviética nos devolveu - a nós que durante 40 anos achámos que lá só havia matronas hediondas com dentes de ouro e maridos funcionários do Partido. 
Essa foi, reconheçamo-lo, uma dádiva não dispicienda da queda do comunismo, que entre os seus maiores erros tinha o de não ser erótico. A Ninotshka e as KGB's boazonas que acabavam na cama com James Bond enquanto o queriam matar não contam, até porque muito do seu sex-appeal vinha precisamente do facto de serem uma ficção incongruente. Só nos romances é que havia disso, e aristocratas misteriosas e doridas, fugidas aos bolcheviques e levando vidas dignamente modestas no exílio de Paris enquanto os seus brasonados maridos guiavam táxis para sobreviver. Para a minha geração, as russas ou eram babushkas trágicas ou rudes moçoilas de lenço na cabeça e braços roliços, guiando tractores para cumprimento de planos quinquenais ou parindo heróis da revolução. Não eram nada disto. 
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O pachola do Medvedev não trouxe na pasta a Rússia paranóica e com pavor do cerco, esse país colossal e ao mesmo tempo singularmente encravado entre gelos eternos, desertos hostis e impérios adversos, com acesso difícil aos mares quentes e à circulação vital dos oceanos. Veio dizer ao não menos pachola Obama que a Rússia dele quer ser muito amiga, e colaborar imenso. Claro que não lhe disse que ao mínimo sobressalto invade a Geórgia, ou coisa que o valha. O urso dorme com um olho aberto. Não se sofrem impunemente 20 milhões de mortos só da última vez que alguém quis violar a Grande Mãe Rússia - fora as outras. Lá ao fundo, no seu gabinete, Putin vela, de arma aperrada, e com ele velam os eternos fantasmas russos, feitos de sangue e lágrimas. Não são 20 anos de pseudo-democracia que vão apagar mil anos de chicote. Não são palavras e promessas que vão curar complexos. Não é agora, só porque o petróleo já não dá para grandes gastos, a China despertou finalmente e toda a gente é amiga no Facebook, que a Rússia vai deixar de ser o que é.

Não é agora que as coisas vão deixar de ser o que são, só porque a NATO anuncia que se vai embora do Afeganistão - coisa nunca vista na história das guerras. Se eu fosse talibã sentava-me calmamente, guardava-me de canseiras e poupava as balas para daqui a quatro anos. Até lá, a NATO vai dedicar-se a treinar e armar o exército afegão, para ver se ele acaba o trabalho que está longe de acabado. Isto é, não só não tem conseguido matar um monstro como está a criar outro. Já vimos este filme. Os próprios talibã foram criados nos anos 80 pelos serviços secretos paquistaneses, com dinheiro americano, para combaterem os soviéticos. Postos os soviéticos a andar, a coisa deu no que se sabe. Osama bin Laden era, nesses tempos, um útil mudjahidin anti-soviético, abençoado pela CIA. Não descansou enquanto não rebentou com o World Trade Center. Uma das grandes lições da História é que os homens nunca aprendem com as lições da História.
No Afeganistão, a honra manda que os homens não se vendam - mas alugam-se facilmente. Naquela manta de retalhos tribal em que se muda de fidelidades como quem muda de chapéu, o que a NATO está a fazer é a treinar e armar inimigos mais competentes. Já houve esquadras inteiras de polícia que desertaram com armas, bagagens e o precioso treino ocidental.
Amanhã serão regimentos e batalhões. O governo do pavão Kharzai, se entretanto não lhe tratarem da saúde por um pior ainda, continuará alegremente a recolher os dízimos e os óbulos dos senhores da guerra e do ópio. O Afeganistão não vai deixar de ser o que é. E, ao lado, o Paquistão tem bombas atómicas e cada vez mais malandragem à solta.

Ainda não vimos nada.

5 comentários:

  1. Muito boa a análise da Rússia de hoje e das suas actuais e futuras relações com a NATO.
    E há o gás, não te esqueças...

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  2. Ao gás, incluí-o genericamente no petróleo.
    As tecnologias de extracção e transporte estão a evoluir rapidamente e a abrir possibilidade de alternativas que tendem a diminuir a dependência do gás russo. É mais uma razão para eles se "aproxegarem" da Europa e do Ocidente. Mas o urso é muito nervoso, nunca se sabe como vai reagir. É o "segredo dentro de um mistério, envolto por um enigma" de que falava Winston Churchill.

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  3. Excelente análise!
    Análise onde muitos cidadãos portugueses e possivelmente de muitos outros países,se revêem e questionam o objectivo destas organizações (como a Nato)senão para defender o poder político, económico e financeiro institucionalizados!
    Será que terão medo da mudança que se avizinha,o virar doutra página da história?
    MJM

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