sábado, 10 de julho de 2010

Numa sociedade perfeita, aquela cagada ali à direita nunca existiria











Numa sociedade ligeiramente menos imperfeita que a nossa, os seus autores estariam, no mínimo, em liberdade condicional, proibidos de fazer fosse o que fosse enquanto o tribunal decidia entre condená-los a desmontar aquilo com os dentes ou a enviá-los fazer casas para o raio que os partisse bem longe daqui.
Eu sei que naquele lugar existia, desde os idos de sessenta, um outro tijolo sem graça, que era o hotel Estoril-Sol.  Mas se era para fazerem no seu lugar esta coisa ainda mais medonha e desmesurada, claramente inspirada num amontoado de grades de cerveja à porta do armazém de um supermercado, mais valia que o tivessem deixado lá ficar - ao menos já estávamos habituados.

Claro que nos vamos habituar também a esta. Mas, até lá, não me conformo por terem estragado ainda mais a vista da minha terra (sim, eu nasci em Cascais, porquê? Tentem não me cansar muito com piadas sobre as tias, poupem-me a banalidades). Esta ainda é uma das mais belas baías do Mundo. E vai continuar a ser, apesar destes caixotes, apesar da marina que lhe rouba o mar alto.
Tudo me lembra uma história que ouvi alguém (não me lembro quem) contar em tempos na televisão. Esse alguém tinha um amigo italiano com quem lhe aconteceu percorrer os subúrbios de Lisboa. O italiano ficou impressionadíssimo com o caos urbanístico e a fealdade daquilo tudo. O português balbuciou qualquer coisa sobre a corrupção nas autarquias. E vai o outro: "Corrupção temos nós em Itália. O que vocês têm aqui é mau-gosto."
O nosso drama é ter as duas coisas.

quarta-feira, 7 de julho de 2010

Auto-retrato com estrada e ciprestes (ou a deriva narcísica do autor recapitulando as fotos do lado numa só)


Gosto imenso de ciprestes. Jose María Gironella dizia que eles acreditavam em Deus, e eu acredito que sim, só de os ver assim erguidos, como conjuntos de mãos postas em prece. São campanários vegetais. Isso tem feito com que os tratemos com demasiada reverência, ao lhes dedicarmos sobretudo os cemitérios. Entre nós, só os mortos pareciam merecer esta árvore belíssima que, dizem-me os livros, nem sequer é europeia, posto que veio da Pérsia. Enfim, se formos a ver, muita coisa europeia veio da Pérsia.
Mas dá-me a impressão, absolutamente empírica, que o cipreste vai tendo por cá um uso cada vez mais profano. Ainda bem. São eles que na Toscânia dão o toque final à mais bela paisagem rural do mundo, acrescentando solenidade vertical aos vinhedos, olivais, trigais e pinheiros mansos que os deuses, através dos homens, ali compuseram. Gosto de os ver, solitários como sentinelas no descampado, ou em fieiras compactas como penitentes da Semana Santa .
Também gosto de estradas, sobretudo das que não conheço. Gosto de estações de caminho de ferro, e dantes também gostava imenso de aeroportos, mas fartei-me porque já são todos iguais. Gosto da expectativa, da situação provisória e transitória, da suspensão da vida normal que todos esses locais representam - ninguém é dali, todos são de outro lugar. Mas gosto sobretudo de estradas. Gosto que elas me levem, e de parar nelas como quem contempla o corpo do ser amado antecipando o prazer. Como no amor, o que mais interessa não é chegar ao fim, é caminhar até lá.  
Já fiz estradas do diabo. Andei milhares de quilómetros em África, por savanas que não mudam, em manhãs de cacimbo fresco e poentes de inferno. Atropelei galinhas, vi saltar antílopes e gnus, cruzei ciclistas desastrados que ou se assustavam ou me sorriam, mas acabavam quase sempre por cair na valeta já quando eu os olhava no retrovisor. Fiz 1200 quilómetros de Porto Alegre a S. Paulo com o credo na boca, a cheirar escape de camião e sempre à espera de me esborrachar contra um; pelo caminho, à entrada de Curitiba, e já anestesiado  por doze horas de estrada, não vi uma lomba artificial  e levantei voo. Devo ser a única pessoa que aterrou em Curitiba numa carrinha FIAT. No fim, fui ver no mapa a imensa jornada que realizara, e era só um bocadinho assim de Brasil, uma coisa pequenina cá em baixo.
Fiz trilhos de deserto e auto-estradas alemãs, fiz comboios no mato a 10 à hora, Shinkansen japoneses a 300, camionetas um pouco por todo o lado, e não fiz nem um décimo dos caminhos que gostaria de fazer. Invejo os grandes viajantes. Mas já vi mais variedade em poucos quilómetros de uma estrada portuguesa do que em milhares deles em tantos caminhos desse mundo. Eu sei que a viagem não é só paisagem, não é só partir ou chegar, a viagem é o movimento. Mas sim, calcorrear os trilhos portugueses  é muitas vezes uma experiência rara, da qual gosto cada vez mais.
Nem sei bem porque é que desatei a escrever isto tudo, só porque no outro dia me apeteceu parar e fotografar ciprestes à beira da estrada.  Gosto de andar sem destino nem objectivo. Não importa Ítaca, mas o caminho para Ítaca.

terça-feira, 6 de julho de 2010

Chora por mim, Argentina

Ao ver a máscara de Maradona depois de levar quatro secos da Alemanha, voltei a sentir um desejo agudo de conhecer Buenos Aires e essa Argentina que, vista de longe,  é dos poucos países do mundo que conseguem fabricar tragédia a partir da pura banalidade. 
Diego Armando Maradona  é um ser a quem tudo se perdoa e tudo se aceita. Por mais asneiras que faça - e fez mais do que qualquer mortal poderia fazer sem ser condenado ao Inferno em vida - nunca será castigado. Depois de anos de droga, deu cabo de uma das coisas mais sagradas que existem para um argentino: a sua selecção de futebol. E depois de o fazer foi recebido como um herói. Já nada o pode tocar.  Por mais tortas que sejam as linhas por que ele escreve, escreve direito. É Deus.
Maradona bem poderia pedir à Argentina que não chore por ele, que a Argentina choraria à mesma por Maradona. A culpa não é dele. A culpa nunca é de ninguém, porque este país fantástico parece pairar acima do bem e do mal, num plano que só admite semi-deuses, ou deuses a tempo inteiro. Não há nenhum que tenha produzido tantos mitos humanos por metro quadrado. 
Senão, olhemos a mitologia do último século e vejamos a parte argentina de gente que está já bem acima das contingências da popularidade, figurando na galeria dos que nunca mais sairão do imaginário de gerações inteiras: o próprio Maradona, evidentemente. Mas também, entre outros, Ernesto Che Guevara,  Juan Manuel Fangio,  Carlos Gardel,  Jorge Luis Borges,  "Evita" Perón.
O que têm de comum estes nomes? O facto de serem mitos, de já nem sequer serem polémicos, pois ganharam um estatuto que os poupa a essas minudências. É como se  a Argentina não se contentasse em produzir simples heróis como toda a gente, e tivesse que  os fazer dotados de uma qualquer transcendência. Pode gostar-se ou não de Borges, mas ninguém vai dizer que não é um dos nomes maiores da literatura, e absolutamente incomparável, mesmo que a maior parte das pessoas não tenha lido uma linha dele; Eva Perón, a madonna dos descamisados, é um ícone pop. Do Che, cuja foto ornamentou o quarto de milhões de adolescentes nas últimas quatro décadas, nem vale a pena falar. Gardel (que na realidade era uruguaio) é o tango, dança  que mima a condição humana; Fangio ainda hoje dá nome aos que conduzem depressa e bem. E Maradona é Maradona.
Nunca fui à Argentina. O mais perto que de lá estive foi entre gaúchos no Rio Grande do Sul. É pouco, e, estou em crer, ligeiramente enganador. Mas ainda não perdi a esperança de conhecer esse país que assim produz sonhos e tragédias em quantidades que ele próprio não consegue suportar, e tentar perceber o que há naquela terra que assim a faz tão propensa ao mito. Diz-se dos argentinos que são italianos que falam espanhol e têm a mania que são ingleses. Isso são outras palavras para explicar que não vivem no real. Na América do Sul, ninguém os suporta, são odiados por todos - a começar pelos brasileiros. Não sei se isso é currículum ou cadastro. Acho que isso os conforta na sua estranha singularidade de país que falha mais do que acerta - no futebol, nas Malvinas, na economia - mas o faz sempre como se fosse o melhor do mundo, e a derrota fosse algo de que só a ele próprio deve culpar. Porque são semi-deuses, como os sicilianos do príncipe de Salinas. Não foram os práticos e prosaicos alemães que os humilharam - foram eles que se imolaram em nome da beleza e da liberdade do jogo. Não há morte mais bela. 
Vista de longe, a Argentina parece viver permanentemente à beira de um qualquer abismo, nas garras de um qualquer drama. Como o cego Borges nos seus labirintos e bibliotecas, o louco Che a criar Vietnames por todo o lado, Evita falando aos descamisados em êxtase de jóias e casaco de vison, nada disto é normal.  Não parece um país normal. E, num mundo de gente cada vez mais normal, isso é fascinante.

segunda-feira, 5 de julho de 2010

McKecalor


1h 31 da tarde de hoje, A2, perto de Alcácer do Sal. E isto não é nada.