quarta-feira, 5 de maio de 2010

A dúvida externa


Cacilhas

Vou divagar, que tenho pressa: isto vai mal. A economia não cresce nem aparece. Os mercados não acreditam em Portugal e, em troca, Portugal não acredita nos mercados. Ou é ao contrário? Seja como for, é uma enorme dúvida externa, que acentua as nossas dívidas metódicas. São dívidas existenciais. São crónicas, e dos bons malandros que sempre fomos. Os tempos são cépticos e assépticos, e não estão para graças a Deus, que o diga o Papa. O rating de Ratzinger está baixo, como o nosso: dantes era a Joana que comia a papa, agora é o Papa que come a Joana. Sei que vou pagar por esta, mas prefiro pagá-la a apagá-la. Se há Deus, que me acuda. E se não há?
Se não há, adeus ao que é de Deus, a César o que é de todos os santos, que assim também não existem. Prefiro pensar que se não houvesse, teria de ser inventado. E foi. Depois Deus inventou o Homem à Sua imagem. Os gregos tinham inventado Deuses à imagem do Homem, e por isso o Olimpo era o que era: uma casa de doidos. Hoje é um Zeus nos acuda em Atenas, mas isso é apenas outra História. Clássica, mas sobretudo eurótica. Nem ao mero poeta lembraria tal odisseia.
Ver-nos-emos nós gregos? Longe vá o agora, que o passado é cada vez mais imprevisível: o que teremos nós feito, para aqui chegarmos? Perdemo-nos em flagrantes de litro, a vida para nós foi mais bolos, e esquecemo-nos de que o creme não compensa. Vamos chorar sobre o deleite derramado? Por mim, dispenso logo existo. Mas insisto: o futuro já não é o que foi, e se calhar não havia razão para ter sido o que chegou a ser.  
Dispenso, mas depois compenso. Não tenho soluções para a crise - o único remédio é fazer cortes de ténis menos caros, e menos carros. Juntemos o fútil ao agradável: agora que os dias são menos noite, vou contemplar o meu próprio destino ao sol do fim de tarde bebendo um gin platónico, como o amor que é fogo que arde sem se vir - assim começaria o meu poema, que nem é ode nem sai de cima. Vendo bem, façamos o gin tónico, e também o amor. Os tempos, direi melhor, não estão para desgraças, a vida é demasiado curta para beber vinho barato. E tristezas não apagam dúvidas.

terça-feira, 4 de maio de 2010

Memória: Os corvos de Pristina

Bojan não queria acreditar que estava num carro tão sofisticado. Sentado no banco de trás, cotovelos nos joelhos e a cara descansando nas mãos, olhava maravilhado para a evidente suavidade da caixa de velocidades. De cada vez que eu passava uma mudança, ele dizia: “Uau.”
O carro não tinha nada de fantástico. Era um Mitsubishi vulgar que eu e o Carlos alugáramos em Belgrado para vir até ao Kosovo. Mas fazia um vistaço diante da relíquia industrial do titismo que era o Zastava de Bojan, cuja caixa de velocidades já só funcionava a murro. Para manter a quarta no lugar tinha que prender a alavanca a uma corda. 
A minha solidariedade e compreensão iam direitinhas para Bojan, porque já em Belgrado embatêramos na traseira de um modelo igual e em estado semelhante, que travara subitamente à minha frente. O toque foi ligeiro, fez apenas uma pequena amolgadela no pára-choques dele (é verdade que o pára-choques caíu). Mas de lá saiu um condutor com a morte na alma e mais de metade do tablier na mão. O que vale é que 100 dólares (incritos posteriormente na prestação de contas sob a rubrica “diversos sem justificativo”) bastaram para o homem se ir embora satisfeito. Aqueles carros a cair aos bocados eram a imagem da Jugoslávia.
Bojan guiava todos os dias o seu destroço pelas ruas esburacadas de Pristina em direcção ao emprego no serviço de relações públicas do governo provincial. Governo sérvio, evidentemente. Era 1993, o Kosovo ainda era uma província autónoma sérvia – com 90% de população albanesa. O verdadeiro embróglio balcânico. Este cu-de-Judas poeirento é considerado pelo nacionalismo sérvio como o berço da sua nação, usurpado ao longo da História. Mas quem lá vivia, de sérvio, só os que não tinham outro remédio. Aquilo não interessava a ninguém.
Como tantos outros dos seus irmãos, Bojan sonhava em sair dali. Estudara relações internacionais na universidade de Pristina, queria ser diplomata. "Os sérvios daqui são uns labregos. Este carro é um 1600, não é?" Foi mostrar-nos o lugar mais sagrado desta Jerusalém balcânica, o Kosovo Polje (Campo dos Melros). Uma torre evocativa sobre a planície silenciosa onde em 1389 sérvios e turcos otomanos se chacinaram mutuamente. Na véspera, o santo príncipe Lazar escolhera o reino dos Céus para todo o sempre, em vez do reino terrestre que só duraria o tempo da sua vida. E recusara a paz oferecida pelo sultão Murat, atirando contra ele o seu exército e perecendo na batalha. Foi uma carnificina de parte a parte. Nem Murat escapou, e o seu túmulo ainda lá está junto do campo, encimado pelo turbante.
Embora tecnicamente empatada, a batalha de Kosovo foi a Alcácer-Quibir sérvia. Toda a elite do reino foi dizimada. Os turcos regressaram e dominaram a região durante mais de quatro séculos. Kosovo passou a representar o mito fundador, a derrota cuja redenção está inscrita na alma de cada sérvio. Até ao século XIX as mães saudavam os filhos recém nascidos: "Salve, pequeno vingador de Kosovo." Em 1989, junto ao monumento de Kosovo Polje, nos 600 anos da batalha, Slobodan Milosevic prometeu aos sérvios que nunca mais ninguém os maltrataria, e lançou fogo aos Balcãs. Uma década de guerras despedaçou a Jugoslávia e fez mais de 200 mil mortos.
Em Kosovo Polje, mais do que melros, há corvos negros por todo o lado, como os que também poisam nos edifícios de Pristina. A caminho de Gracanica (ler Gratchanitza), onde há cordeirinhos brancos a pastar no recinto que envolve o mais sagrado dos mosteiros sérvios desta terra sagrada, Bojan conta como se está nas tintas para tudo o que tenha a ver com ela. Não o devia dizer, afinal de contas é pago para servir o regime que mantém os albaneses kosovares submetidos aos ditames de Belgrado e da minoria sérvia. Mas o que recebe não lhe dá para ter mais do que um Zastava a cair de podre. Ele queria era ir trabalhar para uma embaixada no estrangeiro.
Em Gracanica, ovelhas entram e saem. Velas ardem, esvoaçam freiras num sussurro. A paz do mosteiro é uma barreira contra a tensão exterior. Mas os olhos das figuras representadas nos belíssimos frescos estão raspados: os turcos acreditavam que o pó assim obtido tinha poderes milagrosos. Ninguém restaurou os frescos, para assim manter viva a lembrança do inimigo que vazou os olhos aos santos da Sérvia eterna, ao santo príncipe Lazar que agoniza no campo de batalha sob o olhar do arcanjo S. Gabriel. "Que reino hei-de eu escolher?"
"Vocês também vão falar com albaneses?", pergunta Bojan candidamente. Custa a acreditar que ele não saiba que já falámos, que já andámos pelas aldeias a beber chá com os camponeses e a ouvir-lhes as queixas. Mas aqui tudo é possível. Dois dias antes eu combinara encontrar-me com Yllka, o nosso contacto na resistência kosovar. Queríamos entrevistar o líder, Ibrahim Rugova. Yllka é uma jovem albanesa católica. Recusa vir ao Grande Hotel, que é o quartel-general das milícias sérvias como a dos Tigres de Arkan. Faz sentido, o hall de entrada está povoado de criaturas sinistras com cabeças rapadas e revólveres a sair dos bolsos. Yllka diz para estarmos no dia seguinte em determinada pizzeria.
Encontramo-nos com ela e dois companheiros num ambiente da mais pura clandestinidade. Não querem que os sérvios saibam onde vamos. Onde está Rugova? Está na sede da União dos Escritores. Mas isso é onde ele está sempre, não é? Bom, calem-se e sigam o nosso carro, dizem eles. Segue-se uma jornada de meia-hora pelas ruas de Pristina, sobretudo pelas zonas albanesas. É para despistar. Mas é uma seca, tanto mais que Pristina é o lugar mais desinteressante do mundo. O Carlos filma da janela, para nos abastecer de planos da cidade. O nosso Mitsubishi vermelho é conspícuo, até porque ostenta na placa de matrícula as letras BG, indicando ser de Belgrado. Olham-nos com ar rancoroso. Por fim, chegamos ao casinhoto da União dos Escritores, junto ao estádio de Pristina.
Na esquina, dois polícias sérvios olham-nos pachorrentamente. Não há ninguém que não saiba que estamos ali, e suspeito que sempre se soube. Eu não quero acreditar no que se passa: tanto cuidado, tanta precaução para quê? Isto é como andar no Chiado disfarçado de pele-vermelha para não dar nas vistas. Se isto foi uma operação discreta, eu sou um carro eléctrico. Deve ter sido para nos impressionar. A verdade é que os sérvios querem lá saber se nós vamos ou não entrevistar Rugova.
O "Gandhi dos Balcãs" fuma cigarro atrás de cigarro, sempre envolto num cachecol de seda. Tem um ar frágil e um francês de sotaque carregado, no qual explica a política de não-violência como uma escolha e sobretudo uma necessidade. É que as armas estão todas do lado sérvio, e seria um massacre. Uns anos depois, diante das sinistras milícias kosovares armadas pelas mafias albanesas, a figura carismática de Ibrahim Rugova vai apagar-se, anacrónica e obsoleta. Um cancro do pulmão fez o resto.
Sobre esta terra perdida pairavam nuvens de ameaça. Sentia-se no ar. Dizê-lo agora pode parecer óbvio, mas na altura adivinhava-se que um dia haveria ali uma tragédia. Em nome de quê? O Kosovo não tem nada, para além de uns vagos minérios. Na altura, fazia lembrar Trás-os-Montes há umas décadas atrás. Mas os homens guerreiam mais facilmente por uma ideia ou por uma bandeira do que por um poço de petróleo. "A Sérvia vai até onde estiver o último túmulo sérvio," tinha eu lido já não sei onde. E eles não faltam aqui. Mas também há túmulos turcos, albaneses, e de outras partes.
Em 1999, uma das terras mais pobres e esquecidas da Europa foi a causa dos primeiros bombardeamentos aéreos sobre uma capital europeia desde a II Guerra Mundial. A NATO, feita para combater o império soviético, estreou-se atacando Belgrado e as tropas de Slobodan Milosevic. A guerra do Kosovo mudou radicalmente a relação de forças na região. Houve milhares de mortos. Os presságios cumpriram-se. Menos de dez anos depois, o Kosovo tornava-se independente.
Bojan olhava pela janela do Mitsubishi e suspirava: "Quem vai querer morrer por um buraco destes? Eu não, de certeza." E quando lhe pergunto para onde é que ele gostaria de ir, o rosto ilumina-se: "Para o mais longe possível daqui. Para a Nova Zelândia."