terça-feira, 22 de junho de 2010

Os tempos da bola

Eu, que sou uma pessoa espectacular e diferenciada, não resisto ao zeitgeist, que é como as pessoas diferenciadas chamam ao que está a dar. Por isso vou falar de futebol. A alternativa séria do momento seria a economia, campo em que sou francamente indiferenciado, que é como as pessoas diferenciadas chamam à parte ignara do povo.
Por isso, e como diz o referido povo indiferenciado, é assim: 
In illo tempore, o tipo de futebol produzido dependia de quem o jogava. O mais das vezes, a percepção das diferenças confortava os mais vulgares clichés étnicos:  os brasileiros sambavam com a bola, os alemães carregavam com a força de uma divisão panzer e a imaginação de uma salsicha, os italianos aliavam o calculismo de banqueiros florentinos à astúcia de mafiosos. Os ingleses eram práticos como lojistas. Os espanhóis trapalhões, com assomos imparáveis de fúria castelhana. Os franceses falavam mais do jogo do que jogavam. Quanto aos portugueses, era o costume: muita parra e pouca uva, o fatalismo das vitórias morais, a timidez ufana do "brilharete", a pouca eficácia nascida do maior gosto pelos meios do que pelos fins, e a habilidade e o desenrascanço que por vezes, embora brevemente, redimem tudo isso.
Na generalidade, tudo se esbateu. É verdade que já há muito tempo que a equipa francesa parecia formada segundo o guião de um pesadelo de de Jean-Marie le Pen: ele eram crioulos do Senegal, berberes argelinos, periféricos bascos ou filhos de concierges de Entre Douro e Minho. Mas sempre era a equipa do país que inventara a Legião Estrangeira, onde todos se tornavam filhos da França "não pelo sangue recebido, mas pelo sangue derramado." Outra coisa é ver hoje metade da Mannschaft alemã formada por gente de origem estrangeira. Mesmo continuando adepta da blitzkrieg musculada, há ali uns toques exóticos que a aproximam dos outros. Quando já nem a Alemanha é o que era, o Mundo já não é o que foi.
A Europa é o melting pot do pontapé na bola, alimentada sobretudo pelos países onde se joga bem e se ganha mal. A começar pelo Brasil, feito de imigrantes, que anda agora a emigrar, refazendo à sua imagem outros países mais velhos, tingindo-lhes os futebóis, tantas vezes secos e bisonhos, com as cores da terra que tem palmeiras onde canta o sabiá. Já não é só exportação de mão-de-obra, mas de cidadãos. De Portugal à Polónia, toda a selecção que se preze tem hoje o seu brasileiro de estimação, ajuramentado às cores locais como se fosse desde pequenino. Até a Turquia já teve o seu Mehmet caipira a jogar de Crescente ao peito.  Obviamente, isto não é mais que o reflexo dos clubes, onde a Babel se instalou há muito. Quase que há tantos jogadores do campeonato português na selecção argentina como na portuguesa, digo eu que não tenho números certos, só uma impressão que para o caso chega. A selecção italiana tem também gente que nasceu na Argentina, embora sabendo nós que no fundo argentinos e uruguaios na Europa são uma espécie de italianos de torna-viajem. 
Tudo isto faz com que haja cada vez menos estilos nacionais. Agora que tudo se globalizou, tendemos todos a jogar à bola da mesma maneira, como andamos todos a conduzir o mesmo carro, a comer as mesmas coisas, a ver os mesmos filmes e a ter as mesmas opiniões sobre os mesmos assuntos. Eu próprio estou a escrever uma coisa que toda a gente já sabe.
O que nem toda a gente sabe é que eu acho que isso, sendo inevitável, não é necessariamente mau no caso do futebol. Perde-se algo que nos fazia identificar com uma equipa, é verdade. Mas os sentimentos que nos ligam a uma comunidade também estão em mutação. O futebol ainda vai sendo para muita gente um espelho das “virtudes da raça”, se é que posso utilizar esta expressão sem ser preso. Mas a raça é uma coisa que anda cada vez mais misturada e sem sentido, e as virtudes futebolísticas tendem cada vez mais a ser outras: as da organização, do profissionalismo, da preparação individual e colectiva.
O futebol é a guerra codificada, é um substituto do conflito armado nas sociedades modernas. E a guerra nem sempre foi uma questão reservada exclusivamente a cidadãos das partes envolvidas. Há o exemplo de Roma e das cidades gregas, evidentemente, em que o serviço militar era tarefa e missão de homens livres, o que quer que isso significasse na época. Medievalmente, porém, era coisa de mesnadas arrebanhadas à força, ou em preitos de vassalagem, por senhores feudais. Modernamente, o povo em armas é uma invenção recente (data da Revolução Francesa) e com tendência para ser breve. A regra era o uso contratado de quanta gente fosse necessária, viesse ela de onde viesse. Aljubarrota foi ganha com a preciosa colaboração de archeiros ingleses. Alcácer-Quibir foi perdida por um exército que levava arcabuzeiros alemães, mercenários flamengos, voluntários italianos, quadras de infantaria espanhola, e demais desvairadas gentes de outras partes. Franco (suprema ironia) ganhou a cruzada pela Espanha nacionalista e cristã com tropas à base de tercios de extrangeros e regulares marroquinos fiéis de Alá. As cidades italianas fizeram-se de condottieri que se alugavam e às respectivas condotte. A primeira grande guerra europeia, a dos Trinta Anos, foi travada por mercenários a soldo de quem melhor lhes pagasse, que chegavam a mudar alegremente de campo, como o maior deles, Wallenstein. A aventura sueca de Gustavo Adolfo, com o seu exército de camponeses virtuosos amarrado à vontade do Estado, foi uma novidade que anunciava outro tempo.
Dir-se-á que o exemplo não é auspicioso, já que a guerra dos Trinta Anos devastou boa parte do continente. Mas o cenário futebolístico da Europa de hoje é parecido com ela no que toca às hostes envolvidas, e sobretudo no que tem de parecido com um cenário pré-consolidação do Estado-Nação. Só que, neste momento, estamos no pós. O Estado-Nação perde força em favor de outros pólos de fidelização – regionais, empresariais, culturais. Os clubes são empresas num espaço liberalizado. O campeão europeu deste ano é um clube “italiano” que chega a não ter nenhum jogador italiano em campo, e teve um treinador português. Neste cenário, as velhas “selecções nacionais” tendem a perder sentido, pois nem sequer vão recrutar os seus elementos nas “sementeiras” nacionais.
Estão a perder-se aquelas diferenças que permitiam confrontar estilos e faziam do futebol, também, uma questão de cultura. Tinha a sua poética. Mas aceitemos que the times they are a-changing e que a nossa pátria é a língua portuguesa, onde até temos vantagens de recrutamento. Vejamos a coisa assim: há 510 anos, Pedro Álvares Cabral prestou um enorme serviço a Portugal, ao abrir caminho para que Liedson possa estar hoje a marcar golos de quinas ao peito. Vamos a eles, carago. Até os comemos.

Olhares

Seja o que for que tenha havido na vida deste homem, nós sabemos que ela valeu a pena, só pelo olhar de uma mulher. 
Esta página do “Público” de ontem é um dos grandes momentos do fotojornalismo português. Raras vezes dei por tão bem empregue o euro que paguei por ela.