quinta-feira, 12 de agosto de 2010

Rotundas do meu país

Duas minhocas, uma vermelha e outra verde, emergiram um dia em Albufeira. Apesar de serem, obviamente, de clubes diferentes e historicamente rivais, ficaram tão felizes que se entrelaçaram com ternura e alguma volúpia. Vinham de óculos, talvez escuros, e tinham antenas como os caracóis - sabe-se lá porquê e para quê. E por aqui ficaram, imortalizadas no seu terno amplexo, ou na sua dança, ou no que raio é que estão a fazer.

Ali perto, noutra rotunda, uma esfera armilar no meio de objectos indistintos (pelo menos para mim, que só lá demorei o tempo suficiente para fotografar a coisa) sugere uma qualquer vocação universal de Albufeira, embora a única imaginável seja a de receber, acarinhar e apaparicar a classe operária inglesa nas suas ruidosas e etílicas vilegiaturas estivais.
 
E para remate, a consagração escultórica de uns brindes aparentemente saídos em caixas de cereais, sacos de batatas fritas ou qualquer coisa do género. Ou será mesmo, como sugere a Canuck no oportuno comentário que aqui deixou, simples publicidade a uma marca de relógios? Seja o que for, para mim sugere que está na hora de organizar um museu para a arte de rotunda. Talvez em Albufeira, terra que patentemente tanto acarinha esta categoria artística. Com sorte, ficará às moscas, como os outros.

Fantasmas

-Tens fome, Jacinto?
-Não. Tenho horror, furor, rancor!... e tenho sono.
Com efeito! depois de tão desencontradas emoções só apetecíamos as camas que esperavam, macias e abertas. Quando caí sobre a travesseira, sem gravata, em ceroulas, já o meu Príncipe, que não se despira, apenas embrulhara os pés no meu paletó, nosso único agasalho, ressonava com majestade.
Depois, muito tarde e muito longe, percebi junto do meu catre, na claridadezinha da manhã, coada pelas cortinas verdes, uma fardeta, um boné, que murmuravam baixinho com imensa doçura:
-V. Exas não têm nada a declarar?... Não há malinhas de mão?...
Era a minha terra! Murmurei baixinho com imensa ternura:
-Não temos aqui nada... pergunte V.Ex.ª pelo Grilo... Aí atrás, num compartimento... Ele tem as chaves, tem tudo... É o Grilo.
A fardeta desapareceu, sem rumor, como sombra benéfica. E eu readormeci com o pensamento em Guiães, onde a tia Vicência, atarefada, de lenço branco cruzado no peito, decerto já preparava o leitão.
Acordei envolto num largo e doce silêncio. Era uma Estação muito sossegada, muito varrida, com rosinhas brancas trepando pelas paredes - e outras rosas em moutas, num jardim, onde um tanquezinho abafado de limos dormia sob mimosas em flor que recendiam. Um moço pálido, de paletó cor de mel, vergando a bengalinha contra o chão, contemplava pensativamente o comboio. Agachada rente à grade da horta, uma velha, diante da sua cesta de ovos, contava moedas de cobre no regaço. Sobre o telhado secavam abóboras. Pôr cima rebrilhava o profundo, rico e macio azul de que meus olhos andavam aguados.
Sacudi violentamente Jacinto:
-Acorda, homem, que estás na tua terra!
Ele desembrulhou os pés do meu paletó, cofiou o bigode, e veio sem pressa, à vidraça que eu abrira, conhecer a sua terra.
-Então é Portugal, hem?... Cheira bem.
-Está claro que cheira bem, animal!
A sineta tilintou languidamente. E o comboio deslizou, com descanso, como se passasse para seu regalo sobre as duas fitas de aço, assobiando e gozando a beleza da terra e do céu.
O meu Príncipe alargava os braços, desolado:
-E nem uma camisa, nem uma escova, nem uma gota de água-de-colónia!... entro em Portugal, imundo!

Eça de Queirós (in "A Cidade e as Serras")

quarta-feira, 11 de agosto de 2010

Reflexos no Douro


Pelo menos desde “O Coração das Trevas,” de que Coppola fez “Apocalipse Now,” que é muito difícil subir um rio de forma inocente. Mas o Douro não vai dar ao inferno de Kurtz, antes a uma terrinha minúscula e amável, com um dos nomes mais doces da toponímia portuguesa. Barca d’Alva só é infernal pelo calor de Agosto ou, para os mais impressionáveis, que os há, pelo facto de não ter multibanco.
Woody Allen, que não duvida da vida depois da morte mas teme que lá não aceitem cartões de crédito, não gostaria de Barca d’Alva. Mas eu gosto, e até dormi lá. Para quem sobe o Douro, a partir dali só há dragões, como nos mapas antigos. Do lado de lá é Espanha, e o rio deixa de ser navegável no seu curso internacional.
Seja como for, não se sobe o Douro de forma inocente, mesmo que seja apenas o troço superior, do lugarejo de Nª Sª da Ribeira até Barca d’Alva. O rio deixa-se subir sem resistência porque o domesticaram à força de betão. As barragens transformaram o ímpeto das correntes em lagos de água parada, e o Douro tornou-se complacente como uma virago altiva abandonada por fim aos langores da existência. Por onde antes andavam rabelos dobrando cabos de tormentas passeiam agora plácidos barcos de turistas ou botes semi-rígidos com diletantes como eu. Pode dormir-se uma sesta boiando no lugar da Valeira, onde havia o famoso cachão que engoliu não sei quantos infelizes, entre eles o barão de Forrester.
Este rio agora lânguido percorre-se entre memórias que evocam outros tempos,  e o canto das cigarras que evoca outros lugares muito mais a Sul. Pela sua forma e disposição, o curso superior do Douro é um enclave mediterrânico numa terra alta e continental. Um calor espesso, abrasador, inumano, desprende-se dos xistos e granitos sobreaquecidos, nestes vales onde não chegam as humidades do Atlântico. Nas margens abruptas, por vezes quase a pique, crescem o vinho, o azeite, o figo e a amêndoa, faz-se o mel, e o Inverno é mais doce. Uns poucos de quilómetros acima para cada lado, os planaltos beirões e transmontanos gelam, chove e neva, e a paisagem é completamente diferente.
O Douro é um rio fabuloso pela beleza do que nos diz e mostra, mas também, e sobretudo, pelo que não nos diz, mas nos intima a adivinhar: o trabalho tenaz, paciente, inacreditável, que foi necessário para inventar terra e espaço naqueles barrancos rochosos, para enfrentar a brutalidade daquela natureza e nela talhar milhares de hectares em declives alucinantes, arrancando deles sustento.
É isto o que mais impressiona quando deslizo por aquelas águas amansadas, como num espelho que duplica as margens. Para dominar o curso, foi preciso engenho, sim, e muitas máquinas e dinheiro. Foi, no essencial, coisa recente. Mas para afeiçoar a terra, desbastá-la, abrir milhares de quilómetros de socalcos e geios nas encostas de pedra bruta à força de mãos e braços, sob a chuva e o sol, foi precisa a assombrosa tenacidade de muitas gerações a fio.
Esse trabalho anónimo talhou pacientemente, ao longo de quatro ou cinco séculos, uma das mais belas e emocionantes paisagens de fabrico humano em todo o mundo. Também não deve haver muito paralelo para a fantástica linha de caminho de ferro que corre por onde nenhuma estrada moderna ousaria correr – teimosamente junto ao leito, por vezes apenas a um metro deste, saltando braços de rio e afluentes, furando penedos e montanhas.
Hoje parece estranho que tudo isto se fizesse, ou se tivesse querido fazer. O Douro chegou a ser uma das regiões portuguesas de maior modernidade e abertura ao exterior, e o que hoje nos oferece é um outro tempo, um outro ritmo, talvez uma outra forma de ver, acima do tempo imediato.  É um tempo de permanência, que não contradiz a modernidade. Essa é a sua beleza e a emoção de o percorrer, sobretudo para alguém como eu, que nunca o vira dessa posição central, singrando pelo eixo aquático a partir do qual todas as perspectivas mudam, todas as distâncias se alteram e tudo o que a terra acidentada afastava fica mais próximo entre si. Só navegando num rio se percebe como ele pode unir o que a terra desune, e poucos o fazem como este. 
A terra, essa, é aquela terra atormentada que Miguel Torga celebra até à exaustão (e aqui para nós, quase até ao enjoo) no seu “telurismo” primordial. Não é por acaso que nos altos que dominam o rio e afluentes, e de onde se avistam os vales, montanhas e planaltos que eles escavaram, se erguem igrejas, capelinhas e  altares pagãos, lugares de contemplação e de memória que tanto invocam deuses como evocam dádivas e sacrifícios, nesse eterno comércio com o sagrado que aqui se sente de forma inescapável.

Percorrer o Douro é percorrer uma das paisagens mais humanizadas de Portugal, mas porque ela era inicialmente das mais brutais, das mais agrestes e, como tal, teve que ser trabalhada – daí as marcas perenes que nela ficaram.  Não nos iludamos, portanto: se aqui reside uma pegada fortíssima da tenacidade humana, não podemos esquecer que elas existem por todo o lado, em locais de outra beleza menos evidente ou onde a natureza disfarçou melhor as alterações que sofreu. Contemplar uma interminável planície ao sol de Agosto no Alentejo é pensar no que seria ceifá-la palmo a palmo sob aquele calor do demónio – e aí o jornaleiro alentejano ou “ratinho” das Beiras, os homens e mulheres que moldaram regiões inteiras à custa de trabalhos de uma espantosa dureza levam-nos ao mesmo nível de assombro que o talhador duriense. Ou do pescador de Olhão, de Peniche, da Póvoa, que lavrou as ondas, não deixando marcas do seu labor, da sua vida, ou da sua morte.
Como a beleza dramática e evidente dos vales do Douro, a planura doirada que neste momento se estende para lá da minha janela, ou o mar para onde vou não tarda nada, que isto está de ananazes, são outros tantos lugares cuja beleza esconde dramas eloquentes, esforços insanos, labores infindáveis. Mal empregado país.
Não, um rio como o Douro não se sobe impunemente. Mais do que um passeio, é um percurso quase iniciático. Mas isso não acontecerá com todos os rios? Claro que sim. Subi-los é percorrer o tempo, é contemplar a nossa origem, a nascente de tudo o que somos, as coisas que nos moldaram. E nada disto nos deixa inocentes.

terça-feira, 10 de agosto de 2010

McKecalor #2



Venho cá fora, penosamente. Não se ouve um som. O Alentejo não tuge nem muge, esbodegado.  São 3 e meia da tarde e estão 44 graus. Há dois dias andava eu rio acima rio abaixo sob calores de Inferno no vale superior do Douro. Agora  vim meter-me no coração da fornalha alentejana mesmo no pico de uma onda de calor. Eu e a minha pontaria... Estamos conversados. Para o ano marco um hotelzinho de charme no Círculo Polar Ártico. É que nem ginjas.