Escrevi isto há nove anos menos uns dias, a quente, quase sem emendar uma vírgula, nos dez minutos seguintes a um telefonema em que era desafiado a colaborar num número especial da revista Egoísta dedicado ao tema.
Não lhe retiro uma linha. Nunca mais fomos os mesmos.
Clichés
sábado, 11 de setembro de 2010
sexta-feira, 10 de setembro de 2010
Mouros e cristãos
Pois foi por estas bandas, nestes penhascos impensáveis, que tudo se passou. Rezam as crónicas árabes “que em tempos de Anbasa Ibn Suhaim al-Qalbi se levantou nas terras da Galiza um asno selvagem chamado Belay.” Era assim que chamavam a Pelayo, a quem nós chamamos Pelágio. Esse Astérix ibérico resolveu que dali os infiéis não passavam e juntou-se numa penha para as bandas de Covadonga com 300 dos seus, diante do exército de milhares do mouro Anbasa.
O resto é metade história e metade lenda, mas eu nestes casos concordo com John Ford e prefiro a lenda. Aliás, basta ver estes penhascos da Cordilheira Cantábrica para acreditar nela. Empoleirado ali, com mais dez amigos e uma merenda, até eu com a minha barriguinha era capaz de suster qualquer exército do mundo. Entre lançadas, setas, pedradas e cacetadas, ficaram 10 cristãos, mas a mourama levou uma corrida para nunca mais voltar. Aqui nasceu a Reconquista, que acabaria 770 anos depois com o mouro Boabdil a lançar um último olhar lacrimoso a Granada e a mãe dele a zurzi-lo sem dó: “Chora como uma mulher o que não soubeste defender como um homem.”
Nenhuma foto faz justiça à vertigem destas fragas, destes monstros de rocha, destes desfiladeiros alucinantes com paredes de pedra caindo centenas de metros a pique sobre correntes e cascatas. São o berço ideal de todas as lendas. São uma trincheira contra a normalidade e a normalização. Juntam-se neles três autonomias espanholas (Castela e Leão, Astúrias e Cantábria), mas no fundo não pertencem a nenhuma. Como os Alpes, os Himalaias ou os Pirinéus, como todas as grandes cadeias de montanhas, separam mais do que unem. São um mundo à parte.
Os navegantes chamaram-lhes Picos de Europa porque era a primeira coisa do continente que avistavam sobre o horizonte, quando vinham por aí fora com os olhos já cheios de mar. O nome acaba por ser poeticamente justo, porque aqui jogou-se algo importante para o continente. Mais do que em Poitiers, que foi uma cavalgada aventurosa já nos limites da sua extensão estratégica, foi nestas penedias que o poder muçulmano na Europa partiu os dentes e ficou condenado a prazo. Tivessem Pelágio e o seu bando de montanheses falhado, e a reconquista cristã seria morta no útero. Não haveria ponto de apoio, nem célula matricial que lhe desse início. Não sei como teria sido a história do mundo nesse caso, mas seria muito diferente do que foi.
Mas estes exercícios de “what if?” têm os seus limites. O determinismo histórico também tem a ver com a geografia. Estas montanhas são inconquistáveis. E o que não se mata, cresce. Se não fosse Pelágio seria qualquer outro a estragar o sonho de um al-Andalus eterno, noutro qualquer momento. O que ainda hoje Osama Bin Laden exorta os muçulmanos a recuperar, a jóia da coroa, o jardim do Islão um dia perdido, estaria sempre condenado. Passou. Morreu.
Mas a memória do Islão tem um tempo muito diferente da memória ocidental. Quem quer que tenha visitado países árabes (digo sobretudo árabes, e não genericamente islâmicos) e falado com intelectuais, políticos, gente diferenciada, sabe como o passado deles não é o nosso, e como ele é dominado pelo trauma das Cruzadas. No discurso oficial e privado, as Cruzadas são um tema recorrente, e parece que foram ontem. Para nós, elas são um episódio entre muitos, ao longo de mais de dois milénios. Mas para eles são o ponto dominante. Para os árabes, são a grande ferida, a grande agressão responsável por muita da decadência posterior, e que o Ocidente não só ainda não pagou, como perpetua, nomeadamente no apoio ao Estado de Israel – por eles chamado, na sua retórica, um “estado cruzado” essencialmente análogo aos reinos cristãos medievais da Palestina. E nas Cruzadas está incluído o roubo do al-Andalus, que um dia foi parte integrante do Dar al-Islam, o lugar do Islão. Sem entender isto não se entende nada.
Mas a gente olha para estes fraguedos, lembra-se das histórias de mouros e cristãos e começa a pensar que, na verdade, quem começou foram eles. Antes de os irmos chatear à Palestina vieram eles chatear-nos a nós, que sob a forma de visigodos estávamos por aqui sossegados a construir igrejinhas e vilórias nas nossas colinas e veigas ibéricas. Naquele dia de 711 em que um Tarik pôs pé junto do monte (djebel) que levaria o seu nome (Djebel Tarik, Gibraltar) - e que, ironicamente, continua ocupado, hoje por ingleses - entraram por aqui a dentro à espadeirada e foram por aí acima. Ficaram sete séculos até serem expulsos. E agora só nós é que somos os maus da fita? Ou será que estas coisas também prescrevem, e só conta a última em data?
Não tenho nada, antes pelo contrário, contra o Islão e os muçulmanos. São tão terroristas como quaisquer outros. Concordo com Karen Armstrong quando diz que todas as grandes tradições dizem a mesma coisa, basicamente da mesma maneira, e o que dizem se resume numa palavra: compaixão. O resto são visões e interpretações. Esse pastor americano que ameaça queimar exemplares do Alcorão é um imbecil, e quem o seguir é outro. O problema é que há poucas coisas mais devastadoras do que a imbecilidade, quando misturada com o poder.
Não fico é de cócoras, vergado por inomináveis culpas históricas. A vileza tem andado bem distribuída ao longo dos séculos, e tocado a todos de forma bastante equilibrada. Entre Tarik e Boemundo de Tarento, entre a gesta Dei per francos e a jihad, venha o Diabo e escolha. Não me venham com a história de sermos culpados de todas as mediocridades do mundo islâmico, e de todas as agressões que sofreu. Sejam homenzinhos e assumam as responsabilidades. E agora que já arranjei lenha para me queimar, vou comer uma fabada.
quinta-feira, 9 de setembro de 2010
Da irrelevância das cousas
Andei cinco dias por fora do país, embora não longe. Não me interessou ponta de um coiso o que por cá se passava entretanto. Soube por cantinhos da imprensa local que empatámos 4-4 com Chipre e que um conhecido apresentador de TV fora condenado num caso de pedofilia. Foi tudo, e foi imensa coisa. Aqui ao lado, o espanhol médio demonstra tanto interesse por Portugal como esta vaca cantábrica, que só estremeceu e olhou quando lhe disparei barbaramente um flash na cara. No essencial, Portugal não existe.
Este facto tem vindo a ser notado sensivelmente desde tempos remotos, para grande consternação portuguesa. O que é estúpido da nossa parte. Países como o imenso Canadá, por exemplo, ou a pequenina Dinamarca, também não existem. Ou até a Suíça. Se alguém souber o nome dos primeiros-ministros destes países (o da Suíça estou em crer que nem os suíços sabem), eu pinto este blogue de cor-de-rosa. Mas isso não os impedem de ser ricos e felizes. Acho até que essa é uma das razões por que o são.
Por falar em paisagem, andei por estas e por outras, e ouvi gente a falar línguas assim, como neste aviso afixado numa aldeola nos Picos de Europa. Depois conto. No fim, entrei pela fronteira de Chaves, fui à cidade jantar e mal me tinha sentado dava em directo na televisão o nosso guarda-redes a fazer disparates. A posta mirandesa já nem me soube bem.
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