sábado, 18 de setembro de 2010

Portugal eterno


Mascate, Omã, 1996
Em 1594, o comandante de um pequeno forte português em território persa escreveu ao seu rei um relatório votado a um triste fim. Começava por se queixar de que o seu forte era de lama e tinha de ser reconstruído anualmente após a estação das chuvas. Explicava em seguida que a sua guarnição se compunha de sete portugueses e vinte e cinco mercenários nativos, e de que com estes homens tinha não apenas que defender o seu posto mas ainda que escoltar caravanas com destino a Ormuz, perseguir atacantes e bandidos e intimidar o sátrapa local. Além de tudo isto sofria ainda de falta de munições – não porque o abastecimento de pólvora e balas fosse problemático, pois já não aspirava sequer a semelhantes luxos, mas devido à irregularidade do envio de setas para os arcos dos seus homens. O catálogo das dificuldades termina com a pior de todas: não podia assegurar o fornecimento de ópio para os seus homens.
Tal descrição dá-nos uma imagem irresistível da vida no mais remoto posto fronteiriço de um império impossível, onde a realidade da situação dos defensores era de tal modo desesperada que não tinha solução à vista, e onde o moral dos heróis condenados só encontrava algum alento nas doses de droga.
Uma derradeira ironia dá ao documento um travo trágico: o relatório nunca chegou ao seu destino. Vítima do frágil sistema de comunicações que assegurava a coesão do império português, foi capturado no mar por corsários ingleses e acabou depositado, juntamente com outras informações secretas inimigas, num arquivo londrino.
(Felipe Fernández-Armesto, "Milénio - A História dos Últimos 1000 Anos", Ed. Presença)

sexta-feira, 17 de setembro de 2010

Intermezzo

"Um país que precisa de um salvador 
não merece ser salvo" 
(Millôr Fernandes)


A Pátria não se importa de ser "a outra" de José Mourinho. Ele é o homem da sua vida, e ele há tão poucos... Arrostará com todas as condições, todas as esperas em silêncio, todas as intermitências. Estará sempre aqui, por vezes contentando-se com um telefonema apressado entre dois jantares com a legítima: "Sim, também te amo. O guarda-redes que vá fazendo uns exercícios." 
Sem ele, a Pátria sentir-se-á perdida, não há quem se lhe compare. Com ele, nem que seja por umas horas, sentir-se-á segura, triunfante, realizada. Venha quem vier. Por isso  faz a estrada de Madrid, descalça e desgrenhada, e sobe a Castellana para se pôr à janela do amado. Fará o que for preciso para o ter. Mendigará uma palavra, uma atenção, uma lembrança, como se de pérolas se tratasse. E espera assim conquistar o mundo. O amor vence tudo.

O Homem virá, talvez, numa manhã de nevoeiro, apressadamente, para dar a táctica. Acaba sempre tudo na mesma em Portugal. Tudo isto é tão ridículo e indecoroso que só espero que não se saiba lá fora.

(PS - A legítima é que parece não estar lá muito pelos ajustes. Felizmente - a bem da decência. Mas seja o que for que aconteça, já ninguém apaga o desconchavo.)

quarta-feira, 15 de setembro de 2010

Lugares

Picos de Europa, Espanha, Setembro
Parámos na estrada. Não estava frio. Havia silêncio, porque as montanhas, as nuvens e a urze falam-nos pela voz do vento, que trazia o cheiro de ervas e água. À nossa volta estava tudo como há mil anos, ou se calhar há um milhão. Ao longe, rompe ao de leve o motor de um carro, que se aproxima, passa por nós e trava lá ao fundo, antes de se sumir na descida
Pela desenvoltura com que conduz pela estrada que mais parece uma linha dentro de um bolso, é alguém que passa por ali todos os dias. Parece-me impossível que alguém passe por ali todos os dias sem parar e ouvir as montanhas. Mas, provavelmente, eu também passo todos os dias por sítios que hão-de fascinar alguém. Vou ter mais atenção e, quando vir alguém parado a olhar, acharei que está a sentir qualquer coisa boa. Porque não? No fundo, sou um optimista.

E mainada


Ria de Aveiro

segunda-feira, 13 de setembro de 2010

Tenha medo. Tenha muito medo.

Eu cá, quando fiz este magnífico belogue, queria fazê-lo mais para o contemplativo. Mas às vezes apetece-me ser apenas ativo*. E isso implica fazer como as pessoas crescidas da blogosfera, e meter-me no que os outros dizem. O pretexto é este curioso post de uma mulher que já me tem divertido imenso, e no qual ela explica muita coisa do carácter e da actuação masculinas através do medo.
A referência ao “medo” masculino em relação às mulheres é recorrente. É o bordão interpretativo mais comum, e mais geralmente aplicado (só acompanhado, talvez, pela "frustração." Somos uns frustrados a propósito de tudo e de nada). Quase tudo é explicado através do medo, da cor da roupa à linguagem, das atitudes ao penteado, da marca do relógio à maneira de pegar nos talheres. É a banha-da-cobra intelectual do discurso feminino mais básico (digo feminino, e não feminista. O discurso que diz mal dos homens é feminino. As feministas dizem mal é das mulheres.)
Aparentemente, ter opinião sobre a estética feminina, ou mesmo sobre qualquer coisa feminina em geral, é fruto do medo. Só um medo profundo poderá explicar que eu não goste de ver calças demasiado descaídas nas mulheres (provavelmente, é o medo de lhes ver o rabo.) E só um pavor sem nome, avassalador e paralisante, fará com que eu lhes diga isso. Porque se eu fosse um indivíduo confiante, seguro de mim e, sobretudo, corajoso, estava mas era calado e nas tintas para as figuras que elas fazem.
Eu acho que as mulheres isto? Tás é com medo, pá. Eu acho que as mulheres aquilo? Ó pra ele borradinho. Eu penso de que as mulheres aqueloutro? Ai, lindinho, vai mas é para o colinho da mamã. Cresce mas é, faz-te homem. E já agora não te esqueças de arrumar as peúgas sujas, lavar a loiça, substituir o rolo de papel higiénico e baixar o tampo da sanita depois de a usares. E livra-te de nos olhares para o rabo, as pernas ou as maminhas: ou és um cobarde inseguro, ou um porco chauvinista, um machão básico que não sabe que a beleza interior é a que mais conta. Mas livra-te também de não olhares, porque senão és assim para o esquisito.
Ser homem, hoje, é difícil. Save the Males, e que se lixem as whales. Estamos à pega por tudo e por nada, enquanto elas gozam de um estatuto parecido com o das franquias – um período de carência durante o qual nada lhes pode ser imputado, e que está para durar. Às mulheres tudo é permitido: vejam a violência deste post da Rititi – a linguagem, a atitude, aquilo que nele se diz e aquilo que ele implica. Mas a nós, homens? Nem nada que se pareça. Imaginem só o que seria um texto masculino nos mesmos termos, sobre as mulheres que cagam sentenças sobre nós. Experimentem trocar-lhe o sexo (ou o género, desculpem) e vejam o resultado devastador: o pobre idiota, cobarde, machão, porco, chauvinista, reaccionário e provavelmente impotente que o escrevesse seria crucificado, assado em fogo lento, esfolado vivo ou, em alternativa, condenado a acompanhar à sapataria, durante uma tarde inteira, uma mulher a designar pela mesa do Santo Ofício.
Este double standard é o retorno do pêndulo, e a paga por séculos de opressão. Eu sei, eu sei. Merecemos. Agora somos presos por ter cão e por não ter. Temos culpa da chuva e do bom tempo. Somos uns seres desnorteados pela súbita revelação da superioridade física e moral do género que subvalorizámos, dominámos e escravizámos durante séculos. Vivemos acagaçados pela descoberta da liberdade feminina, da sua autodeterminação emocional, social, profissional e sexual. Vemos em cada par de mamas o aconchego materno, e também um temível Everest a conquistar simplesmente porque está lá, mas que nos matará na tentativa - e em cada vagina uma máquina trituradora que nos castrará para sempre.
Finalmente revelámo-nos como somos: uns seres toscos, grotescos e inacabados, temerosos, carentes de reconhecimento, só nos safando os que acabam por ser escolhidos por serem dignos de acompanhá-las – às Mulheres, Mães, Seres de luz que sobre nós derramam a graça da sua existência, e a bondade da sua condescendente preferência.
A esses é confiada a tarefa de serem os verdadeiros Homens – definição que cabe exclusivamente às mulheres, evidentemente, não sendo a inversa de todo verdadeira porque a nós nos falta em discernimento o que a elas lhes sobra em intuição, para não falar de legitimidade moral. A todos os outros, cabe a tarefa de mudar umas lâmpadas e estar calados, porque nada é de admitir a um género cuja principal ocupação e comprazimento espiritual é beber cerveja, ver futebol, apreciar o cu às gajas, dar traques,  coçar a genitália e mijar no tampo das sanitas. E que, além disso, ressona.
Sejamos sérios, Rititi. Medo? Todos temos medo – os homens das mulheres, as mulheres dos homens. Medo uns dos outros, e cada um de si próprio. Medo da sombra, medo do Sol, da Lua e das tempestades, medo de falhar, medo de morrer, até medo de viver. Temos medo de ter medo. E quem sabe se esse argumento recorrente sobre o medo masculino a propósito de tudo e nada, esse repescar de clichés psicanalíticos, ou psico sejam lá o que forem, esse discurso de “mulherzinha,” esse feminismo de almanaque que não esperava de si (mas não me admira nos comentários) esconda também (ou não) o medo que cada mulher sente por finalmente se achar dona do seu destino, livre, por sua conta e risco, num mundo de códigos e aparências que precisa de dominar a todo o custo para sobreviver. No fundo, é uma espécie de machismo ao contrário, um policiamento larvar dos comportamentos, uma barragem de artilharia dialética que aplaina o terreno em mais uma simples batalha da guerra dos sexos.
Seja isso ou não, estou-me um bocado nas tintas para tal guerra. Eu quero é gajas, e boas. Venham elas. E é verdade que tenho medo de uma coisa: que este texto faça com que logo não tenha sexo. Ou, pior ainda, não tenha jantar.

*O acordo ortográfico que fez cair os cc permite-me este espirituoso e inocente jeu de mots. Mas eu sou um porco, só uso o acordo quando me dá jeito.