segunda-feira, 25 de outubro de 2010

Quem vai à guerra

Chamava-se Momade, era "miliciano" da Frelimo. Apanhámo-lo de manhãzinha fresca,  mais a sua Simonov chinesa semi-automática, quando o coirão ainda dormia na palhota já as mulheres trabalhavam na machamba. Fora, como de costume, a tagarelice delas que nos guiara. Pouco depois ouvia-se ao longe o grito de "tropa aué!" repercutido pelos matos fora, mostrando que estávamos descobertos. Choveram, à nossa procura, três ou quatro morteiradas.
Já nada tínhamos a fazer ali. Passáramos de caçadores a caçados. Sabíamos que eles tinham postos de sentinela espalhados, e sabíamos que o Momade sabia onde eram. Mas o gabiru, passado o susto, fazia-se de lucas e encolhia os ombros. Então o Vaz deu-lhe dois valentes cachações, agarrou-o pelo colarinho, encostou-lhe a faca de mato ao pescoço até quase fazer sangue e disse-lhe: "Ou nos dizes onde há sentinela ou faço-te como se faz às galinhas." Subitamente prestável, o Momade guiou-nos dali para fora que nem um campeão.
Não sei se isto foram métodos de interrogatório um pouco mais agressivos, ou se já caem na definição de tortura. Seja como for, e dado o contexto, achei muito bem  que tivessem sido empregues. Assim não houve mais violência nem chatices, e evitou-se cair em alguma emboscada onde até podia ter morrido alguém, deles ou nosso.
Comparada com muitas outras que se passam na guerra, esta é, evidentemente, uma história de encantar*. A guerra é uma porcaria. Por isso é que eu não fico muito impressionado quando saem revelações do género das que sairam agora por via da WikiLeaks, revelando que morreu muita gente no Iraque e que houve casos de tortura. Se não tivesse morrido gente, e se não tivessem havido casos de tortura, é que eu estranhava. Ao contrário do que muita gente parece esquecer hoje em dia, a guerra está longe de ser uma coisa pacífica, e muito menos um passatempo de salão. A guerra não consiste só em em fazer mal a outras pessoas, mas em fazer todo o mal que for possível - incluindo matá-las - sofrendo o menos que formos capazes. Se num jogo de futebol, que é a guerra codificada, há quem deliberadamente parta a perna ao adversário no calor da luta, mesmo diante de um árbitro, de umas dezenas de milhares de espectadores e até de muitos mais na televisão, o que será numa guerra a sério, por mais códigos e regras que se queiram pôr nela?
Os tempos modernos procuraram fazer guerras sem mortos (pelo menos, mortos do "nosso" lado), recorrendo à tecnologia. No fundo, é a aplicação da máxima de George Patton, segundo o qual "nunca um sacana ganhou uma guerra morrendo pela sua pátria. As guerras ganham-se fazendo os outros sacanas morrerem pelas pátrias deles."  Só os anjinhos deliberados em que se tornaram grande parte dos telespectadores ocidentais podem acreditar que as "bombas inteligentes" e os "ataques cirúrgicos" não partem mais do que telhados e paredes. E só quem nunca esteve numa zona de guerra pode acreditar que toda a gente se comporta segundo as regras da decência humana. Um combatente em acção não é um ser na plena posse do seu discernimento moral e ético. Um campo de batalha é, por definição, um ambiente altamente letal e stressante. Para mais, numa guerra suja como são as modernas guerras "assimétricas", nas quais um dos campos usa a população para se dissimular, discernir o inimigo entre os inocentes não é tarefa fácil nem para quem esteja descansado a ver de longe, quanto mais para quem lá esteja no meio do inferno, ameaçado de morte. Eu, que me conheço, não sei como reagiria em situações limite em que visse cair gente à minha volta com tiros disparados do meio de uma multidão de inocentes. 
Não, a tortura, a morte indiscriminada, a crueldade, são coisas que não têm desculpa nem justificação.  Não são de admitir. A vigilância sobre excessos e abusos de toda a ordem é uma conquista civilizacional de que não podemos abdicar. Mas é útil não esquecer que a guerra não é exactamente o território da compaixão. Não se pode aceitá-la e depois ficar surpreendido por nela morrer gente e se cometerem violências. "A guerra é o Inferno," dizia William Tecumseh Sherman, general da guerra da Secessão. Ele sabia do que falava. Ao arrepio do que se costuma dizer, a primeira vítima da guerra não é a verdade. É a inocência.

*O Momade acabou por confessar que o melhor que lhe podia ter acontecido foi ter sido apanhado pela tropa. Parece que tinha casado mas não pagara  as cabras e as galinhas devidas pelo dote, e o sogro andava por aqueles matos fora de canhangulo em riste, ameaçando-o com uma carga de chumbo. Agora, a salvo e sem mulher, divertia-se imenso e fazia uns cobres a lavar a roupa da soldadesca. De resto, no próprio dia em que foi capturado e uma hora depois de ter levado os calduços, já estava a comer rações de combate e era amigo de metade do pelotão.