sexta-feira, 30 de julho de 2010

Contos do gin tónico, do bife e do gelado

O gin and tonic, bebida perfeita para os tépidos entardeceres coloniais, foi inventada pelos soldados ingleses na Índia para tornarem tragável o quinino contra a malária, e bastaria só por si para justificar o Império Britânico e a sua herança civilizacional. Fazer um bom gin tónico não é complicado, mas apela à pureza de alma necessária ao trabalho alquímico, sobretudo no emprego do limão sobre o qual a pura genebra deve ser simplesmente vertida no copo. Pede-se do citrino não o sumo, que estragaria tudo, mas simples presença e um ligeiro zeste, quase um soupçon, estimulado da casca. O resto é a noção das proporções ideais e, principalmente, a qualidade das matérias-primas. A harmonia final é redentora, até porque a diferença entre uma bebida luminosa e uma mixórdia rasca é ténue como uma promessa eleitoral.
Nunca bebi in loco o gin tónico do Peter (Café Sport) da Horta, no Faial, Açores, que tem entre os velejadores de todas as partes a fama de ser "o melhor do Atlântico." Apenas o conheço na representação do Peter no Parque das Nações, em Lisboa, construída sobre essa fama. Agora descobri que também há uma na Ribeira do Porto. E numa tarde  de flânerie, mal vi o emblemático cachalote evocando líquidos brilhantes sobre cubos de gelo e rodelas de limão salvador,  aterrei imediatamente na esplanada. Fazia um calor de ananazes.
É um gin excelente. Não sei se é o melhor do Porto. Será dos melhores. Do Atlântico não é de certeza: esse será apenas o que se bebe lá na casa-mãe, no Peter ele próprio, por entre brisas oceânicas, bandeiras e bandeirolas, cordames, madeiras velhas e histórias de marinhagem. Ou, simplesmente, a olhar o Pico. Porque o que faz de um gin o melhor de todos não é só o que está dentro do copo, mas também a sua circunstância. Certamente, o que faz do gin tónico do Peter, na Horta, o melhor do Atlântico é a sua qualidade - mas também a Horta e o Atlântico.
No fundo, são o mesmo tipo de razões que estavam na essência do bife da Portugália e do gelado do Santini. O primeiro era um bom bife, sim. Mas boa parte do seu encanto estava em comê-lo ali na Almirante Reis, em cadeiras e mesas de madeira grossa, afogado em molho, por entre pilhas de batatas fritas e litros de cerveja bem tirada, depois de se atravessar um átrio a cheirar a marisco e debruado a balcões de onde saltavam estilhaços de sapateira. Tudo isto de preferência já tarde na noite, depois de uma sessão de cinema, de copos ou de sexo selvagem.
O bife da Portugália era isto. Transplantá-lo e multiplicá-lo em franchizing por centros comerciais anódinos equivaleu a matá-lo sem remédio. A cerveja continua bem tirada, mas não há fome civilizada que tenha pachorra para aquela treta foliforme mergulhada numa gordura leitosa, acompanhada de um pirezito com meia dúzia de batatas fritas certamente empilhadas por um dos chefs da moda.
O mesmo para o Santini, que só se compreende em Cascais, com filas de Matildes, Salvadores, Constanças e Lourenços, mais tios, primos e restante família, esperando pacientemente por um honesto gelado de limão, nata, morango ou chocolate - sob o olhar do Grande Líder Attilio posando entre a realeza europeia. Mas isso foi chão que deu uvas: agora até já abriu no Chiado com novos sabores entre os quais, Deus do Céu, maracujá roxo e pêssego paraguaio. Agora está ao alcance - e à mercê - das massas indistintas para quem o rei de Itália só pode ter sido o Zé Mourinho, e a quem basta dar um gelado com nome exótico para se sentirem a comungar da sofisticação universal.
Foi-se a Portugália e, não tarda, vão-se o Peter e o Santini. Dona eis requiem. A banalização mata tudo. Estão 36 graus na tarde portuense e o melhor é pedir outro gin, enquanto ainda é bom, e ver os miúdos da Ribeira mergulharem naquela água imunda e fedorenta. À minha frente está um grupo de indígenas da zona, eles e elas. Um deles, senhor de uns trintas e poucos, levanta-se, esfrega a barriga e solta uma tirada que me apresso a anotar com zelo etnográfico, pela sua espessa cor local:
"Acho que bou taumbénhe dar um mergulho, ó carailho. Tá suija a i-áugua? Fuoda-se, mas olha, carailho, desde chabalito que nado ali e nada apanhei deribado à i-áugua. Um dia fui à praia e fuoda-se, apanhei logo uma cena na pele, ó carailho." 
À vossa.