sábado, 18 de dezembro de 2010

Uma aventura nas urgências

Por vontade dela, a mulher da minh'alma metia em casa tudo quanto é cão e gato, e comia com eles à mesa. A soleira da porta alentejana é hoje uma espécie de sopinhas do Sidónio ou Santa Casa da gataria das redondezas. Há dias, um dos sacaninhas, um minorca a quem ela tentou tratar de uma pata magoada, pagou-lhe o amor mordendo-a na mão com afã e descaro. Seguiu-se princípio de infecção, vacina anti-tetânica, antibiótico, as coisas do costume.
Só que este último era do tipo que já lhe dera em tempos terríveis dores de estômago. E voltou a dar. Às 9 de uma destas belas noites geladas, lá demanda este vosso criado, com ela torcendo-se, as urgências de um hospital público.
A triagem foi rápida, mas depois seguiram-se as trevas: 4 horas de dolorosa, angustiada e cada vez mais encolerizada espera, sem razão aparente para isso, pois reinava a calma na zona, havia pouca gente e não chegou uma única ambulância. Imigrantes, ressacados, bêbedos, indigentes, o lumpen da ordem, esperavam pacientemente na sala. Atrás de um vidro, funcionários com a simpatia de gárgulas medievais não davam uma informação ou satisfação de jeito: "O doutor atende quando puder." Nem iras, nem choros, nem finalmente pedidos de livro de reclamações comoveram quem quer que fosse. "Não temos, escreva uma carta à administração do hospital." À uma da manhã, desistimos, que se lixe o antibiótico. Vamos para casa.
Mas a infecção ameaçava progredir. Não vamos brincar com essas coisas: às 9 da noite do dia seguinte, o casalinho volta às urgências, mas de outro hospital que do primeiro nem ouvir falar era bom. 
Ambiente ainda mais soturno, sala escura e mal cuidada. Quase vinte minutos de espera numa fila para a inscrição, seguindo-se nova espera interminável por um primeiro atendimento. Os critérios de chamada são tão obscuros como a sala, onde se espraia a habitual mistura social. A confusão é espessa. Chegam ambulâncias de vez em quando, trazendo misérias, desgraças e aflições. Há gente que espera pacientemente, outros protestam. Um grupo rodeia médicos e enfermeiras desolados, tentando perceber o que terá acontecido ao processo de um paciente, que se evaporou misteriosamente. Entornado numa maca, um jovem de gorro na cabeça, no mais adiantado estado de degradação  química, tenta regularmente pôr-se de pé mas não se tem nas pernas. Implora que lhe chamem um táxi, chora pelo telemóvel para que alguém o venha buscar - mas é evidente que nem no hospital nem na família há quem esteja para aí virado.
Passadas quase três horas, em que pelo menos já não havia dores de estômago, lá se tenta saber das razões de tanta espera. "Mas já chamámos a senhora três vezes." Chamaram uma ova. Mas vai-se a ver e chamaram mesmo, só que pelo nome errado. Tinham-se enganado a transcrevê-lo.
Etapa seguinte: nova espera para ser atendida pelo médico, em nova sala fria e malcheirosa, servida por casas de banho imundas, cheia de doentes em maca que dormem, resfolegam, gemem e protestam. Há um que, subitamente curado pelo desespero, se levanta e tenta pôr-se dali para fora, até ser impedido por familiares  e encarregados. Um preso algemado à cadeira de espera é escoltado por dois polícias entediados que o ameaçam entre dentes à mais ténue tentativa de se mexer. A fome aperta, mas não há sequer uma miserável máquina de café, quanto mais de bolachas ou qualquer coisa que se trinque. 
Só quase lá para a 1 da manhã é que somos chamados, atendidos e mandados embora com o problema resolvido. Lá fora no passeio, solitário na noite gelada, abraçado de cócoras a um pilarete metálico, o jovem de gorro murmura coisas vagas por entre as quais se pressente que implora, protesta ou simplesmente se lamenta. Suspeito que o infeliz ainda lá esteja.
No total dos dois dias, foram quase 8 horas de inferno nas garras do sistema hospitalar de uma capital europeia (durante as quais, além de tudo, não vimos um único empregado de limpeza) apenas para obter a receita de um antibiótico que não fizesse dores de estômago, que finalmente se conseguiu num quarto de hora de consulta por uma médica de extrema simpatia e competência. 
"É a mesma coisa em todo o lado," disse-nos o homem do táxi. "Se quiserem ser bem atendidos vão ao privado." Isto é cada vez mais evidente perante a degradação e o desinvestimento nos serviços públicos, nomeadamente nos de saúde. Mas saí da aventura com um respeito renovado pelo Serviço Nacional de Saúde e pelos hospitais portugueses, onde nunca fui tão mal atendido nem testemunhei tamanho desleixo - por enquanto. É que quase me estava a esquecer de dizer que isto se passou em Paris, primeiro no hospital Bichat, depois no Lariboisiére, num país cujo sistema nacional de saúde já foi considerado modelar. 

5 comentários:

  1. Ainda esta semana passei pelo mesmo "calvário" no Amadora-Sintra.
    Entrei eram cinco da tarde e saí pela uma da manhã, vá lá, com o problema resolvido.
    Mas que se sofre quase tanto com o que se vê, como com o que se sofre, é uma verdade.

    ResponderEliminar
  2. E ainda chamam o Brasil de terceiro mundo...
    É bem verdade que o sistema de saúde pública está falido, mas o Brasil já tem essa cultura trágica do mau uso de dinheiro público, porém ler relatos da mesma experiencia de quem não tem plano de saude e ainda na França(afxx) é no mínimo espantoso.
    Se fizer a conta na ponta do lápis, vai ver que nós, terceiros mundistas , não estamos tão mal assim na foto.

    ResponderEliminar
  3. Zézinho, aproveito para enaltecer aqui o hospital de Famalicão, que apesar de n ter os apetrechos dos hospitais centrais, é super limpo, tem máquinas de café, água, bolachas e afins e LCDs para entreter a malta.
    às vezes tb demoram muito, mas em 90% dos casos são simpáticos e vê-se que têm mais trabalho que mãos...
    Famalicão 10 - Paris 0 e mai nada!

    ps - mas essa gaja foi mordida por um gatou OUTRA vez??? rifa-a, mazé!

    ResponderEliminar
  4. Espero que no final dessa grande "aventura" o antibiótico tivesse sido eficaz.
    E nós por cá ainda refilamos,mas Paris é sempre Paris e os franceses sempre se consideraram super...são mais as vozes que as nozes!!!

    PS: Bom Natal,sem mais aventuras dessas.
    MJM

    ResponderEliminar
  5. Eu sou médica, mas também sou utente. E aquilo que tenho dar como médica dista muito daquilo que recebo como utente.

    Fico triste quando vou a uma consulta marcada para as 9h da manhã, e há maus 100 doentes com consulta marcada para a mesma hora. Isso quer dizer: Esperem; serão atendidos quando calhar!

    Depois somos atendidos por um indivíduo mal humorado (sim, porque aquilo não são condições para trabalhar), que acelera a fundo e nos despacha em 2 minutos com prescrições de que não fomos esclarecidos...

    Mas o pior ainda é quando, na minha condição de mulher, quaiquer queixas devem ser causadas pelas minhas fragilidades emocionais, provenientes da inexistência de um cromossoma Y (deve ser esta a explicação?); motivo pelo qual, quando visito os meus caríssimos colegas, já levo comigo análises e exames que conprovam a minha doença...

    Triste...

    ResponderEliminar