Desde que novos vizinhos se mudaram há uns meses para o andar por cima do meu na Grande Alface, o lugar deixou de ser sossegado. São jovens e recebem muitos amigos. Aos fins de semana é uma gritaria de conversas lá em cima, e música. Nos outros dias, são geralmente sons cavos de home cinema. De manhã cedo, todas as manhãs, ela saltita pela casa de saltos altos.
Uma destas manhãs, saltitou mais do que o costume, e de forma mais nervosa. Julgo saber porque foi: é que na véspera, em vez de risos, gritos, ou filmes, houve só gritos. Entre as onze e a uma da manhã, mais coisa menos coisa, ela não se calou, gritando-lhe raivas, revoltas, amarguras, desilusões, eu sei lá. Não percebi uma palavra. Mas foi um desandar do que lhe ia dentro.
Quanto a ele, não sei. Certamente interagiu com ela, mas nunca o ouvi, nem geralmente lhe oiço os passos de manhã. Provavelmente usa solas de borracha. Provavelmente, ouve e cala, ou fala num registo menos estridente. Não sei. Mas ela gritou, arrepelou-se, passou das marcas, chorou alto, deitou tudo cá para fora.
Foi como se muita coisa precisasse de ser vociferada. Há momentos assim, como as grandes tempestades em que tudo transborda por causa de chuvas e ventos que não se sabe de onde vieram. Nessas alturas também as palavras caem do céu arrastadas por feridas que nem sabemos que tínhamos, ou que se calhar nos infligimos naquele mesmo momento, em tempo real.
Não sei se tudo ficou dito. Não sei se vai haver mais gritaria. Por mim é indiferente, pois entre a raiva e os amigos, entre os ajustes de contas e o home cinema, que venha o diabo e escolha o que menos se oiça. As discussões domésticas, ao menos, têm uma pulsão dramática que suaviza o incómodo. Como as janelas iluminadas do prédio em frente, também apelam ao nosso lado voyeur. Edward Albee escreveu o que até agora é certamente a mais espantosa cena conjugal que dramaturgo algum jamais concebeu. E eu, no devido tempo, apaixonei-me por Quem Tem Medo de Virginia Woolf? Consumiu-me no cinema a paixão fabulosa de Richard Burton e Elisabeth Taylor, na pele dos dois heróis de Albee que são George e Martha, nessa longa noite em que despedaçam tudo o que de mais profundo pode haver entre um homem e uma mulher para, sobre a paisagem devastada, quando sobre ela se ergue a tímida aurora de um novo dia, se amarem com a infinita ternura dos que sabem que vão continuar juntos. Encantou-me, em Lisboa, a excelente performance em palco de Jacinto Ramos e Glória de Matos - com Mário Pereira e Maria do Céu Guerra no jovem casal convidado para aquele fim de noite de copos e raiva, como inadvertidas mas necessárias testemunhas, a fim de que tudo fosse inelutável.
Sim, as paixões são plásticas, e fascinantes. No fundo, estou curioso, confesso, de saber o que se vai seguir no andar de cima. A cidade grande tem destas coisas: impõe-nos a vida alheia de uma forma perversa. E anónima. E superficial. É que eu nunca vi os meus vizinhos de cima. Ou, se os vi, não sei que são eles. A cidade são vidas que se alinham paralelas, juntas por força do espaço e, na maior parte das vezes, pouco mais do que isso.
Como já se passaram uns dias, penso que a tensão acalmou. Oxalá. Mas nem o home cinema nem os amigos se têm ouvido. Só os saltos dela. Que vida será a deles, depois da tempestade? O que se terá partido naquela noite? O que terão descoberto? Por mim, gosto de finais felizes, digo já.