sexta-feira, 22 de janeiro de 2010

A Era do Coelho

O Chico é meu amigo. Vai quase nos setenta anos e continua a escrever à máquina, emendando com corrector ou com tirinhas de papel que recorta e cola por cima da parte que quer eliminar. Nunca se converteu aos computadores. O e-mail para ele é chinês, e continua a ir regularmente ao correio enviar cartas e encomendas. A Internet é um território bárbaro de que não quer nem ouvir falar. Eu bem me farto de lhe dizer que toda esta tecnologia facilita imenso a vida, mas ele é definitivo: “Se agora me quisesse dar ao trabalho de aprender coisas novas, aprendia grego, para ler Platão no original.”
Há tempos, num rasgo de modernidade avassalador, acedeu a comprar um computador portátil. “É uma máquina de escrever mais sofisticada,” disse. A intenção era usá-lo como tal – escrevia, imprimia (com a ajuda do filho para lhe tratar dos pormenores técnicos) e pronto. De net, nem falar. “Tenho os meus livros.”
Mas esta cedência ao Zeitgeist ficou-se pela compra. Nem escrita processada, nem net. Nem grego clássico. O computador continua intocado sobre uma mesinha, amorosamente coberto com um pano escocês. O Chico continua a escrever à máquina.
Esta é a tradicional introdução que serve de base e pretexto para a parte ensaística e enunciação de tese, que é a seguinte:
Antigamente, as pessoas morriam num mundo que não era fundamentalmente muito diferente daquele em que tinham nascido. Este “antigamente” é até à segunda metade do século XX, altura em que a aceleração do progresso as fazia já assistir a uma ou duas mutações tecnológicas essenciais na vida, se tanto. Hoje assistem a uma catadupa delas. As coisas mudam drasticamente no espaço de uma vida, e cada vez mais depressa. O mundo de uma criatura de 40 anos mudou muito desde que ele nasceu, e até desde que ele chegou aos 20 anos, à idade adulta. Quem tenha hoje 60 anos já viu mais mudanças do que as que o mundo tinha visto em vários séculos.
Isso submete-nos a uma tensão constante para nos adaptarmos à mudança, para nos mantermos actualizados. Tecnologica, social e mesmo culturalmente, chegámos à Era do Coelho ("Vai ser tão bom, não foi?"). Não admira que estejamos cada vez mais ansiosos.
Até há pouco, os velhos podiam continuar ser os grandes reservatórios de experiência. Mesmo que tecnologicamente ultrapassados, o seu capital era tão vasto, e ainda aplicável, que podiam chegar-se aos mais novos e ensinar-lhes muita coisa.Mas o que tem alguém de setenta e tal, oitenta anos, a ensinar aos putos? Nada que o puto queira saber. As velhas artes do desenrascanço quotidiano já não servem, porque nada é como era - nem as casas, nem as máquinas, nem nada. Nem os valores morais ou cívicos, nem as posturas éticas - tudo muda vertiginosamente. Os velhos que se lixem.
Quem se lembra da vida antes do multibanco, do telemóvel, da net? Muita gente, porque não foi assim há tanto tempo como isso. Mas quem se lembra tem as mesmas dificuldades que os outros em imaginar como ela era – e como era possível vivê-la. Porque as mutações tecnológicas não são meras adições à nossa vida, facilitando-a: passam a fazer parte integrante dela. Vivemos dezenas de milhares de anos sem telemóvel, sem multibanco, sem net - mas hoje é impossível viver sem essas coisas, porque a vida as integrou e fez delas imprescindíveis. A sociedade não admite que estejamos incomunicáveis, que não tenhamos acesso permanente ao banco, que não estejamos online. A tecnologia ajuda-nos, mas pagamos o preço de ficarmos amarrados a ela. Cada vez mais perdemos o direito de não existir senão para nós próprios.
É por isso, e não por embirração, que vou resistindo aos twitters e facebooks desta vida. Sei que para muita gente sou o que o Chico é para mim, e que me arrisco a perder muita coisa boa. Não é que sonhe sequer em aprender grego antigo, chega-me o Platão traduzido. E não sou contra as coisas novas - afinal, estou a fazer um blogue, não estou? Mas quero gozar sempre, até à última, a liberdade de não ficar agarrado às doçuras do progresso. É um exercício. Ainda hoje eu, que uso telemóve há 16 anos, o desligo ou não atendo quando me apetece. E farto-me de me esquecer dele por todo o lado sem angústias de maior. Como diriam no Jugular, lucky me.

quinta-feira, 21 de janeiro de 2010

Raios e cervejas

Bucareste, 1995

Um raio é como a felicidade: quando damos por ele, já passou. Não há fotógrafo que não sonhe em fotografar um. Há gente que persegue trovoadas como aqueles doidos que correm atrás dos tornados no Midwest americano, sem nunca conseguir caçar um raio.
Pois bem, eu consegui. Está aqui. Devo confessar que não me deu grande trabalho: foi em Bucareste, no Verão de 1995. Estava uma noite de ananazes, como diria o Eça, e caíu uma trovoada pavorosa. Eram raios de segundo a segundo: foi só poisar a máquina no parapeito da varanda e ir disparando. Algum haveria de ficar preso no filme.

Os verões, naquelas paragens, são tão selváticos como os invernos. Se estes são de ir aos vinte e aos trinta negativos, congelando até as ideias, aqueles são de torrar o corpo e os miolos. Não admira que aquela gente seja meio louca e aquelas terras tenham sido percorridas pelas maiores violências da História.
Naquele dia eu tinha estado a beber umas cervejas com o Nicu. Era o diminutivo de Nicolae Nicolaiescu, um nome que não podia ser mais romeno - em Portugal, seria José da Silva, ou coisa do género. Para aí metade dos romenos chamam-se assim. Ora eu tinha conhecido o Nicu na rua, quando ele começou a mandar vir comigo por eu estar a tirar fotos. Parei-lhe a verborreia com um sinal de que não estava a perceber patavina do que ele me estava a dizer, e aí o bom do Nicu percebeu que eu não era romeno.
"Julguei que eras da segurança," disse ele num inglês problemático. Bem-vindo à paranóia romena, pensei eu. Mal tinham passado seis anos desde a queda estrondosa de Nicolae Ceausescu, o "Danúbio do Pensamento," o "Génio dos Cárpatos" - enfim, o traste que tinha subjugado a Roménia sob uma das mais brutais e grotescas ditaduras de que há memória na Europa. Tudo ainda estava muito fresco.
O Nicu era engenheiro civil e vivia na rua, roupas em desalinho, cabelo às farripas, um cheiro pavoroso. "Não há trabalho." Convidou-me para bebermos uma cerveja. Aponto uma esplanada próxima. "Ali é muito caro. Só tenho dois mil lei." Na altura, eram uns 150 escudos, menos de um euro hoje. Dava para umas três imperiais. "Anda daí que pago eu." Ficou feliz. Assim já podia guardar os lei para ir comprar cigarros ao contrabandista.
Se reproduzida hoje, a maior parte da nossa conversa seria datada. Já lá vão quase quinze anos, nessa altura a Roménia acabara de depositar o pedido de adesão à UE, e ainda não fizera as pazes com o passado recente. O Nicu falava-me dos fantasmas de Ceausescu e da Securitate que pairavam ainda sobre a Roménia, governada pelos que tinham mandado matar o ditador rapidamente, antes que ele falasse demais. O que se passara fora um mero ajuste de contas. Mas o que interessa é que bebemos quase um litr de bere enquanto o Nicu me explicava que uma revolução é quando as coisas dão uma volta completa e voltam onde estavam antes. Andar em frente é uma evolução, explicava, vincando uma linha recta com a unha suja na toalha de papel.
O Nicu era meio louco, e deu-me ali uma sabatina de ciência política, pedindo regularmente desculpa pelo mau inglês: "Quando trabalhava, falava mais. Agora, na rua, esqueci-me um bocado." Separámo-nos quando a tarde tropical escureceu de nuvens e se resolveu em chuva e trovoada.
Bom, isto de lembrar coisas é como as cerejas, e serve só para explicar como é que esta foto me lembra uma tarde em Bucareste durante a qual eu fiz algo que dificilmente faria em Lisboa: beber umas imperiais com um sem-abrigo avariado da tola. Quando saímos da nossa terra, saímos um bocado de nós. É isso. Tudo é diferente, o tempo é diferente. Acho que também foi por isso que consegui apanhar um raio no velho Kodachrome.

quarta-feira, 20 de janeiro de 2010

Flagrantes da vida real

Andam pelos 10 ou 11 anos, é um bando ruidoso de miúdos da secundária à espera do autocarro.
- O Bernardo gosta de ti, Marta.
- Gosta?, diz Marta, os olhos arregalados.
- Gosta. Ele disse-me porquê, mas agora não me lembro.
E vira-se para os amigos.
Marta tenta disfarçar. Entre conversas cruzadas, volta à carga:
- Diz lá porque é que ele gosta de mim.
O outro nem responde, mergulhado na conversa. Marta volta a concentrar-se no leitor de MP3. Mas está intranquila.
- Diz lá, Nuno.
- Sei lá, não sejas chata. Já disse que não me lembro.
Marta desiste, visivelmente. Não é hoje que vai saber. Mas é mulher, sabe disfarçar com alguma dignidade.Volta serenamente para o MP3, resignada.
Chega o autocarro. Nuno, quando vai a subir, volta-se para trás e grita, pelo meio de um magote de gente:
- Olha Marta, já me lembro porque é que o Bernardo gosta de ti. Diz que é porque tens o cu grande.