Eu juro que não sabia que havia uma coisa chamada “galão alentejano.” Julgava que o vulgar galão era apenas isso: uma coisa vulgar, que há em todo o lado. Não o sabia típico do Alentejo, nem vejo como o possa ser: café com leite é café com leite, seja aqui, seja na Mongólia. Suspeito fortemente que se trata de uma engenhosa construção eco-cultural, semelhante à que fez do queijo flamengo uma coisa típica de Ponte de Lima, provavelmente já lá produzida quando os barões de Entre Douro e Minho ainda nem tinham inventado um país, quanto mais a sandes mista.
Seja como for, isto alegra e dá esperança. É um sinal de espírito empreendedor e de imaginação.
O futuro do Alentejo está no turismo, e fala-se de fazer dele uma espécie de “no
Para isso, o Alentejo tem quase tudo o que a Toscânia tem: o clima, paisagens, gastronomia. Só perde na tradição histórica e cultural, mas nesse aspecto qualquer outra região europeia perde. É verdade que tem cidades-museu, conventos e castelos, uma monumentalidade rica – mas comparar isso com Florença, Siena, Lucca, Pisa e tutti quanti, no que elas são hoje e no que foram, não é justo. A Toscânia conhece o turismo há séculos – foi um dos locais em que ele se inventou, quando a educação de qualquer jovem das elites norte-europeias incluía obrigatoriamente o Grand Tour pelas terras da Antiguidade clássica e do Renascimento.
O que fazer então? É simples: se há história conta-se, se não há, inventa-se. Sejamos realistas: grande parte do que hoje temos por tradições seculares são construções recentes, e algumas delas até deliberadas. A Escócia só conheceu o kilt no século XVIII, o que não impediu Mel Gibson de os vestir aos indomáveis combatentes medievais de Braveheart – um anacronismo de vários séculos em que ninguém repara, porque o kilt está consagrado hoje como eterno atavio dos escoceses.
A História não pode ser inventada. Mas pode ser encenada – que é o que acontece a muita da que o touriste de ontem e o turista de hoje percebe em lugares como a Toscânia. Esta tem um passado prodigioso, que fascina tanto como as paisagens. Pelo Alentejo não passou nem metade da História que por lá passou – mas a que existe pode ser reencenada e valorizada. O Alentejo tem o rasto de dramas e tragédias, tem cenários de paixões, tem campos de batalha, tem locais místicos, tem memórias de sangue, de luta e de trabalho. Tem tradições.
E o resto do país também. O que e preciso é saber “vendê-las.” Em Helsínquia, levaram-me um dia numa volta turística cuja metade era passada numa igreja escavada na rocha: era a única coisa interessante que havia na cidade, e os abnegados finlandeses fizeram tudo para eu a achar realmente interessante.
É aqui que entra, humilde e determinado, o galão alentejano. Se o seu caminho for firme e bem conduzido, acredito que dentro de anos o café com leite bem quentinho seja tão alentejano como italiana é a pizza - palavra que há menos de dois séculos pouca gente em Itália conhecia, e que mesmo assim começou por designar um doce.
Não se trata de fazer batota, mas de reinventar. Se é possível fazer de uma coisa tão simples e vulgar um produto típico da região, até onde se poderá ir com a açorda, o campo místico de Ourique, os cantares de mineiros, cardadores e ceifeiras, a campina a perder de vista, os torreões da raia virados a Castela, as migas, os amores pungentes de Mariana Alcoforado freirinha de Beja, os conventos, os seus mistérios e os seus doces?
Foi por tudo isto que comprei aquela embalagem. Mas não compro mais. Tudo tem um limite. Ainda sou capaz de juntar leite ao café cá em casa.
Aqui como lá em cima: Arredores de Florença ou Siena? Não, senhores. De Aljustrel