sexta-feira, 7 de agosto de 2009

Revisitação : Contos de ao pé da porta.


(Daqui)
Revisitar o mundo pode ser, por exemplo, ir a Granada ver o Alhambra, e pelo caminho atravessar os mil arcos da mesquita de Córdova e os mil montes do al-Andalus. Desde logo, nenhum português poderá perceber onde está e o que é sem fazer este caminho com os olhos bem abertos.
E, já agora, o caminho da Espanha inteira, para entender o que somos e o que não somos. O resultado pode ser uma depressão inicial, porque a Espanha somos nós, mas bastante mais extremados. Lá o calor é mais quente, o frio é mais frio, as alturas mais altas, as planuras mais desoladas, as distâncias mais distantes, os defeitos mais mortíferos e as virtudes mais sublimes.
Olhe-se cá de baixo os cumes nevados da Sierra com 36 graus à sombra, e percebe-se melhor porque há duas Espanhas. Vejam-se os penhascos de Ronda, o desfiladeiro alucinante cavado no meio da cidade onde segundo a lenda se inventaram as touradas, e para onde na guerra civil foram atirados em poucas horas 500 alegados fascistas como que para as goelas do Inferno, e entende-se o resto. Em Portugal não havia onde fazer isso.
O determinismo geográfico tem limites, mas ali, na meseta onde todas as coisas são menos temperadas, percebe-se que as pessoas também o sejam. Ver Córdova e a espantosa mesquita, as rendas de pedra do Alhambra e a vega granadina faz-nos entender que sempre vivemos numa espécie de quintal das traseiras. Mas, à parte isso, faz-nos entender a saudade que corre na memória colectiva do Islão. Foi aqui que ele ergueu o que foi em tempos a sua maior jóia. E as verdes pradarias e colinas prometidas aos mortos de Alá serão estas que se estendem em torno e para lá de Sevilha e do Wad al-Kebir, o "grande rio," cravejadas de
pueblos brancos teimosamente agarrados às escarpas e à memória de la frontera. Percebe-se porque é que a cor do Islão não é o ocre do deserto, mas o verde que representa as árvores que dão sombra e frutos, a água que retempera, a vida. O al-Andalus é o paraíso não perdido, mas “roubado,” e que ainda hoje bin Laden evoca nas suas arengas de vingança. Nunca secará a lágrima que Boabdil deixou correr ao olhar Granada pela última vez: Llora como una mujer lo que no has sabido defender como un hombre.
Mas uma freira caminhando pelas vielas do bairro de Albaicín como num
suk magrebino, ou a catedral cordovesa que nasce e se mistura quase naturalmente na mesquita em volta são odes a um mesmo Deus e um dos mais patentes desafios às trincheiras civilizacionais. Nem o grosseiro palácio que Carlos V (o mais europeu dos imperadores) ergueu junto aos delicados palácios Nasritas como um desajeitado símbolo de poder e conquista consegue destruir o poema.
Talvez sejam, quem sabe, não apenas ecos do passado, mas imagens de futuros possíveis. Aquele não se fez sem sangue, nem certamente estes se farão sem ele. Mas nos jardins do Alhambra há rosas belíssimas.
Dale limosna, mujer
Porque en la vida no hay nada
Como la pena de ser
Ciego en Granada.


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