Então eu vi Dmitri Medvedev. Homem pequenino - ou velhaco ou bailarino. Mas este tem ar de saber dançar. Catarina, a Imperatriz, dizia que a Rússia é demasiado grande para ser governada por mais do que uma pessoa. Quem a governa hoje? É este baixinho com ar de funcionário atilado? É este pachola? Ou é ainda o outro, Putin, o ex-KGB, o sex-symbol que caça feras de tronco nu nos Urais para fazer sonhar as caixeirinhas de Moscovo e manter em respeito os ânimos do resto do mundo?
A Rússia dos soldados impassíveis que guardam o Kremlin com olhos cinzentos e gelados de lobos da tundra é também a das mulheres belas como deusas hiperbóreas, que a derrocada soviética nos devolveu - a nós que durante 40 anos achámos que lá só havia matronas hediondas com dentes de ouro e maridos funcionários do Partido.
Essa foi, reconheçamo-lo, uma dádiva não dispicienda da queda do comunismo, que entre os seus maiores erros tinha o de não ser erótico. A Ninotshka e as KGB's boazonas que acabavam na cama com James Bond enquanto o queriam matar não contam, até porque muito do seu sex-appeal vinha precisamente do facto de serem uma ficção incongruente. Só nos romances é que havia disso, e aristocratas misteriosas e doridas, fugidas aos bolcheviques e levando vidas dignamente modestas no exílio de Paris enquanto os seus brasonados maridos guiavam táxis para sobreviver. Para a minha geração, as russas ou eram babushkas trágicas ou rudes moçoilas de lenço na cabeça e braços roliços, guiando tractores para cumprimento de planos quinquenais ou parindo heróis da revolução. Não eram nada disto.
O pachola do Medvedev não trouxe na pasta a Rússia paranóica e com pavor do cerco, esse país colossal e ao mesmo tempo singularmente encravado entre gelos eternos, desertos hostis e impérios adversos, com acesso difícil aos mares quentes e à circulação vital dos oceanos. Veio dizer ao não menos pachola Obama que a Rússia dele quer ser muito amiga, e colaborar imenso. Claro que não lhe disse que ao mínimo sobressalto invade a Geórgia, ou coisa que o valha. O urso dorme com um olho aberto. Não se sofrem impunemente 20 milhões de mortos só da última vez que alguém quis violar a Grande Mãe Rússia - fora as outras. Lá ao fundo, no seu gabinete, Putin vela, de arma aperrada, e com ele velam os eternos fantasmas russos, feitos de sangue e lágrimas. Não são 20 anos de pseudo-democracia que vão apagar mil anos de chicote. Não são palavras e promessas que vão curar complexos. Não é agora, só porque o petróleo já não dá para grandes gastos, a China despertou finalmente e toda a gente é amiga no Facebook, que a Rússia vai deixar de ser o que é.
Não é agora que as coisas vão deixar de ser o que são, só porque a NATO anuncia que se vai embora do Afeganistão - coisa nunca vista na história das guerras. Se eu fosse talibã sentava-me calmamente, guardava-me de canseiras e poupava as balas para daqui a quatro anos. Até lá, a NATO vai dedicar-se a treinar e armar o exército afegão, para ver se ele acaba o trabalho que está longe de acabado. Isto é, não só não tem conseguido matar um monstro como está a criar outro. Já vimos este filme. Os próprios talibã foram criados nos anos 80 pelos serviços secretos paquistaneses, com dinheiro americano, para combaterem os soviéticos. Postos os soviéticos a andar, a coisa deu no que se sabe. Osama bin Laden era, nesses tempos, um útil mudjahidin anti-soviético, abençoado pela CIA. Não descansou enquanto não rebentou com o World Trade Center. Uma das grandes lições da História é que os homens nunca aprendem com as lições da História.
No Afeganistão, a honra manda que os homens não se vendam - mas alugam-se facilmente. Naquela manta de retalhos tribal em que se muda de fidelidades como quem muda de chapéu, o que a NATO está a fazer é a treinar e armar inimigos mais competentes. Já houve esquadras inteiras de polícia que desertaram com armas, bagagens e o precioso treino ocidental.
Amanhã serão regimentos e batalhões. O governo do pavão Kharzai, se entretanto não lhe tratarem da saúde por um pior ainda, continuará alegremente a recolher os dízimos e os óbulos dos senhores da guerra e do ópio. O Afeganistão não vai deixar de ser o que é. E, ao lado, o Paquistão tem bombas atómicas e cada vez mais malandragem à solta.
Amanhã serão regimentos e batalhões. O governo do pavão Kharzai, se entretanto não lhe tratarem da saúde por um pior ainda, continuará alegremente a recolher os dízimos e os óbulos dos senhores da guerra e do ópio. O Afeganistão não vai deixar de ser o que é. E, ao lado, o Paquistão tem bombas atómicas e cada vez mais malandragem à solta.
Ainda não vimos nada.
Excelente.
ResponderEliminarjunu
Muito boa a análise da Rússia de hoje e das suas actuais e futuras relações com a NATO.
ResponderEliminarE há o gás, não te esqueças...
Ao gás, incluí-o genericamente no petróleo.
ResponderEliminarAs tecnologias de extracção e transporte estão a evoluir rapidamente e a abrir possibilidade de alternativas que tendem a diminuir a dependência do gás russo. É mais uma razão para eles se "aproxegarem" da Europa e do Ocidente. Mas o urso é muito nervoso, nunca se sabe como vai reagir. É o "segredo dentro de um mistério, envolto por um enigma" de que falava Winston Churchill.
Muito bom.
ResponderEliminarMH
Excelente análise!
ResponderEliminarAnálise onde muitos cidadãos portugueses e possivelmente de muitos outros países,se revêem e questionam o objectivo destas organizações (como a Nato)senão para defender o poder político, económico e financeiro institucionalizados!
Será que terão medo da mudança que se avizinha,o virar doutra página da história?
MJM