sexta-feira, 18 de junho de 2010

Saramago

Se estava enganado, Saramago, neste momento, já sabe. Se não estava, a questão nem se põe. Se há uma terceira hipótese, a mais vasta, também já saberá. Para ele, tudo se resolveu. Nós ficaremos com o que ele deixou escrito. 
Quem se importar com o que dizem de nós lá fora pode anotar que hoje não o fazem por causa de um futebolista de brincos e abdominais, nem pela nossa alarmante miséria, mas por causa de um escritor. Será mais justo, para um país cujo herói maior é um poeta.  Saramago achou que devia ser mais do que isso, e foi um dos últimos, senão o último, intelectual engagé. 
De certa forma, Saramago tem a ver com o oposto do texto anterior a este. Dois velhos combatentes de trincheiras diferentes, exemplos de uma era que já não existe, morreram no mesmo dia. Os combates em nome do qual eles viveram e agiram foram duros. O século deles foi o século das megamortes: calculam-se em quase 200 milhões o número de pessoas mortas desde 1900 em consequência de guerras e similares - provavelmente, tantas como em todos os séculos anteriores, desde que o Homem é um ser histórico.
Não sei se algum deles pensou nisso. Saramago era um artista, mas defendia uma concepção de sociedade que não foi inocente no massacre. Como interventor, disse coisas originais, fez asneiras, e contribuiu para outras. Como artista, nem sempre foi excelente, como ninguém é. Houve livros dele que não li e não gostei; a outros, achei interesse. Não era um génio. Era um bom escritor, aplicado. Falei com ele uma vez, por telefone, e foi extremamente simpático. Haverá alguns que o lamentam mas, de uma forma geral, foi bom que tivesse existido.

O centurião

Hoje já ninguém dá nada pela França, já nem a língua dela se aprende. Mas ainda há uma geração, que está hoje na reforma, para quem a França era a medida de todas as coisas boas e más. Essa geração sabia quem era Marcel Bigeard, que morreu agora. Ele representava uma certa França, tão marcante quanto a de Maio de 68, de Sartre, de Brassens e Ferré, dos ícones intelectuais da esquerda. Era talvez a França oposta a essa. Era também um ícone, à sua maneira - para a geração que devorou os livros de Jean Lartéguy, apostada em combater os ventos da História, que se atirou com os parachutistes de Marcel Bigeard para todos os combates perdidos de um tempo que findava, de Dien Bien Phu a Argel, de Nambuangongo a Mueda.

Bigeard era o Raspéguy de “Os Centuriões.” Inspirou bastante mais do que tal personagem, e o famoso “quico” também adoptado pelas tropas portuguesas, com o tapa-nuca em forma de rabo de lagosta: inspirou toda uma série de centuriões de África, que nada lamentavam como os paras que, perdida a guerra nos idos de Sessenta, reembarcavam em Argel cantando uma canção em voga: Non je ne regrette rien. Uma geração claustrofóbica na redução à Europa, doente dos males do Império e da aventura, marcada para morrer e que no fundo sabia que toda a acção era inútil - mas que dizia, como Cyrano na hora da morte espadeirando o ar, que tudo era ainda mais belo por ser inútil.
Marcel Bigeard, o general mais condecorado de França, era um patife para muitos, um herói também para muitos. Mas isso agora não interessa para nada. O que interessa é que era, também ele, uma certa França que um dia mexeu connosco e vai morrendo. Não sei que coisas levou com ele, mas uma foi certamente, e talvez a única: o seu panache. Sans un pli, sans une tache.

segunda-feira, 14 de junho de 2010

A casa que vomita silvas


Um dia foi casa de gente. Depois ali ficou abandonada, casa de nada e ninguém. Como se uma qualquer força continuasse dentro dela, o tempo encheu-a de ervas e silvas que agora vomita por janelas como órbitas vazias de uma caveira. É uma entre muitas que semeiam o interior português.


Está para ali, no Ribatejo, além da vila de Ulme (Chamusca), já a entrar na chamada "charneca" a sul do Tejo, que vai até Ponte de Sor e ao vale do Sorraia. Este país é assim: a dois passos da preciosa lezíria ribatejana e terras adjacentes, é uma das regiões mais inférteis, desoladas, ermas e bravias de Portugal - o deserto de que um dia falou um ministro, reino de milhafres, memória de almocreves, passagem de algaras e fossados em terras de mouros. Nada de jeito ali pega, é só areia e cascalho. E casas que já foram de gente, vencidas pelo matagal. Mas não convencidas.

História belga

"Disseram-nos: 'Vão para Bruges'. Eu nem sequer sabia 
onde caralho era Bruges." 
(Pausa) 
"É na Bélgica."

(Monólogo em off de Colin Farrell no início de "Em Bruges")


Eu uma vez estava numa exposição em Bruxelas e parei por segundos junto de um grupo que ouvia um guia. Imediatamente um burguês de bigode me olhou de lado, arremelgou a sobrancelha e disse-me naquele francês de sopeira que têm os belgas: "Je ne me souviens pas de vous voirrr dans notrre grrroupe." Apeteceu-me mandá-lo à merrrda.
Nunca gostei muito dos belgas. Um povo que come mexilhões com queijo derretido não merece grande respeito. E terra que tem por atracção um puto a mijar numa esquina não promete ser excitante.  Não me lembro de algum dia ter visto uma belga de jeito, são todas uns pãezinhos sem sal. Uma das poucas coisas que a Bélgica tem de bom é produzir uns franceses excelentes, como o Jacques Brel. Só mesmo este tipo conseguiria comover-me com uma canção sobre a Bélgica, e que é uma das mais tocantes declarações de amor a um país em poema e música que conheço. E logo à Bélgica. Que coisa tão mal empregada. Só podia chamar-se "o país chato."
Uma vez mais os separatistas flamengos ganharam eleições. O país não consegue ter um governo como deve ser - nem precisa, a bem da verdade. Os belgas são todos como o burguês da exposição, uns picuinhas que têm tudo organizadinho naquela cabeça. Aquilo não é um país, é uma direcção-geral, que vai funcionando por si própria. É um gabinete. O colorido D. Jaime de Móra y Aragón, que tinha não sei quantos reis, imperadores e Grandes de Espanha na família, comentava da sua irmã Fabiola: "Mi hermana es emigrante en Belgica. Trabaja de reina." Mas a extrema-direita belga (flamenga) é uma das mais caceteiras da Europa. O Vlaams Blok é uma coisa de perder a paciência. Os nacionalistas defendem coisas absurdas. Há taxistas que insultam pelo rádio quem não os chama em neerlandês. Se alguém for de língua francesa não pode comprar casa na Flandres. E depois nós é que somos os grunhos.
A Bélgica foi uma invenção inglesa. O mundo viveu perfeitamente sem ela até 1830. Nessa altura, estava na moda inventar países e ir buscar um príncipe alemão desocupado (havia imensos) para reinar neles. Agora, está a desfazer-se.  Por mim, não acho que daí venha grande mal ao mundo, e para muitos belgas parece que também não. O mundo pode muito bem voltar a viver sem ela, e aguentar mais um Saxe-Coburgo no desemprego. Levem lá o Manneken Pis, o rei e os mexilhões com queijo, e deixem-nos ficar Brel, Brueghel, a cerveja e o Tintin.