quinta-feira, 14 de janeiro de 2010

Haiti

Li-o quando eu era mais novo e mais impressionável, e deixou-me uma marca especial. O improvável Haiti entrou assim na minha vida, como na de muitas pessoas. Aqui conheci "Papa Doc," o seu regime canibal e os seus tontons macoute - a expressão do mal absoluto. E conheci o cínico director de hotel que vê tudo à sua volta afundar-se na barbárie, e acha que nada tem a ver com aquilo. Ele mostrou-me como a indiferença é mais devastadora do que o ódio. Quando me rodeia a tentação de prolongar o distanciamento sobre as coisas, lembro-me às vezes do sr. Brown. Sim, há alturas em que não há hipótese: mais tarde ou mais cedo temos que tomar partido. De Homero a "Avatar" (olha que comparação eu fui arranjar agora, desculpem lá), esta questão central da nossa vida, nas suas mais variadas formas, vem sempre ao de cima. Mais vale arrependermo-nos de ter feito alguma coisa do que de não termos feito nada.
Nestas horas em que o horror absoluto volta a pairar sobre o Haiti, não há partidos a tomar, mas a indiferença não é possível, embora pouco possamos fazer de imediato. Há países marcados pela tragédia. Se eu achasse que dava resultado, rezava agora por ele. Mas onde estava Deus antes disto? E do tsunami de 2006? E de Auschwitz? Onde está agora?

O Batata e a luz

Não sei qual era o nome dele, só me lembro que tinha a alcunha do "Batata". Era oleiro em Vila Franca do Campo, S. Miguel, Açores, vai para uns trinta anos. Lembro-me que entrei no estaminé do Batata e fiquei fascinado com a luz que o banhava, vinda de umas janelinhas no alto da parede. Não foi com ele, que era atractivo no falar, nem com as coisas que fazia, que eram delicadas e divertidas. Foi com a luz. Foi com o sol que era coado e batia só de um lado nele, nas mãos, nos objectos, que ele moldava dando ao pedal da roda de oleiro com o pé descalço. Então fiquei ali a tirar fotos vorazmente, como um esfomeado num banquete, sabendo que elas iam ficar como eu queria, porque sentia aquele estado de graça que não nos engana. Ele falava, moldava, falava e tornava a moldar, contando como já não havia muita gente que fizesse aquele mister - e eu fotografava, ouvindo-o de esguelha, querendo apanhar aquela luz na face marcada, na curva sensual das coisas que ele fazia, no momento que passava e não voltaria mais. Não soube mais nada do Batata. Possivelmente, haverá quem se lembre dele em Vila Franca do Campo. Aqui está ele, e a luz que eu não quis deixar fugir naquele dia.