sexta-feira, 5 de março de 2010

A cidade e as terras


Por razões suficientes e não de todo adversas, desde finais do Verão que me divido entre a Grande Alface e uma vila do Baixo Alentejo. Inicialmente, eu e a mulher da minh'alma alugámos um pequeno apartamento no centro - um T1 acanhado e improvavelmente barulhento. Mas era mesmo só para lá passar o tempo estritamente necessário.
Cedo percebemos, sem grande surpresa, que estar por aquelas paragens era, em si mesma, uma experiência gratificante. Daí a procurar uma casa maior e melhor foi um passo natural. E encontrámo-la: num recanto sossegado da vila, rodeada de silêncio e odores a terra, fumo e ervas.
A mudança não era complicada. Mas era preciso fazer uma limpeza geral. De modo que numa tarde se contratou uma empresa especializada que, por tuta e meia, logo nos enviou três senhoras para esfregarem a casa de cabo a rabo às nove da matina do dia seguinte. Enquanto isso, eu inspeccionava os equipamentos da minha nova mansão alentejana, descobrindo que o autoclismo funcionava mal.
Eu percebo tanto de autoclismos como de dialectos antigos do noroeste do Kirguistão. Em qualquer grande cidade moderna, achar quem o arranjasse seria uma encrenca das valentes. Mas niema prabliema, como diria um amigo meu da Bulgária. Na rua de cima pontifica o sr. António, senhor de uma oficina fantástica recheada de cadáveres das máquinas mais díspares, às dezenas de cada espécie, que canibaliza metodicamente para reparar tudo o que seja preciso: "Clínica geral," como ele diz, piscando o olho.
Trazer o sr. António perante o relutante autoclismo foi coisa de minutos. E ao fim de uma hora, e de duas idas para buscar uma bomba nova e uma qualquer ferramenta, eu tinha o precioso engenho a funcionar. Na passada, ainda nos daria indicações sobre o frigorífico e respectivas ligações. Perguntado sobre quanto era, disse nada. "Apareçam ali na oficina sempre que quiserem. " O sr. António gosta é de ter bons vizinhos, e está visivelmente radiante por ter mais uns.
No entretanto, o Inverno avassalava e a casa gelava. Acender a lareira era quase uma questão de vida ou morte. Mas faltava a lenha. Onde comprá-la, nem que fosse uma pouca dela para as primeiras necessidades? Feito o desabafo, eis que a dona Manuela, encarregada da brigada de limpeza, telefona para o patrão, que fala para um senhor conhecido que vende lenha. Este não a tem de momento. "Desenrasca-te. Essa lenha é precisa hoje." Eu não conheço o patrão da dona Manuela de lado nenhum, nem ele me viu mais gordo. Mas luta por mim, e pela minha lenha, que nem um leão.
Na dúvida, a dona Manuela vem em meu socorro: "Eu arranjo-lhe um pouco de lenha da minha." Protesto: que não, que não é preciso, vai lá a Dona Manuela incomodar-se. Mas não lhe custa nada, ela manda vir. Não manda vir nada, eu vou lá buscar a lenha. Levo-a no carro, e ela vai buscar um cesto de lenha que me dá. Doze horas antes, eu nem conhecia a dona Manuela, nem ela a mim.
Também preciso de gás. Quem mo fornecia era a dona Ernestina. Vou até ao estaminé dela. Diz-me que irá levar-me a bilha daí a pouco na carrinha. Então eu suspiro, com algum descaro, que a carrinha dela é que me daria jeito para eu levar uma estantezinha que montei no T1 e agora não cabe o meu carro. "Ora essa, eu levo-a", diz a dona Ernestina. Melhor ainda: qual carrinha qual nada, que até está com manhas no motor de arranque. Dá-me mas é a chave do jipe dela, e eu levo o que quiser, quando quiser.
A dona Ernestina forneceu-me, por junto, uma garrafa de gás butano na vida, e nem sabe como me chamo. Mas põe-me nas mãos as chaves de um Land Rover. Enquanto carregamos a estante, telefona-me a dona Manuela: que está à porta de minha casa o senhor da lenha, com uma camioneta dela. Valhamedeus, acontece tudo ao mesmo tempo. Não faz mal, ele espera.
Lá vou eu de jipe, de estante, de bilha de gás e de dona Ernestina pela vila fora. O senhor da lenha espera-me à porta, fumando com vagar. A carrada de lenha é enorme. "Mas eu tinha pedido só um bocadinho, uma bagageira de automóvel. Onde vou meter isso tudo agora?" choramingo. "Olhe, despeja-se aqui à porta e logo se vê." Eu esperava tudo menos ter que acarretar lenha como um forçado, mas pronto.
Despejada a estante e ligado o gás, ó dona Ernestina, eu vou levá-la de volta, obrigado. Que nada, eu ajudo a descarregar a lenha, diz ela.Tenha juízo, dona Ernestina. Ela não responde, e desata a levar braçadas de lenha para o quintal de onde eu vejo Beja ao longe. Num instante arrumamos a carrada. Quanto é, pergunto ao senhor? Uma ninharia.
No breve espaço de 24 horas, eu fiz o que em Lisboa precisaria de quase uma semana para fazer: mudei uma estante e tudo o resto de uma casa para outra, contratei e realizei uma limpeza geral da casa nova, arranjei um canalizador e um electricista e o mais que for preciso, que me reparou equipamentos preciosos, instalei gás, encomendei, recebi e arrumei uma carrada de lenha e estabeleci uma rede social de contactos e apoios preciosos para a minha vida naquele local, incluindo a vizinha do lado que não descansou enquanto não mostrou a casa toda e se dispôs a tudo o que fosse preciso - todos eles com visível gosto no simples acto de me ajudarem e de passarem a ser meus amigos - não pelos meus lindos olhos ou pelo meu corpo fabuloso, mas porque é natural que assim seja. Para tudo isto, gastei 60 euros.
Agora venham falar-me de feicebuques.
Um dia destes faço como o Zé Fernandes, e ponho-me definitivamente na alheta, rosnando à Cidade: "Pois adeuzinho, até nunca mais! Na lama do teu vício e na poeira da tua vaidade, outra vez, não me pilhas! O que tens de bom, que é o teu génio, elegante e claro, lá o receberei na Serra pelo correio." Neste caso na planura, e pela net, que eu cá também sou pelo progresso.

domingo, 28 de fevereiro de 2010

Alerta vermelho

Guincho, Fevereiro

Os espanhóis falavam de uma "bomba meteorológica," de uma conjugação rara e letal de elementos. Vinha aí the perfect storm. Por cá, e para adensar a ameaça, falou-se misteriosamente de "um fenómeno" que se aproximava, suscitando imagens de pragas bíblicas, raios e coriscos, chuvas de rãs, bolas de fogo. Pôs-se tudo de sobreaviso, os alertas bateram no topo da escala. Ninguém quer ser apanhado descalço, ninguém quer que se diga que não avisou, que não se tomaram precauções.

O vendaval passou, sem fazer a mossa que se temia. Tudo voltou ao normal. Um dia destes, aqui ou em qualquer outro lado, o céu desaba ou a terra revolta-se, dessa vez sem aviso, como é costume. Nessa altura vamos outra vez acusar-nos uns aos outros de incúria, inconformados pelo facto de a Natureza continuar a ser mais forte do que nós. Mas é.