Há tempos, num rasgo de modernidade avassalador, acedeu a comprar um computador portátil. “É uma máquina de escrever mais sofisticada,” disse. A intenção era usá-lo como tal – escrevia, imprimia (com a ajuda do filho para lhe tratar dos pormenores técnicos) e pronto. De net, nem falar. “Tenho os meus livros.”
Mas esta cedência ao Zeitgeist ficou-se pela compra. Nem escrita processada, nem net. Nem grego clássico. O computador continua intocado sobre uma mesinha, amorosamente coberto com um pano escocês. O Chico continua a escrever à máquina.
Esta é a tradicional introdução que serve de base e pretexto para a parte ensaística e enunciação de tese, que é a seguinte:
Antigamente, as pessoas morriam num mundo que não era fundamentalmente muito diferente daquele em que tinham nascido. Este “antigamente” é até à segunda metade do século XX, altura em que a aceleração do progresso as fazia já assistir a uma ou duas mutações tecnológicas essenciais na vida, se tanto. Hoje assistem a uma catadupa delas. As coisas mudam drasticamente no espaço de uma vida, e cada vez mais depressa. O mundo de uma criatura de 40 anos mudou muito desde que ele nasceu, e até desde que ele chegou aos 20 anos, à idade adulta. Quem tenha hoje 60 anos já viu mais mudanças do que as que o mundo tinha visto em vários séculos.
Isso submete-nos a uma tensão constante para nos adaptarmos à mudança, para nos mantermos actualizados. Tecnologica, social e mesmo culturalmente, chegámos à Era do Coelho ("Vai ser tão bom, não foi?"). Não admira que estejamos cada vez mais ansiosos.
Até há pouco, os velhos podiam continuar ser os grandes reservatórios de experiência. Mesmo que tecnologicamente ultrapassados, o seu capital era tão vasto, e ainda aplicável, que podiam chegar-se aos mais novos e ensinar-lhes muita coisa.Mas o que tem alguém de setenta e tal, oitenta anos, a ensinar aos putos? Nada que o puto queira saber. As velhas artes do desenrascanço quotidiano já não servem, porque nada é como era - nem as casas, nem as máquinas, nem nada. Nem os valores morais ou cívicos, nem as posturas éticas - tudo muda vertiginosamente. Os velhos que se lixem.
Quem se lembra da vida antes do multibanco, do telemóvel, da net? Muita gente, porque não foi assim há tanto tempo como isso. Mas quem se lembra tem as mesmas dificuldades que os outros em imaginar como ela era – e como era possível vivê-la. Porque as mutações tecnológicas não são meras adições à nossa vida, facilitando-a: passam a fazer parte integrante dela. Vivemos dezenas de milhares de anos sem telemóvel, sem multibanco, sem net - mas hoje é impossível viver sem essas coisas, porque a vida as integrou e fez delas imprescindíveis. A sociedade não admite que estejamos incomunicáveis, que não tenhamos acesso permanente ao banco, que não estejamos online. A tecnologia ajuda-nos, mas pagamos o preço de ficarmos amarrados a ela. Cada vez mais perdemos o direito de não existir senão para nós próprios.
É por isso, e não por embirração, que vou resistindo aos twitters e facebooks desta vida. Sei que para muita gente sou o que o Chico é para mim, e que me arrisco a perder muita coisa boa. Não é que sonhe sequer em aprender grego antigo, chega-me o Platão traduzido. E não sou contra as coisas novas - afinal, estou a fazer um blogue, não estou? Mas quero gozar sempre, até à última, a liberdade de não ficar agarrado às doçuras do progresso. É um exercício. Ainda hoje eu, que uso telemóve há 16 anos, o desligo ou não atendo quando me apetece. E farto-me de me esquecer dele por todo o lado sem angústias de maior. Como diriam no Jugular, lucky me.