quinta-feira, 13 de maio de 2010

Em que o Autor fala da Fé, de tê-la e de não tê-la

O mistério da Fé é para mim quase tão opaco como os relatórios do INE quando falam da "inclusão das despesas de consumo final das administrações públicas implícitas no último procedimento dos défices excessivos". Não a simples fé entendida como a crença em algo de transcendente, porque essa também eu posso entender. Aceito, e até creio num princípio criador, em algo que (para simplificar os termos) tenha disparado o Big Bang. Mas um Deus moral, que me governe e sancione, que influa na minha vida, é-me mais duvidoso - embora não o negue rotundamente, que sei eu?  O simples olhar em redor, para o que há num mundo onde não consigo divisar justiça ou bondade imanentes mas mero somatório de acasos, me faz duvidar de algo mais que um princípio que lançou os dados, mas não tem nada a ver com o desenrolar da jogada e o seu desfecho. Dizem-me que a Fé é precisamente o acreditar que nesse caos aparente há um sentido. Mas porque será assim? Porque é que tal sentido nunca nos é revelado? Porque brincará assim connosco um Deus bom? Que Deus permite Auschwitz, o tsunami de 2006, o Haiti, o sofrimento por vezes lancinante e sem remédio daqueles que amamos e que o amam a ele? Não será essa crença num desígnio oculto, afinal, a forma que inventámos para nos consolar do facto intolerável de não haver sentido nenhum na vida e no que ela nos faz?
Mais ainda me intriga a fé num Deus ainda mais preciso, como o das religiões. Porque razão será verdadeiro o Deus dos católicos e não o dos judeus ou muçulmanos? Porque dependerá a nossa salvação, de um certo número de rituais envolvendo gestos, discursos, tipos de vestuário, adereços, objectos vários, posturas corporais? Perante a vastidão estarrecedora do Universo, já de si um mistério que nunca decifraremos por completo, que Deus é este que se preocupa com pormenores como o que comemos à sexta-feira? Que Deus é este que se nos revela, ou não se revela de todo, conforme o sítio em que estamos? A nossa religião é uma questão circunstancial, e sobretudo geográfica: a minha tia Joaquina, que não perdia uma missa, seria muçulmana se por acaso tivesse nascido mais para sul, ou protestante, mais para norte.
E se Deus é o que as religiões dizem, como se terá ele revelado aos seres de outros planetas (porque os há. Eu não acredito que só haja vida aqui neste mísero astro perdido num cantinho irrelevante do Universo.) O seu Filho terá sido crucificado em todos eles? Terá havido um Maomé em Alfa do Centauro, a quem o arcanjo S. Gabriel ditou um Alcorão? Houve lá um Moisés abrindo mares, conduzindo povos para terras prometidas? Como encaixar todas as particularidades de cada religião na infinita diversidade da Criação?

      S. Pedro vista de Trastevere

Estive a reler crónicas de João Bénard da Costa. Um homem culto e inteligente, e católico. Um entre milhões de católicos cultos e inteligentes - um dos quais até é Papa e está cá hoje. Como consegue uma pessoa assim conciliar as duas coisas? Como se aguenta a razão e a inteligência diante das enormes incongruências lógicas que subjazem a qualquer religião organizada? Há uma resposta para isto, certamente. Mas é uma resposta - "é uma questão de Fé" - que implica a aceitação prévia daquilo que quer justificar. Sem Fé, não podemos entender a Fé. Não me lembro como é que a filosofia chama a um imbróglio destes, se é que chama alguma coisa. Mas não é importante.
Explicar a existência de Fé acaba por ser bastante menos complexo do que justificar a ausência dela. A Fé é simples e justifica-se a si própria; eu poderia encher páginas infinitas de razões para não a ter, que não chegariam para a minha razão suplantar a dos que a têm. E por falar nisso, eu estava aqui às voltas para ver se me aguentava e não desancava nos fanáticos do ateísmo que agora estão tão na moda como a palavra "alavancar." 
Quem me conhece, e alguns dos muitos milhares de seres esclarecidos que me lêm neste magnífico blogue, sabe que embirro com modas. Mas mais do que isso, embirro com fanatismos. Na minha vida só fui fanático de uma coisa, que era o Sporting. Era novito e a coisa passou-me, como o sarampo. Para se ser fanático é preciso ser-se inocente, e a inocência é, das coisas que se vão perdendo com a idade, a única para a qual não há remédios ou próteses.
Em qualquer movimento, há gente que não sabe onde e quando deve parar. E eu começo a estar farto de muita gente armada em Hitchens e Dawkins de trazer por Telheiras que dispara sobre tudo o que cheire a incenso, numa fúria demasiado acesa para ser sustentada. Lembra-me o jornalista do Eça (cito de memória): "Tudo o que cheire a padralhada, é dar para baixo. Se há escândalo conta-se, se não há, inventa-se." Descobriram um novo brinquedo intelectual, e vá de o espremer. Há gente que cai na pura palermice, e há os mais sérios e estruturados. Poucos resistem ao exagero. Ao combaterem a religião com tanto fervor, estão a despertar gente para ela: algo que motiva tanto ódio deve afinal ter qualquer coisa de bom. Estão a fazer mais por aquilo que querem contrariar do que séculos de proselitismo. São ateus, graças a Deus.
Por mim, encantado da vida. Não tenho nada contra a religião, apenas contra alguns dos actos dos homens cometidos em seu nome. De resto, invejo quem tem fé. Se um dia ela me chegar, não o lamentarei.

terça-feira, 11 de maio de 2010

De outra manhã no Alfa


Por alturas de Santarém, eu já estou francamente a par da vida amorosa da senhora que, junto da janela oposta à minha, a debate ao telemóvel com alguém que se adivinha corresponder à descrição de "uma amiga." Confesso uma certa pena do Horácio que partilha tal vida. A avaliar pelas confidências, o infeliz está no limiar do despedimento com justa causa. E creio mesmo - não vou jurá-lo, mas o discurso dela contém alusões implícitas - que a sua substituição já tem vindo a ser testada com recurso mão-de-obra eventual.
O sujeito ao lado dela dorme tão ostensivamente que cheguei a julgar que tomara uma pastilha de cianeto só para não a ouvir mais. Eu estou um pouco mais longe e mesmo assim a voz da mulher incomoda-me, até porque se vai entusiasmando com a conversa enquanto folheia maquinalmente uma revista do Correio da Manhã.
Nos televisores de bordo, Pedro Abrunhosa, com uns óculos escuros enormes que claramente o impedem de ver onde se meteu, é entrevistado por uma rapariga da qual me escapa o nome mas que julgo já ter sido namorada de vários futebolistas. Eu sei que esta referência se aplica a cerca de 2 536 raparigas em condições de entrevistarem Pedro Abrunhosa. Fora as outras. Mas é o melhor que se arranja.

Acontece que eu, geralmente, não estou interessado nas vidas de quem por simples acaso viaja no mesmo comboio que eu. Não é que não possam ser interessantes, de grande cunho humano, e até espiritualmente inspiradoras. Mas gosto de ser eu a escolher as que eventualmente me interesse conhecer.
O problema é que há pessoas – sempre houve – para quem a explanação da sua vida privada em público é essencial ao equilíbrio psicológico. São as que falam alto onde quer que estejam, olhando disfarçadamente em volta para verem o efeito que a coisa provoca. 
O feito é geralmente condicionado pelos interlocutores directos disponíveis, isto é, precisam de pelo menos uma pessoa com quem falar. Mas o telemóvel veio dar-lhes uma base de apoio quase ilimitada. Basta-lhes construírem uma lista de contactos abundante e complacente e não lhes faltam recursos, mesmo que estejam sozinhos. Assim podem expor diante dos incautos circunstantes uma vida social intensa. E também uma actividade profissional dinâmica: a avaliar pelas conversas, toda a gente é patrão, tem secretária, e uma agenda de 50 reuniões diárias.
Reflexão do dia: o direito à privacidade não está só em causa quando outros violam a nossa intimidade, mas também quando nos impõem a deles.
Nos écrãs, Eládio Clímaco visita uma feira algures dentro da nossa Zona Económica Exclusiva, prova figos, e cheira uma banana.

Toca o meu próprio telemóvel: é um número não identificado. Já sei que é alguém que me quer oferecer um cartão de crédito, fazer um inquérito ou vender uma assinatura. Até a  Proteste, Santo Deus, já me telefonou para me tentar convencer a ser sócio. Agora a quem é que eu me queixo das empresas que me chateiam pelo telefone? 
Não atendo. Se o fizer, terei que mandar o desgraçado do lado de lá para locais nefandos, e isso custa-me: certamente, é alguém a ganhar uma miséria ou uma simples comissão que a minha recusa lhe nega. Além disso, não o vou fazer numa carruagem do Alfa cheia de gente. Mandei vir até agora, não vou fazer o mesmo que a mim próprio chateia. Desligo ostensivamente o aparelho, num gesto que só pode ser classificado como magistério de influência. Nós, as elites bem formadas, os bons exemplos sociais, sei lá, temos responsabilidades.
Eládio Clímaco fala com Rui Reininho, numa conversa entremeada de imagens do Porto. Era inevitável. As pessoas do Porto têm uma característica única, inexistente em qualquer outra pessoa, e que nunca as abandona: são do Porto.

Até chegar a Coimbra, a senhora do telemóvel já atendeu 5 chamadas e fez outras tantas, actividade que esgotou a paciência a dois interlocutores e a bateria a três. Resumindo: a criatura não se calou um segundo que fosse. O passageiro do lado continua inanimado. Mas eis que as condições ambientes se agravam de forma considerável: uma senhora, uns quatro lugares à frente, atende a filha no telemóvel e passa a descrever-lhe os pormenores de uma colonoscopia que felizmente correu bem. Depois dá cotoveladas na velhinha ao seu lado e passa-lhe o aparelho: "Toma, fala com a tua neta." A velhinha olha para o telemóvel, coloca-o no ouvido e solta um berro agudo: "Ah, 'nha filha, atão como vais?" Toda a carruagem estremece. A do lado sacode-a: "Chiu, fala baixinho, que ela ouve bem." Palavras sensatas. 
Eládio Clímaco bebe copos de vinho com o cantor Vitorino. 

O rapaz no banco de trás do meu informa a família, e a mim próprio, de que estamos a sair de Aveiro e que daí a 20 minutos estamos no Porto. A senhora do lado de lá folheia a revista do Correio da Manhã com a mão esquerda enquanto com a direita dedilha SMS's. O passageiro do lado acorda sobressaltado com o silêncio. Eládio Clímaco é transportado ao colo por dois elementos de um grupo etnográfico de Trás-os-Montes.