Ao ver a máscara de Maradona depois de levar quatro secos da Alemanha, voltei a sentir um desejo agudo de conhecer Buenos Aires e essa Argentina que, vista de longe, é dos poucos países do mundo que conseguem fabricar tragédia a partir da pura banalidade.
Diego Armando Maradona é um ser a quem tudo se perdoa e tudo se aceita. Por mais asneiras que faça - e fez mais do que qualquer mortal poderia fazer sem ser condenado ao Inferno em vida - nunca será castigado. Depois de anos de droga, deu cabo de uma das coisas mais sagradas que existem para um argentino: a sua selecção de futebol. E depois de o fazer foi recebido como um herói. Já nada o pode tocar. Por mais tortas que sejam as linhas por que ele escreve, escreve direito. É Deus.
Maradona bem poderia pedir à Argentina que não chore por ele, que a Argentina choraria à mesma por Maradona. A culpa não é dele. A culpa nunca é de ninguém, porque este país fantástico parece pairar acima do bem e do mal, num plano que só admite semi-deuses, ou deuses a tempo inteiro. Não há nenhum que tenha produzido tantos mitos humanos por metro quadrado.
Senão, olhemos a mitologia do último século e vejamos a parte argentina de gente que está já bem acima das contingências da popularidade, figurando na galeria dos que nunca mais sairão do imaginário de gerações inteiras: o próprio Maradona, evidentemente. Mas também, entre outros, Ernesto Che Guevara, Juan Manuel Fangio, Carlos Gardel, Jorge Luis Borges, "Evita" Perón.
O que têm de comum estes nomes? O facto de serem mitos, de já nem sequer serem polémicos, pois ganharam um estatuto que os poupa a essas minudências. É como se a Argentina não se contentasse em produzir simples heróis como toda a gente, e tivesse que os fazer dotados de uma qualquer transcendência. Pode gostar-se ou não de Borges, mas ninguém vai dizer que não é um dos nomes maiores da literatura, e absolutamente incomparável, mesmo que a maior parte das pessoas não tenha lido uma linha dele; Eva Perón, a madonna dos descamisados, é um ícone pop. Do Che, cuja foto ornamentou o quarto de milhões de adolescentes nas últimas quatro décadas, nem vale a pena falar. Gardel (que na realidade era uruguaio) é o tango, dança que mima a condição humana; Fangio ainda hoje dá nome aos que conduzem depressa e bem. E Maradona é Maradona.
Nunca fui à Argentina. O mais perto que de lá estive foi entre gaúchos no Rio Grande do Sul. É pouco, e, estou em crer, ligeiramente enganador. Mas ainda não perdi a esperança de conhecer esse país que assim produz sonhos e tragédias em quantidades que ele próprio não consegue suportar, e tentar perceber o que há naquela terra que assim a faz tão propensa ao mito. Diz-se dos argentinos que são italianos que falam espanhol e têm a mania que são ingleses. Isso são outras palavras para explicar que não vivem no real. Na América do Sul, ninguém os suporta, são odiados por todos - a começar pelos brasileiros. Não sei se isso é currículum ou cadastro. Acho que isso os conforta na sua estranha singularidade de país que falha mais do que acerta - no futebol, nas Malvinas, na economia - mas o faz sempre como se fosse o melhor do mundo, e a derrota fosse algo de que só a ele próprio deve culpar. Porque são semi-deuses, como os sicilianos do príncipe de Salinas. Não foram os práticos e prosaicos alemães que os humilharam - foram eles que se imolaram em nome da beleza e da liberdade do jogo. Não há morte mais bela.
Vista de longe, a Argentina parece viver permanentemente à beira de um qualquer abismo, nas garras de um qualquer drama. Como o cego Borges nos seus labirintos e bibliotecas, o louco Che a criar Vietnames por todo o lado, Evita falando aos descamisados em êxtase de jóias e casaco de vison, nada disto é normal. Não parece um país normal. E, num mundo de gente cada vez mais normal, isso é fascinante.