segunda-feira, 24 de janeiro de 2011

Intermezzo

        Região de Ourique
A toponímia portuguesa tem uma poética que não raro embala o caminhante e lhe indica caminhos verbalizando a realidade. Quer dizer: o país pode ir para Sarilhos Grandes ou para a Buraca, mas às vezes é melhor ser mais explícito. E desde que seja em grande, não interessa onde seja.                                       
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Eu gostava da ideia de ter um poeta como presidente da República. A relevância do cargo é semelhante à da poesia - é uma necessidade supérflua. Se calhar podíamos viver sem ambos, mas não seria lá grande vida. Preferia ter um poeta a ter um contabilista: este calhava mais para primeiro-ministro, que é uma coisa mais terra-a-terra. Um presidente é, como eu já disse aqui hà atrasado, uma inutilidade-em-chefe. Por isso não precisa de saber fazer contas, era preferível que soubesse fazer versos.
Infelizmente, o poeta em cena não é lá grande inspiração para mim, pese o seu estro - as trovas do vento que passa, o canto e as armas são, dentro do género menor, coisas que já me tocaram e tocam ainda. Mas nunca como agora é evidente que uma coisa são as obras, outra, muito diferente, o seu autor. Este devia afastar-se daquelas assim que as termina, e declarar que já não tem nada a ver com elas. Uma vez produzidas, as obras de arte pertencem mais a todos nós do que a quem as fez, porque os autores são demasiado humanos para poderem ombrear com o que o seu espírito produziu. O Manuel Alegre que escreveu a trova do vento que passa não é este resmungão antipático e sobranceiro.
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Tristemente, quem ganhou foi o contabilista. É talvez sinal dos tempos, que estão mais para as formigas do que para as cigarras. Seja pelos nossos pecados.
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Vendo bem: os poetas não devem ser presidentes. Os presidentes, esses sim, é que devem ser poetas. Não é a arte que deve gerar poder, mas é o poder que pode, e deve, gerar arte.
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"Como todos os outros tunisinos, também eu vivi sob o medo," disse Mohammed Gannouchi. A criatura é primeiro-ministro há doze anos, governou o regime do medo, e ainda não saíu. Há-de sair, por mais que tente virar a casaca e cavalgar a revolução. Mas, por mim, já ganhou o Óscar da lata e da sem-vergonha. Pelos vistos, o primeiro-ministro da Tunísia era uma vítima, que vivia num temor constante de... de quê? Melhor que isto só José Sócrates dizer, um dia, que também ele estava contra o Governo. Nem sequer me admirava muito. Se a chefia do Estado se disputa entre um contabilista e um poeta, a do Governo está nas mãos de um vendedor de carros usados (ou de computadores baratos), que me diz o que acha que eu gostaria de ouvir. Cada um à sua maneira, na Tunísia como em Portugal, todos são sobreviventes.
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Mas os tempos vão estranhos, gente. Li agora que o Japão vai enviar tropas para ajudar a matar milhares de galináceos no sul do país, a fim de evitar a alastramento da gripe aviária. Quando um país nobre e milenar usa as suas forças militares para matar frangos e galinhas, eu acho que precisamos meditar profundamente no mundo que estamos a construir. É o que eu vou fazer. Até logo.