sexta-feira, 23 de outubro de 2009

Por mim, era já

Pela primeira vez na história gloriosa deste belogue, publico uma foto que não foi tirada por mim. Mas consola-me o facto de há meses ter tirado uma muito parecida com esta, quando passei pelo local e fiquei esmagado pelo tema.
Na altura, queria ficar com uma prova de que os meus olhos não me enganavam, e que aquela palhaçada existia mesmo. Feita a prova, apaguei o arrepiante documento. É que já tenho muita coisa que me rale, e muita porcaria a ocupar espaço no meu disco rígido.
Dito isto, é com algum alvoroço que vejo agora existir a hipótese, ainda que largamente teórica, de que esta espécie de Amoreiras em forma de estádio (ou estádio em forma de Amoreiras, tanto faz) que existe em Aveiro, ser implodida, dinamitada - resumindo, riscada do mapa e da vista da Humanidade. A razão invocada é que esta obra emblemática do actual regime do Estádio Novo dá prejuízo.
Venho aqui dizer que apoio vivamente a solução, e apoiaria mesmo que a coisa fosse, em comparação, mais rentável que as cuecas do Cristiano Ronaldo vendidas em hasta pública. Não sou de Aveiro, mas acho que nem Aveiro nem qualquer cidade do Mundo (a não ser talvez Novokuznétz, na Sibéria, que deve ser tão chata que qualquer coisa servia para a animar) merece isto. A bem da higiene visual do mundo, por mim, voto a favor. Dinamite-se. E depressa.

quinta-feira, 22 de outubro de 2009

Do disparate e seus direitos

"Não concordo com nada do que você diz, mas lutarei até à morte pelo seu direito a dizê-lo" (Atribuído a Voltaire, mas certamente, e como quase sempre acontece nestas citações, apócrifo).

Já não há pachorra para ouvir dizer que "Saramago tem todo o direito de dizer o que quiser." Bolas, já toda a gente ouviu isso, e toda a gente sabe isso.

Vamos lá a ver: quando eu digo que o sr. Saramago, ou quem quer que seja, diz imensos disparates, não estou a negar o seu direito a dizê-los. Estou apenas a fazer uso desse mesmo direito - o direito de dizer que o sr. Saramago, ou quem quer que seja, diz imensos disparates. É o meu direito de opinião, é a minha liberdade de expressão.

Manifestar o desejo de que Saramago se cale não é o mesmo que manifestar o desejo de que Saramago seja calado. Pedir a alguém que se cale não é o mesmo que calá-lo. Eu tenho o direito de pedir a alguém que não diga disparates. Não tenho o direito de pedir que esse alguém seja impedido de dizer disparates.

É uma pequena diferença que faz toda a diferença. Mas que é geralmente ignorada nos debates deste género, em que se faz uso e abuso desse irritante artifício dialético de confundir a contestação dos disparates com a negação do direito a dizê-los - acabando assim por negar o direito de expressão a quem os contesta.

É um jogo de espelhos que tem sido muito evidente nos últimos dias, com toda a gente a acusar o outro de "reflexos persecutórios", "tendências inquisitoriais" e coisas do género. Toda a gente adora fazer-se de vítima. Mas toda a gente acaba por ceder ao impulso do carrasco.

terça-feira, 20 de outubro de 2009

Memórias de um Muro


Era uma figura trágica e ao mesmo tempo grotesca. De boina e casacão coçados, cabelos brancos compridos, esbracejava de bengala na mão e vociferava sem cessar. A névoa gelada abafava-lhe os gritos dirigidos ao “outro lado”. O velho soltava imprecações na direcção de Berlim-Leste, do alto de um palanque nas imediações da Friedrichstrasse. Por vezes calava-se e ficava de olhos fechados, braços abertos, como quem espera acolher alguém. Perdera o tino há anos, disseram-me, quando lhe mataram o filho que tentava fugir para o Ocidente, naquele mesmo local. E agora estava ali todos os dias, arengando a sua revolta enlouquecida.
Vi Berlim pela primeira vez nesse Inverno de 1977. Estava muito frio. O Muro tinha 16 anos, e era uma atracção turística.
A plataforma no alto do qual se encontrava o velho louco era uma das várias que foram erguidas do lado de cá, e das quais se podia ver por cima do muro. Os autocarros de turistas paravam regularmente junto delas, despejando hordas tagarelas que subiam, excitadíssimas, para espreitar “o comunismo” ao vivo. Pouca coisa se via além de ruas desertas e casas cinzentas, para lá das fiadas de arame farpado e obstáculos da terra-de-ninguém. Mas isso só reforçava a ideia de que para lá do Muro era o Inferno, e os turistas voltavam a entrar nos autocarros consolados por terem nascido do lado certo. Alguns até choravam com a história do velho.
Em 1961, Kruschev dissera: “Vamos fazer um muro em Berlim, e o Ocidente vai ficar a olhar para ele como uma ovelha estúpida.” Tinha razão. Mas que poderia o Ocidente fazer, sem arriscar, julgava-se na altura, uma guerra medonha? A ovelha ficou a olhar e fez de Berlim uma espécie de montra do chamado “mundo livre”, regada com o sangue de centenas de alemães apanhados pelo muro no lado errado à hora errada, cujos nomes estão gravados em cruzes que se se perfilam acompanhadas de coroas de flores.
Den Toten der Mauer. Aos mortos do Muro.
Um dos mortos fora o filho daquele velho tonto. Ele vira tudo, disseram-me, enquanto lhe gritava e estendia as mãos do lado de cá: o rapaz a correr desvairado, depois as rajadas, e o corpo que se abate como um boneco atirado ao chão. Como aconteceu a outros, ficou ali vários dias antes que o fossem buscar.
Não deve haver dor pior. Em Novembro de 1989, quando, a golpes de picareta, os alemães começaram a destruir o Muro, eu lembrei-me daquele velho cujo filho podia ter esperado 28 anos. Uma eternidade.

Olhares

Cigana
Castro Verde, Outubro de 2009