Por vontade dela, a mulher da minh'alma metia em casa tudo quanto é cão e gato, e comia com eles à mesa. A soleira da porta alentejana é hoje uma espécie de sopinhas do Sidónio ou Santa Casa da gataria das redondezas. Há dias, um dos sacaninhas, um minorca a quem ela tentou tratar de uma pata magoada, pagou-lhe o amor mordendo-a na mão com afã e descaro. Seguiu-se princípio de infecção, vacina anti-tetânica, antibiótico, as coisas do costume.
Só que este último era do tipo que já lhe dera em tempos terríveis dores de estômago. E voltou a dar. Às 9 de uma destas belas noites geladas, lá demanda este vosso criado, com ela torcendo-se, as urgências de um hospital público.
A triagem foi rápida, mas depois seguiram-se as trevas: 4 horas de dolorosa, angustiada e cada vez mais encolerizada espera, sem razão aparente para isso, pois reinava a calma na zona, havia pouca gente e não chegou uma única ambulância. Imigrantes, ressacados, bêbedos, indigentes, o lumpen da ordem, esperavam pacientemente na sala. Atrás de um vidro, funcionários com a simpatia de gárgulas medievais não davam uma informação ou satisfação de jeito: "O doutor atende quando puder." Nem iras, nem choros, nem finalmente pedidos de livro de reclamações comoveram quem quer que fosse. "Não temos, escreva uma carta à administração do hospital." À uma da manhã, desistimos, que se lixe o antibiótico. Vamos para casa.
Mas a infecção ameaçava progredir. Não vamos brincar com essas coisas: às 9 da noite do dia seguinte, o casalinho volta às urgências, mas de outro hospital que do primeiro nem ouvir falar era bom.
Ambiente ainda mais soturno, sala escura e mal cuidada. Quase vinte minutos de espera numa fila para a inscrição, seguindo-se nova espera interminável por um primeiro atendimento. Os critérios de chamada são tão obscuros como a sala, onde se espraia a habitual mistura social. A confusão é espessa. Chegam ambulâncias de vez em quando, trazendo misérias, desgraças e aflições. Há gente que espera pacientemente, outros protestam. Um grupo rodeia médicos e enfermeiras desolados, tentando perceber o que terá acontecido ao processo de um paciente, que se evaporou misteriosamente. Entornado numa maca, um jovem de gorro na cabeça, no mais adiantado estado de degradação química, tenta regularmente pôr-se de pé mas não se tem nas pernas. Implora que lhe chamem um táxi, chora pelo telemóvel para que alguém o venha buscar - mas é evidente que nem no hospital nem na família há quem esteja para aí virado.
Passadas quase três horas, em que pelo menos já não havia dores de estômago, lá se tenta saber das razões de tanta espera. "Mas já chamámos a senhora três vezes." Chamaram uma ova. Mas vai-se a ver e chamaram mesmo, só que pelo nome errado. Tinham-se enganado a transcrevê-lo.
Etapa seguinte: nova espera para ser atendida pelo médico, em nova sala fria e malcheirosa, servida por casas de banho imundas, cheia de doentes em maca que dormem, resfolegam, gemem e protestam. Há um que, subitamente curado pelo desespero, se levanta e tenta pôr-se dali para fora, até ser impedido por familiares e encarregados. Um preso algemado à cadeira de espera é escoltado por dois polícias entediados que o ameaçam entre dentes à mais ténue tentativa de se mexer. A fome aperta, mas não há sequer uma miserável máquina de café, quanto mais de bolachas ou qualquer coisa que se trinque.
Só quase lá para a 1 da manhã é que somos chamados, atendidos e mandados embora com o problema resolvido. Lá fora no passeio, solitário na noite gelada, abraçado de cócoras a um pilarete metálico, o jovem de gorro murmura coisas vagas por entre as quais se pressente que implora, protesta ou simplesmente se lamenta. Suspeito que o infeliz ainda lá esteja.
No total dos dois dias, foram quase 8 horas de inferno nas garras do sistema hospitalar de uma capital europeia (durante as quais, além de tudo, não vimos um único empregado de limpeza) apenas para obter a receita de um antibiótico que não fizesse dores de estômago, que finalmente se conseguiu num quarto de hora de consulta por uma médica de extrema simpatia e competência.
"É a mesma coisa em todo o lado," disse-nos o homem do táxi. "Se quiserem ser bem atendidos vão ao privado." Isto é cada vez mais evidente perante a degradação e o desinvestimento nos serviços públicos, nomeadamente nos de saúde. Mas saí da aventura com um respeito renovado pelo Serviço Nacional de Saúde e pelos hospitais portugueses, onde nunca fui tão mal atendido nem testemunhei tamanho desleixo - por enquanto. É que quase me estava a esquecer de dizer que isto se passou em Paris, primeiro no hospital Bichat, depois no Lariboisiére, num país cujo sistema nacional de saúde já foi considerado modelar.