sábado, 16 de outubro de 2010

A raça do Chile

Não conheço o Chile, embora gostasse muito de o conhecer. Por isso falo de ouvir dizer e de ler. Do Chile só conheci chilenos, entre eles alguns exilados que trabalhavam numa residência universitária em Paris no início dos anos 80 e que, em vez de atenderem ao balcão do bar, passavam o tempo ao telefone a combinar golpes de Estado.
O Chile distingue-se de todos os outros países do mundo porque quase não tem largura, só  comprimento. E sendo tão comprido, está lá perdido numa costa americana, com os Andes de um lado, o Pacífico de outro, desertos a norte e gelos a sul. É dos países mais isolados do mundo. Não admira que lhe pertença o pedaço de terra mais longe de qualquer outro, que é a ilha de Páscoa. Dá ideia que mesmo expandindo-se continua solitário.
Teve um ditador de cara, aspecto e prática típicos das mais caricatas ditaduras sul-americanas à general Tapioca (vide histórias do Tintin), mas brutal como a mais fria das realidades, e apoiado num dos exércitos mais "prussianos" do mundo. Foi mártir e heróico nos anos de brasa, laboratório social, exemplo, bandeira,  inspiração tanto para libertários como para Chicago boys. Tem nitratos, minérios, revolucionários, uma praça em Lisboa, terremotos medonhos. Tem excelente vinho, que ainda há pouco bebi. E teve uma história magnífica, esta dos mineiros.
Quando tudo começou, tive medo, confesso. Medo de que uma vez mais a realidade viesse estragar tudo - matando os mineiros, ou transformando o seu drama em mais um circo ódio-visual.
Mas nada disto aconteceu. Apesar de tudo, apesar de todos os aproveitamentos político-mediáticos, a história dos mineiros chilenos de San José foi uma história perfeita que me reconciliou um pouco com o género humano.
Primeiro, pela forma espantosa como eles se comportaram - organizando-se quando nada nem ninguém sabia deles, conservando a esperança, lutando da única maneira que podiam: mantendo-se homens na sua dignidade fundamental. E quando uma sonda lhes chegou, mostrando que alguém os procurava cá em cima, limitaram-se a dizer que estavam todos bem, e onde. Sem lamúrias nem pieguice.
Depois, pela pronta resposta dada, recorrendo a tudo quanto a tecnologia podia dar. A operação foi exemplar: rápida, eficaz, precisa. Sem querer bater demais no ceguinho, e assumindo alguma injustiça filha do desconsolo com o meu país, suspeito que a estas horas, em Portugal, ainda estaria uma comissão a acabar de se instalar nos seus novos gabinetes para começar a estudar uma solução para o assunto - acabando toda a gente por se esquecer, um mês mais tarde, que havia 33 desgraçados soterrados lá em baixo.
Mas o Chile é um país civilizado e organizado, e tem orgulho em sê-lo. 
Eu confesso que fiquei espantado quando comecei a ver saír os mineiros. Esperava ver emergir seres esquálidos, esgaseados, semi-mortos de fadiga e desespero, e vejo sair cavalheiros bem barbeados, de cabelo cortado, nutridos e em forma, como se saíssem de um spa, e quase tão calmos como quem chega de um fim de semana no Algarve - embora admita que os óculos escuros tenham ajudado a esta imagem.
Primeiro senti-me defraudado: como toda a gente, tinha-me preparado para me apiedar. E nenhum daqueles homens me parecia digno de piedade, antes pelo contrário. Para quem literalmente renascia, parido pelas entranhas da terra numa espécie de cesariana ou laparotomia geológica, estavam com demasiado bom aspecto.
Mas depois percebi a grandeza de tudo aquilo. Aqueles homens nunca quiseram inspirar piedade, e não seria agora que o iam querer. Talvez por machismo sul-americano, talvez por orgulho na sua condição de mineiros, provavelmente por tudo isto e por muito mais, fizeram questão de sair do seu inferno com o desplante de um toureiro que não descura a pose mesmo depois de ser colhido, e tenta fazer de conta que nada lhe aconteceu. Aqueles 33 homens, que no escuro de um buraco a 700 metros abaixo da terra, rodeados por milhões de toneladas de rocha, mantiveram a sua condição humana - a sua organização,  as suas rotinas, as suas hierarquias, a sua coragem e dignidade individuais, o seu sangue-frio perante a morte sempre iminente - quiseram manter tudo isso quando subiram e se mostraram, ao mundo e aos que, sem hesitar ou perder um segundo, os ajudaram a sair acreditando sempre que o conseguiriam fazer. Sem choros, sem lamentos, sem remoques, sem acusações vãs. Apenas com uma frase e um voto: "Que isto nunca mais aconteça."
Foi uma história exemplar. Aconteça o que acontecer a seguir, senti-me bem com os homens, nestes dias de desencanto. E acredito que aqueles 33 mineiros estejam neste momento a pensar na sorte que tiveram em tudo se ter passado no Chile. Não é pouca coisa para se dizer de um país.

quinta-feira, 14 de outubro de 2010

Intermezzo

São Paulo, Outubro
As cidades  têm correntes, como os oceanos. A maior parte é invisível, e só as percebemos quando estamos nelas e sentimos, a princípio levemente, que estamos a ser levados. Sem sabermos porquê e como, somos arrastados ao longo de leitos que pressentimos não serem da nossa escolha. Uma cidade grande é um corpo que nos leva. E assim acabamos numa rua em que não pensámos, a beber encostados a um balcão que não preferimos. Algo nos chamou para ali, mas nunca saberemos o que foi.

domingo, 10 de outubro de 2010

A casa do sol nascente

Domingo, 7 e 45. 
A nossa casa é onde gostamos de sentir o cheiro das manhãs.