Se eu soubesse que isto ia ser assim tinha gozado a vida mais do que gozei, e perdido menos tempo a aprender inutilidades. Cada vez menos é preciso saber coisas que não sejam imediatamente necessárias à sobrevivência. Andámos nós a empinar as preposições simples, os rios e as linhas de comboio, as capitais e a tabuada, e nada disso precisamos de saber, porque agora as máquinas nos dizem tudo.
Se eu soubesse tinha poupado o meu pobre cérebro, não o tinha sobrecarregado com uma ganga inerte de conhecimentos que agora posso ir buscar facilmente a uma memória artificial ao alcance dos dedos. Quantos habitantes tem Kuala Lumpur? Em quantos cantos se divide a Divina Comédia? Em que dia nasceu Carlos V, e quais eram os seus títulos?* Posso saber tudo isto, e praticamente tudo o que quiser, em segundos. Para quê investir na memorização de coisas? Um clique, e já está: o Google é o saber em outsourcing.
Enganaram-me. Disseram-me que o saber não ocupa lugar. Claro que ocupa. E ocupa tempo. Felizmente, hoje estou liberto dessa infindável tarefa de formiguinha intelectual, e posso dedicar-me a uma especialização. Posso apertar parafusos em série, descansado. Não preciso de saber fazer contas, de saber línguas, de saber o que quer que seja, porque uma tecla me faz cálculos, me traduz, me diz o que quer que eu queira. Não preciso de me orientar, porque uma máquina me diz por onde devo ir. Não preciso de pensar, porque uma máquina me diz o que devo concluir, e não tarda que me diga que decisões devo tomar.
Nem preciso de ter muito trabalho, porque essa mesma máquina me vai publicar instantaneamente este desabafo, com uma audiência potencial que o D. Quixote - um texto consideravelmente melhor do que este - não teve em séculos.
Agora posso embebedar-me, dormir até tarde, perder-me no bosque. Sei que, se precisar, um clique me dirá o que preciso. Talvez seja isto a liberdade absoluta. Ou a servidão. Por enquanto, ainda depende de mim sabê-lo. Por enquanto.
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* Carlos V era Rei de Espanha, de Nápoles e da Sicília, dos Países Baixos e dos Romanos, Imperador do Sacro Império Romano, Arquiduque da Áustria, Duque de Milão, de Suábia, de Brabante, de Limburgo, de Luxemburgo, de Carniola, de Caríntia, da Estíria e de Gueldres, conde de Flandres, da Holanda, da Zelândia, de Ostrevant, de Hainut, de Louvain, de Namur, do Tirol, da Borgonha, de Artois e de Charolais e landgrave da Alta Alsácia. Aposto que nem ele sabia isto de cor.
Mas eu soube-o e pu-lo aqui, graças ao Google e ao copy-paste, em cerca de quinze segundos. Claro que não interessa para nada.
Mas eu soube-o e pu-lo aqui, graças ao Google e ao copy-paste, em cerca de quinze segundos. Claro que não interessa para nada.