sexta-feira, 12 de novembro de 2010

Coisamailinda

Para as bandas de Castro Verde

No Alentejo, a terra ondeia como o corpo de uma mulher. Ou estende-se como um tapete vivo. Os homens são como as árvores: ora juntos ora dispersos, mas iguais, em pé contra todos os ventos, e de casca dura. Ficam ali, quietos, olhando o horizonte, sabendo que no dia em que conseguirem tocá-lo estará perto o fim da jornada. Por isso não têm pressa.
No Alentejo, os deuses não têm píncaros de onde observar os homens. Por isso, têm que se misturar com eles, comer e beber das mesmas malgas, palmilhar os mesmos caminhos. Também por isso as igrejas são belas, mas têm pouca gente. Os homens confiam mais em si próprios, e uns nos outros, do que num poder qualquer.
No Alentejo, vê-se até muito longe, e o longe é perto. A terra muda de cor, cobre-se de penugem, fica seca, estala ou canta sob a água. E os caminhos nunca acabam.

quinta-feira, 11 de novembro de 2010

Quem tem medo do andar de cima?

Desde que novos vizinhos se mudaram há uns meses para o andar por cima do meu na Grande Alface, o lugar deixou de ser sossegado. São jovens e recebem muitos amigos. Aos fins de semana é uma gritaria de conversas lá em cima, e música. Nos outros dias, são geralmente sons cavos de home cinema. De manhã cedo, todas as manhãs, ela saltita pela casa de saltos altos.
Uma destas manhãs, saltitou mais do que o costume, e de forma mais nervosa. Julgo saber porque foi: é que na véspera, em vez de risos, gritos, ou filmes, houve só gritos. Entre as onze e a uma da manhã, mais coisa menos coisa, ela não se calou, gritando-lhe raivas, revoltas, amarguras, desilusões, eu sei lá. Não percebi uma palavra. Mas foi um desandar do que lhe ia dentro. 
Quanto a ele, não sei. Certamente interagiu com ela, mas nunca o ouvi, nem geralmente lhe oiço os passos de manhã. Provavelmente usa solas de borracha. Provavelmente, ouve e cala, ou fala num registo menos estridente. Não sei. Mas ela gritou, arrepelou-se, passou das marcas, chorou alto, deitou tudo cá para fora.
Foi como se muita coisa precisasse de ser vociferada. Há momentos assim, como as grandes tempestades em que tudo transborda por causa de chuvas e ventos que não se sabe de onde vieram. Nessas alturas também as palavras caem do céu arrastadas por feridas que nem sabemos que tínhamos, ou que se calhar nos infligimos naquele mesmo momento, em tempo real.
Não sei se tudo ficou dito. Não sei se vai haver mais gritaria. Por mim é indiferente, pois entre a raiva e os amigos, entre os ajustes de contas e o home cinema,  que venha o diabo e escolha o que menos se oiça. As discussões domésticas, ao menos, têm uma pulsão dramática que suaviza o incómodo.  Como as janelas iluminadas do prédio em frente, também apelam ao nosso lado voyeur
Edward Albee escreveu o que até agora é certamente a mais espantosa cena conjugal que dramaturgo algum jamais concebeu. E eu, no devido tempo, apaixonei-me por Quem Tem Medo de Virginia Woolf? Consumiu-me no cinema a paixão fabulosa de Richard Burton e Elisabeth Taylor, na pele dos dois heróis de Albee que são George e Martha, nessa longa noite em que despedaçam tudo o que de mais profundo pode haver entre um homem e uma mulher para, sobre a paisagem devastada, quando sobre ela se ergue a tímida aurora de um novo dia, se amarem com a infinita ternura dos que sabem que vão continuar juntos. Encantou-me, em Lisboa, a excelente performance em palco de Jacinto Ramos e Glória de Matos - com Mário Pereira e Maria do Céu Guerra no jovem casal convidado para aquele fim de noite de copos e raiva, como inadvertidas mas necessárias testemunhas, a fim de que tudo fosse inelutável.
Sim, as paixões são plásticas, e fascinantes. No fundo, estou curioso, confesso, de saber o que se vai seguir no andar de cima. A cidade grande tem destas coisas: impõe-nos a vida alheia de uma forma perversa. E anónima. E superficial. É que eu nunca vi os meus vizinhos de cima. Ou, se os vi, não sei que são eles. A cidade são vidas que se alinham paralelas, juntas por força do espaço e, na maior parte das vezes, pouco mais do que isso.
Como já se passaram uns dias, penso que a tensão acalmou. Oxalá. Mas nem o home cinema nem os amigos se têm ouvido. Só os saltos dela. Que vida será a deles, depois da tempestade? O que se terá partido naquela noite? O que terão descoberto? Por mim, gosto de finais felizes, digo já.

quarta-feira, 10 de novembro de 2010

Prova de vida

Num blogue que se preze, o respectivo titular deve pôr o seu fofo bichinho de estimação, seguindo a lógica de que um blogue é essencialmente um exercício de projeccção do "eu" na realidade virtual. Portanto, há que pontuá-lo de sinais conducentes a deixar impressas nessa mesma realidade (ainda que de forma aleatória, irregular, não-organizada e acentuadamente dispersa) marcas que de certa forma humanizem o autor e permitam aos muitos milhares de pessoas que o seguem e eventualmente idolatram identificar-se ainda mais com a sua sensibilidade e Weltanschauung.
É  por isto, mas sobretudo porque há muito tempo que aqui não venho e quero informar que estou bem muito obrigado, que hoje aqui ponho a minha gata.