sexta-feira, 3 de dezembro de 2010

Tempo de vésperas

Winston Churchill dizia que a Rússia (na altura, a URSS) era um segredo envolto num enigma dentro de um mistério. Nunca se sabia o que lá ia dentro, nem o que de lá sairia. Mas uma coisa é certa: pode haver lá de tudo menos "democracia" ou "estado de direito," que nunca foram coisas muito russas, nem era agora que passariam a ser. O segredo não esconde o facto de não haver milagres. E milagre seria que um homem estruturalmente autoritário e russo como Vladimir Putin, formado nessa escola de virtudes democráticas que era o KGB, e que agarrou o poder com as duas mãos, o largasse por meras questões técnicas.
À Rússia fazia falta um campeonato do mundo de futebol, que lhe foi dado agora para organizar. Se me tivesse dado ao trabalho de o escrever aqui, teria ficado exarado que eu já sabia que isso ia acontecer, continuando a não ser bruxo. O processo de aproximação ao Ocidente ilustrado na cimeira da NATO em Lisboa precisava disso, como vai precisar de mais coisas. O gás russo ainda é muito necessário, a emergência da China exige  um contrapeso geostratégico urgente.
Daqui para a frente, só mesmo por força maior é que não vamos andar aos beijos na boca com a Rússia, enquanto cortejamos a China. Nenhum deles flor que se cheire em termos de regime político. E que se dane a defesa do estado de direito, da democracia, dos direitos humanos, daquela que José Cutileiro definiu há tempos como a mais decente forma de se viver em sociedade que até hoje foi inventada. Depois pensa-se nisso, até porque há uma crise economico-financeira de proporções históricas que não vai lá com paninhos quentes, que nos atormenta enquanto os colossos extra-ocidentais se perfilam no horizonte. Para o desenvolvimento dessa forma de viver está a chegar um interlúdio. O programa seguirá dentro de momentos. Se seguir.

quarta-feira, 1 de dezembro de 2010

Os meus livros

Riobaldo ama Diadorim. Não é que Riobaldo goste de homens, é jagunço como Diadorim, cabra macho. Mas não teve remédio, há coisas que não se percebem mas têm que se aceitar, e Riobaldo apaixonou-se pela beleza de Diadorim, enquanto deambulavam nas tropelias da vida e da morte pelos "sertões das gerais," sul da Bahia e norte de Minas. Riobaldo gostaria de sossegar da jagunçagem, assentar ao lado de Diadorim, seu amor platónico. Mas este não pára enquanto não vingar a morte do pai. Nesta história há tudo: drama, enganos, dívidas de sangue, pactos com o Diabo, recontros. E morte. E o sertão, que "está em toda a parte." E há a linguagem com que Guimarães Rosa a escreveu, um português à solta que não existe na natureza mas foi trabalhado palavra a palavra em cima dos falares sertanejos. 
Não é que eu tenha lido um dos livros da minha vida. Não o li todo. "Grande Sertão: Veredas" é ilegível de fio a pavio, porque cada página é um esforço de ultrapassar o fascínio pela forma para chegar ao conteúdo. Ao fim de dez estamos felizes mas arrasados - e elas são para cima de quinhentas. Não li o livro todo, mas beberrico páginas avulsas de vez em quando, como agora voltei a fazer e por isso aqui digo, para saborear coisas como estas que abro ao calhas:

Do que podia suceder. Vi homem despencando demais, os cavalos patatrás! Dada a desordem. Só cavalo sozinho podia fugir, mas os homens no chão, no cata cata. Ao que, a gente atirava! Se morria, se matava, matava? Os cavalos, não. Mas teve um, veio, à de se doidar, se espinoteava, o cavaleiro não aguentava na rédea, chegaram até perto de nós, aí todos os dois morreram de repente. Meu senhor: tudo numa estraga extraordinária.
(...)
Daí, deu um sutil trovão. Trovejou-se, outro. As tanajuras revoavam. Bateu o primeiro toró de chuva. Cortamos paus, folhagem de coqueiros, aumentamos o rancho. E vieram uns campeiros, rever o gado da Tapera Nhã, no renovame, levaram as novilhas em quadra de produzir. Esses eram homens tão simples, pensaram que a gente estava garimpando ouro. Os dias de chover cheio foram se emendando. Tudo igual - ás vezes é uma sem-gracez. Mas não se deve de tentar o tempo. As garças é que se praziam de gritar, o garcejo delas, e o socó-boi range cincerros, e o socó latindo sucinto. Aí pelo mato das pindaíbas avante, tudo era um sapal. Coquexavam. De tão bobas tristezas, a gente se ria, no friinho de entrechuvas.

Já lhe chamaram "livro gay", mas "Grande Sertão: Veredas" é tão gay como "Morte em Veneza". Está muito para além de coisa tão simples. Não é um "Brokeback Mountain" avant la lettre (é de 1956) e sertanejo. É o que cada um quiser que ele seja, coisa que define as grandes obras. Para mim, é esta delícia de invenção no falar e dizer, e é também a sede de uma das mais belas e comoventes cenas de amor de toda a ficção, quando Diadorim é finalmente morto numa refrega, jaz ensanguentado e Riobaldo, louco de dor, lhe descobre enfim o segredo:

Sufoquei, numa estrangulação de dó. Constante o que a Mulher disse: carecia de se lavar e vestir o corpo. Piedade, como que ela mesma, embebendo toalha, limpou as faces de Diadorim, casca de tão grosso sangue, repisado. E a beleza dele permanecia, só permanecia, mais impossivelmente. Mesmo como jazendo assim, nesse pó de palidez, feito a coisa e máscara, sem gota nenhuma. Os olhos dele ficados para a gente ver. A cara economizada, a boca secada. Os cabelos com marca de duráveis... Não escrevo, não falo! - para assim não ser: não foi, não é, não fica sendo! Diadorim...
Eu dizendo que a Mulher ia lavar o corpo dele. Ela rezava rezas da Bahia. Mandou todo o mundo sair. Eu fiquei. E a Mulher abanou brandamente a cabeça, consoante deu um suspiro simples. Ela me mal-entendia. Não me mostrou de propósito o corpo. E disse...
Diadorim - nu de tudo. E ela disse:
- "A Deus dada. Pobrezinha..."
E disse. Eu conheci! Como em todo o tempo antes eu não contei ao senhor - e mercê peço: - mas para o senhor divulgar comigo, a par, justo o travo de tanto segredo, sabendo somente no átimo em que eu também só soube... Que Diadorim era o corpo de uma mulher, moça perfeita... Estarreci. A dor não pode mais do que a surpresa. A coice d'arma, da coronha...
Ela era. Tal que assim se desencantava, num encanto tão terrível; e levantei a mão para me benzer - mas com ela tapei foi um soluçar, e enxuguei as lágrimas maiores. Uivei. Diadorim! Diadorim era uma mulher. Diadorim era mulher como o sol não acende a água do rio Urucuia, como eu solucei meu desespero.
O senhor não repare. Demore, que eu conto. A vida da gente nunca tem tempo real.
Eu estendi as mãos para tocar aquele corpo, e estremeci, retirando as mãos para trás, incendiável: abaixei meus olhos. E a Mulher estendeu a toalha, recobrindo as partes. Mas aqueles olhos eu beijei, e as faces, a boca. Adivinhava os cabelos. Cabelos, que cortou com tesoura de prata... Cabelos, que no só ser, haviam de dar para baixo da cintura... E eu não sabia por que nome chamar; eu exclamei, me doendo:
- "Meu amor!..."