quinta-feira, 11 de fevereiro de 2010

Mandela

Nelson Mandela é um dos maiores estadistas do século XX, e de sempre. Tenho por ele um respeito e uma admiração imensos, como nunca tive, nem provavelmente terei, por mais nenhuma figura pública minha contemporânea.
Na sua enorme dimensão política e humana, Mandela é um herói. Passou quase um terço da vida numa cela, e quando saíu estendeu a mão aos carcereiros e salvou-os. Salvou um país inteiro, redimindo toda a gente. Aos 71 anos, podia ter sido o campeão da vingança, e seria compreensível. Mas quis ser muito mais, e muito melhor.

Um estadista é aquele que sabe agarrar o leme de um país no meio da tempestade, e conduzi-lo a bom porto. Nelson Mandela foi esse homem, nessa África do Sul que há 20 anos era uma arca de demónios pronta a explodir. Mas ele exorcizou-os. Percebeu muito bem o que tinha que fazer para desarmar a tragédia anunciada. Percebeu, sobretudo, que só ele podia mudar o curso da História, e salvar a África do Sul com todos os seus filhos, brancos e pretos, de um destino sombrio.
Mas hoje que passam 20 anos sobre a sua libertação, não nos esqueçamos de quem o libertou. O outro herói desse momento em que tudo podia acontecer, em que milhões de pessoas estiveram à beira de um banho de sangue, chama-se Frederik de Klerk, é branco e boer, mas teve a inteligência de também perceber o que estava em causa e a imensa coragem de enfrentar o seu próprio povo para lhe dizer que era tempo de aceitar o inevitável.
Estes dois homens que tudo separava - a cor da pele, a origem social, a formação, a visão do mundo - juntaram-se num dos mais fantásticos processos de negociação política que conheço. Nenhum deles poderia ter feito nada sem o outro. Ambos perceberam isso, e ambos foram até ao fim da única via que os poderia salvar aos dois. E todo um país com eles.
É por isso que aqui ponho a foto de ambos.

(Foto tirada daqui)

meninas vamos ao shift

há imensa gente que agora deu em escrever assim, sem usar maiúsculas. a primeira vez que vi tal coisa foi nos textos de f. no jugular, aquele blogue que tem grandes amigas minhas e também uma cientista radical que suspira em inglês mas que não tem nada a ver com este assunto, foi só um aparte. depois vi a mesma mania aqui e ali na chamada blogosfera. há mesmo um escritor, valter hugo mãe, que até o próprio nome escreve assim, e depois vai por aí fora, em livros inteiros. alega ele que o faz porque "as palavras têm todas a mesma dignidade."
digo eu: ó mãe, arranja outra desculpa. tu queres é ser diferente e dar nas vistas. a dignidade das palavras não está na ortografia, está no uso que lhes deres. e a dignidade da tua escrita está no que ela traduz, não nos sinais gráficos que usas. poupa-me. a bem dizer, poupas-me mesmo, porque até pode ser que escrevas bem, mas nunca li nem me apetece ler nada teu, pelo menos enquanto escreveres assim e os teus textos tiverem o aspecto deste que acabaste de ler . e se não acabaste, isso só prova uma de duas coisas: ou que nem sabes que existo, que é de longe o mais provável, ou que este texto é uma chatice de ler.
para mim é. andou a humanidade durante séculos a apurar formas de tornar a escrita legível, balizando-a, introduzindo marcas que facilitem a leitura e a compreensão do texto, que permitam entrar nele não só pelo princípio e pelo fim mas também por pontos intermédios, tornando-o vivo e digno, com os seus altos e baixos, as suas colinas, vales e planícies como numa jornada em que a paisagem variada nos revela o que lhe está subjacente e nos incita a continuar, e vem esta gente dar cabo de tudo isso e tornar o texto numa seca altamente confusa e chata de ler.
é que nem se vê bem onde começam e onde acabam as frases nem se distingue deus de um deus qualquer, nem a maria dos prazeres dos prazeres da maria, nem se sabe se são os vieiras que comem vieiras ou as vieiras que comem os vieiras ou os lampreias as lampreias, ou vice-versa. e é uma chatice de ver. digam lá se esta porcaria tem alguma piada, esta uniformidade rebarbativa, estas riscas monótonas como bombazina barata, como um batalhão de ss - não, não é uma onomatopeia para serpentes, é a sigla de schutzstaffel, os tropas de choque do hitler, que marchavam alinhadinhos e todos iguais como as tuas palavras, ó mãe.
não, poupem-me a esse igualitarismo ortográfico, a esse ódio plebeu à caixa alta, a esse nivelamento oco, a esse relativismo bacoco. isso não é mais do que uma moda, como as calças à boca de sino, as patilhas em bico ou dizer "basicamente" de duas em duas frases. abaixo a ditadura da caixa baixa. abaixo a preguiça de carregar no shift e desactivar o capslock. shift happens, digo eu que também sei inglês. viva o progresso e as suas grandes conquistas. e, sobretudo, irmãos, deixem-se de tretas. a brincadeira foi gira, a ideia foi curiosa, teve muita graça, ha ha ha. agora escrevam como gente, que é para a gente os ler, que a gente agradece-vos muito o esforço, e à vossa família toda.

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2010

Era uma vez na América

A aldeia global de Marshall McLuhan é um termo um pouco esquecido, porque os visionários são sempre esquecidos – sobretudo os que tiveram razão. Mas é o termo que melhor se aplica ao mundo de hoje, que é realmente uma aldeia. É por isso que o Jorge é adepto do futebol americano, do qual, pelos vistos, vê um jogo por ano na televisão e segue o resto pelos jornais. A lei da proximidade abarca hoje o mundo inteiro, e até na paixão desportiva há amores virtuais.
Eu percebo muito pouco de futebol americano. A minha ideia é de que aquilo é uma mistura de râguebi com o jogo da glória. Também percebo pouco de basebol, e para ver como era fui um dia ver um jogo dos New York Mets, em Queens. Fiquei quase na mesma, e achei que era o jogo mais infantil do mundo. Mas não o são todos? Percebi que os americanos gostam daquilo porque tem uns picos de excitação quando os artistas conseguem acertar na bola (pelos meus cálculos, não mais de um ou dois minutos por jogo, tudo somado) mas o resto demora três horas, permitindo que eles saiam para comer uns cachorros e beber umas cervejas, e passem a maior parte do tempo a confraternizar uns com os outros ou a fazer negócios. Como em todos os outros desportos nos EUA, um jogo é sobretudo uma festa. O que se passa à volta do campo é tão importante como o que que se passa nele, e se calhar mais.
Aconteceu-me estar em Boston em 2004, quando os Red Sox ganharam as World Series do basebol. É o Campeonato Nacional deles e, portanto, é Mundial. (O Mundo são os EUA. O resto ou é paisagem, ou são comunistas, o que inclui a al-Qaeda. Ou então não existe. A maioria dos americanos acha que a América Central é no Kansas. Os restantes acham que é no Nebraska).
Ora os Red Sox, sendo de Boston, são como o Porto: uma nação. Eles falam mesmo da Red Sox Nation, que tem adeptos de costa a costa dos EUA. E não ganhavam as World Series havia 82 anos.
Convém lembrar que estamos a falar de uma das cidades mais sofisticadas dos EUA ( do Mundo, portanto...). Da cidade de Harvard, do MIT, dos Kennedy, das elites intelectuais da Costa Leste, de tudo isso e muito mais. Não é uma parvónia qualquer em busca de afirmação e auto-estima. Mas, de um momento para o outro, o Boston cool explodiu na mais gigantesca, inacreditável, provinciana, alienada, louca, pirosa e contagiante das euforias colectivas. Tenho pena, e muita, de ter perdido a maioria das fotos que tirei. Eram ainda analógicas, em filme. Só fiquei com umas poucas digitais.Para quem achava que por cá somos tarados pela bola, tive uma cura de choque. Eu não queria acreditar no que via. Do mais pindérico dos pasquins ao Boston Globe, todos deram a primeira página ao evento. Não digo uma parte da página, nem sequer a manchete: digo toda. Muitos deles, com uma foto única, geralmente do herói da equipa, um crioulo alegadamente bom no bate-e-foge basebolístico.
Depois, lá dentro, eram páginas seguidas de notícias, reportagens e análises que iam do puramente desportivo ao declaradamente político. Vivia-se para mais a recta final da campanha presidencial que opunha George Bush, buscando um segundo mandato, a John Kerry, que era dali mesmo de Boston. Então eu li coisas como a afirmação de que agora Kerry já nem precisava de ganhar, porque o Massachussets, tantas vezes esquecido e negligenciado pelos poderes federais (onde é que eu já li coisas assim?) tivera finalmente a sua desforra e o seu dia de glória. Pinto da Costa, tu não és nada comparado com isto.
Toda a cidade se engalanou. Não havia montra de loja que não aludisse ao evento, com manequins vestidos de Red Sox, bancos a prometer juros indexados ao resultado final, peúgas vermelhas por todo o lado. E no dia em que a equipa regressou da final, fez um desfile por toda a cidade aplaudida por um milhão (um milhão!!) de pessoas nas ruas. As televisões davam Red Sox até ao enjoo. Uma delas foi fazer reportagem para o cemitério. Um cidadão abraçava-se a uma campa, chorando que nem um desalmado: "Avôzinho, havias de estar vivo para veres isto com que sonhaste toda a tua vida."
No final disto tudo, dei por mim a gritar Who's your daddy now? com um boné dos Red Sox pelas ruas de Boston. Não me orgulho. Mas em Roma sê romano.